domingo, 28 de janeiro de 2007

As virtudes

            São  muitíssimas as qualidades  que Ponciano de Azeredo Furtado se atribui. Algumas vezes, com forte convicção. Outras, diluindo-as numa humildade para ninguém levar a sério. Ele se diz homem de comer vivinho o querelante, de não haver desavença que não desmanche  na força do berro,  de não ter medo de assombração, nem medo de bala de capanga,  de não  conceder a ninguém o direito de falar mais alto do que ele, de ter  peito de mando. Mas, também,  diz ser lavado de vaidade,  não ser da  sua natureza vestir glória dos alheios, nem dado a esconder glória de ninguém, nem ser homem de espalhafato ou alarde.  Sempre admirado de uns e de outros, se compraz em repetir os elogios que lhe fazem e permitir que os boatos sobre seus feitos se espalhem pelos pastos e ermos,  com a rapidez que soe ser como a dos rastilhos de pólvora: Deixei correr o marfim que não sou de meter mordaça em boca de ninguém
            Então,  nas assertivas, sempre entusiastas, dos que o cercam é que Ponciano de Azeredo Furtado, a par de seus gestos, atitudes e ações, vai-se construindo como um  personagem  deveras inesquecível. Na sua vida, decorrida entre o Sobradinho,  propriedade rural onde mora, a casa dos vizinhos e Campos de Goitacazes, os sucessos se relacionam, principalmente com as tarefas empreendidas com o fito de atender o que amigos e parentes vêm  lhe pedir e com suas verdadeiras ou propaladas lides galantes.


  Algo de seu físico se delineia pelo olhar dos outros: daqueles que, nas procissões, apontam para ele, embaixo dos andores quando sua barba de fogo [...] arrancava admiração , impunha respeito; ou,  pelo olhar anônimo dos que o vêm passar na sua  mula escovada, farda brilhosa, sela apurada. Pelo vulgo, é tido como homem recatoso, puxador de procissão mas suas inúmeras qualidades são afiançadas pelos que, por razões de trabalho ou por  amizade ou parentesco, com ele privam no dia a dia. Assim, Juquinha Qintanilha, o capataz de uma de suas propriedade, o elogia pela  imensidão de sua bondade, pela sua educação  e opina que homem com o seu preparo não pode ficar enterrado nos pastos como chifre de boi ou mourão de angico. Um comerciante de gado, numa festa de batizado, diz que é militar de  respeito, homem de instrução,  o que é  corroborado pelo dono do hotel onde se hospeda quando está na cidade. E, pelo Juju Bezerra que,  por ter estado a sua cabeceira quando foi derrubado pela maleita, escutou o seu palavrório febril no qual pode  computar mais de quarenta nomes cabeludos [...] fora coisa leve, como rabo-de-mãe, vaca e filho de égua. Conhecimento ao qual se acrescem os  forenses pois, como dizem, ele põe “no bolso muito mocinho de anel no dedo e como refere o Capitão Totonho Monteiro : -Não há como o coronel para desembaraçar uma lei. E,  sobretudo, os feitos de alcova. Afiançam muitos,  da sua sabedoria no trato galante, que ninguém como ele para arrebanhar menina de palco, para manobrar gente da ribalta, que era o homem  mais requerido pelo povo de saia da cidade. É elogiado pelo seu tino comercial ao se dedicar  ao comércio de açúcar, firmando nome na praça como sujeito atilado que não temia responsabilidade e pelo seu faro ladino no jogo da especulação, ouvindo de Selatiel de Castro que   - Nesse andar o coronel acaba dono de usina. Igualmente é mentado pela mentalidade progressista ao determinar inusitadas melhorias  na sua propriedade rural, visando o conforto da mulher pretendida ( sujeito avantajado de tino, homem de arrojo, que sempre corria na frente do progresso, diz um seu funcionário). E  a sua valentia para enfrentar uma onça  não fica a trás.  Para os que o conhecem, não há dúvidas quanto o  ter ultimado a onça, uma onça sem medida e sem cautela. Assim, o doutor do governo que foi até seus currais no propósito  de debelar uma vermina de gado, cheio de admiração pelo seu feito, aumentou a façanha e no seu relato, propala que o coronel só faltava montar a onça de sela e arreio.

            Ponciano de Azeredo Furtado, nessas assertivas todas se vê a contento embora, por vezes, elas não sejam a expressão sincera dos que a emitem.Tanto quanto as virtudes que ele próprio se arroga, são elementos justapostos para lhe compor o arcabouço de uma figura que medra, surpreendentemente, cativante. Se o que é dito corresponde ao real ou ao inventivo, a fatura sinuosa do personagem só acrescenta maestria à narrativa de José Cândido de Carvalho num  romance que não somente é de leitura cativante, mas um perfeito exemplar de narrativa e de achados estilísticos.

domingo, 21 de janeiro de 2007

A sereia


            No ano de 1970, em sexta edição, ilustrada por Poty, era publicado O Coronel e o Lobisomem pela José Olímpio cujo personagem, Ponciano de Azeredo Furtado é natural da Praça de Campos dos Goitacazes, tanto quanto seu criador. Nesse segundo romance, escrito vinte e cinco anos depois de Olha para o céu, Frederico,  José Cândido de Carvalho concede voz a um dos personagens mais ricos da Literatura Brasileira para que registre a sua aventurosa vida nas muitas terras -  gado do mais gordo, pasto do mais fino -  abundantes em cobras, onças e assombrações que herdou do avô; e suas prazenteiras estadas na Rua da Jaca , no Hotel das Famílias e no Hotel dos Estrangeiros em Campos de Goitacazes. Numa linguagem de inigualável expressividade, Ponciano de Azeredo Furtado se revela apaixonante nas suas bazófias, zombarias, embustes, velhacarias, invencionices; comovente nos rompantes de pena por um ou outro desvalido com o qual se depara e nos seus desastrados enleios amorosos. Devoto de São Jorge, Santo Antonio e São José, nos seus quase dois metros de altura, barba vermelha, cabelo de fogo e voz grossa, ele confessa ser maluco por perna de moça e ser o trabalho que mais aprecia o andar na poeira de um bom rabo de saia. Incomodado amarra a cara, torce a barba, mede o assoalho em demonstração de zanga, dá sopapos na mesa, fala alto, sem freio nos dentes, sem medir consideração” porém, afirma que é mimoso no trato, de palavra educada. E, por ter fama de ladrão de moça solteira e ser por demais prudente nas lides amorosas é que se lhe escapam Branca dos Anjos e dona Esmeraldina. O par de tranças e outras belezas de Branca dos Anjos o levaram em trenzinho de ferro e lombo de canoa até à pequena cidade onde ela morava e de onde o pai, sabendo de sua chegada de conquistador, a levou embora para o fundo do sertão restinguento.

            De Esmeraldina, com suas covinhas no rosto, seus olhos d’água, sua mão de bordado, sua boca de flor, seu pezinho de palma, branca, cabelo em formato de labareda, bonita de cegar, e mulher de seu amigo (e depois inimigo) Nogueira, ele se tornou cativo. Acreditando no seu bem querer – que estava cada vez mais enfeitiçada, cada vez mais vencida – garantiu os empréstimos de seu marido no banco sem perceber que ela não fora domada pela sua lábia e sim ele o enganado por palavras que julgou lhe fossem propícias. Ainda que a tivesse surpreendido, voltando dos escondidos do jardim, em companhia de um outro, toda desajeitada, arrumando o cabelo como saída de um abraço, persistiu no seu trato cerimonioso. E quando a sós com ela se ateve à palestrinha mimosa de homem de salão e até resistiu ao desejo, por achar que não combinava num ambiente de fina educação, de contar o caso da sereia. A sereia que o chamou pelo nome, numa noite de luar quando saiu em pós de uma capivara e sem dar por isso se achou na beira do mar alumiado de ponta a ponta. Apeou, mal grado da inquietação de seu cavalo. Seu nome vindo de dentro d’água, na água se atirou; seu nome vinha da terra e para a  terra quis voltar, quando já estava preso no fundo da onda e começou a afundar na água morna. Algo de escamoso lhe roçou a barba e lhe tirou as forças não o deixando pensar, nem escutar o mar ou o vento. Então, reagiu e, juntando a brabeza inteira dos Azeredos e dos Furtados, avançou os dedos pelas escamas até ancorar numa curva desprevenida. Espantado, escutou o canto mimoso e, levantando o cativo da água, apareceu o rosto de boniteza, cabelo de ouro pingando água e boca cheirosa. Precavido, foi respeitoso no trato, elogiou o seu canto e, carinhoso, a levou para o seco e a aninhou no seu colo onde ela cantou o canto das maiores feitiçarias. Para não se submeter a seu canto e encantos, recusou, com resposta forrada do mais fino veludo o casamento proposto por ela, inventando compromisso com mulata teúda e manteúda. Desgostosa, a sereia, muito triste, voltou para as ondas do mar. Ele ainda a quis reter, segurando o seu cabelo mas ela escapou e nas suas mãos ficou “um cacho de cabelo de ouro que ele ofereceu, como um delicado mimo, ao amigo com o qual dividia as manhãs da caçada de capivara. Então, abandonando os ermos, foi descansar no Hotel das Famílias.

domingo, 14 de janeiro de 2007

Mandrágora


            Em 1986, na entrevista a Ciro Bianchi Ross, em Havana, quando do lançamento em Cuba de Lope de Aguire, Príncipe de la Libertad, Miguel Otero Silva disse ser esse romance a sua obra de maior qualidade. Tardou cinco anos em escrevê-la e consultou cento e oitenta livros sobre Lope de Aguirre, personagem controverso, acusado invariavelmente de traidor e de assassino, mas tido por ele como uma figura que anuncia o destino dos libertadores e que está no cerne do movimento da liberdade americana. Lope de Aguirre, que imbuído dos conselhos do confessor da família (vai para as Índias lutar contra o paganismo), de seu padrinho de batismo, dono de moinhos de trigo (vai para as Índias em cujos mares as pérolas têm o tamanho de uma noz e as montanhas, esmeraldas do tamanho de maçãs), do velho tio, leitor de livros de cavalaria (vai para as Índias onde habitam as sereias e as amazonas, onde a fumaça de folhas oferece aparições e cactos destilam um vinho transparente e embriagador) atravessa o Atlântico, visando glória e riquezas. Em Cartagena, onde se alistou como soldado com o fito de engrandecer os domínios da Espanha, não combateu, porém, executando ordens, profanou sepulturas indígenas para roubar objetos de ouro que eram enterrados com os mortos. Depois, foram humilhações e sofrimentos que o levam, desiludido, a escrever uma carta a Felipe II da Espanha, condenando a monarquia como forma de governo. 

Editado pela Seix Barral de Barcelona, em 1979, Lope de Aguirre, Príncipe de la Libertad, se divide em três partes: a primeira, trata de Lope de Aguirre como soldado; a segunda, como traidor; e a terceira como peregrino. Um destino, iniciado num povoado espanhol, onde tem por ofício cuidar de cavalos e onde se nutre de amor pela liberdade e que, serpenteando por Sevilha, Sanlúcar de Barromeda, Ilhas Canárias, Cartagena, Cuzco, Potosi, Rio Amazonas, Ilha Margarita, se cumpre quando morre pelos tiros de arcabuz dos que eram fiéis a Felipe II. Inglório fim de uma vida de muitas lutas, na qual se emaranharam façanhas inauditas, injustiças, maldades, assassinatos a se alternar com o gozo, ainda que efêmero do mando, com a ânsia de vitórias. Quando lhe foi dado conduzir, determinar ações, para formar um grande exército e liberar o Peru e o Chile do poder espanhol, começou a se espalhar, entre os soldados, que ele carregava dentro de si um pequeno demônio. Tinha a forma de uma nuvenzinha que ninguém podia ver E, assim, surpreendia as vozes de traição e, em troca de sua alma, o aconselhava e alertava dos perigos que o cercavam. Um pacto que Lope de Aguirre firmou com o sangue de um de seus dedos, considerando ter feito um bom negócio, pois vendeu uma alma cujo signo fatal não era outro senão o inferno. Mandrágora, assim era o seu nome, lhe aponta traidores e, ao perceber que está dominado pelo ódio, dança e sapateia na sua alma porque embora saiba que ela está perdida e sem remissão, lhe agrada constatar como Lope de Aguirre acumula pecados mortais. E continua a predizer episódios sangrentos e terríveis e aconselhar maior rapidez nas ações para fazer frente aos que pretendem sua morte e eles não são poupados. Esta presença de Mandrágora é referida por Lope de Aguirre quando relata – são várias as vozes do romance – suas aventuras no Continente. Uma presença que lhe parece natural, ainda que se trate de um demônio que, segundo os Livros Sagrados, é passível de estar em toda parte. Mandrágora, diz, é o seu demônio familiar, seu dedicado diabo familiar, seu bom Mandrágora que o obedece como um servo e o consola, repetindo o que escrevia São Jerônimo: Deus, na sua infinita misericórdia, irá perdoar todos os que foram condenados ao inferno, inclusive, Satanás e seus anjos caídos. Também aquele que o fará saber que o Maligno jamais teve essa figura com chifres, como é representado por pintores, mas é uma substância invisível, entrincheirada na alma dos homens onde trava suas batalhas com Deus. Embora Lope de Aguirre lhe siga os conselhos, em dado momento, admite que, talvez, não seja a sua voz que ele escuta e sim a do seu próprio coração, fantasiado de demônio familiar. Atraiçoa e mata antes de receber conselhos de Mandrágora e quando ele desaparece, ele atraiçoa e mata, movido pela ambição e pelo ódio. Como qualquer conquistador chegado no Continente.

domingo, 7 de janeiro de 2007

Digressões


            Ele se diz um medalhão celebrado em todas as cidades aonde vai, autor de romances ruins que passaram por bons. E a única história que valia a pena, ele acredita que não a merece contar. No entanto, o faz para um interlocutor presente nas expressões que a ele dirige e que permeiam o relato. É a história de Janéti, uma história que não tem cabimento de tão linda, de tão extraordinária. Janéti, que recusou o seu destino de criança, dada para os outros, tanto quanto esse mesmo destino que os pais decidiam dar aos filhos que vieram depois. Consegue mantê-los reunidos (ou assim imagina e deseja) ao se atribuir a missão de preservar uma família que não queria existir. Ela é pobre e negra, registrada como Janéti, uma pequena vergonha para ela, porque é português mal escrito e mantém laços com os irmãos que iam sendo espalhados pela geografia, pela singela pobreza conhecida. Quando os pais decidiram ir embora para Porto Alegre, para um mundo melhor, dos sete filhos restavam, ela e a menorzinha ainda nenê. Na véspera, some de casa e, no entender dos pais, passava a fazer parte do passado. Aparece, porém, na parada do ônibus, onde eles já estavam , com os cinco irmãos de mãos dadas: Chegam em silêncio, nada dizem e nada se lhes pergunta. Sobem no ônibus. Assim termina o capítulo “Um”, de Quatro negros de Luis Augusto Fischer. 
            Seu Sinhô aparece no capítulo “Dois”. É o segundo negro. Vive na região de Caçapava e é lá que o narrador o irá conhecer: deveria ter uns sessenta ou sessenta e cinco anos, o rosto magro, o bigode fino e branco, as mãos imensas e se surpreende – vivendo no meio de latifúndios – com os dados do IBGE, ouvidos no rádio de que tem um hectare e meio para cada brasileiro. No capítulo “Três”, é contada a trajetória de Airton (o terceiro negro), irmão mais velho de Janéti e que saiu de casa aos dezessete anos. Virou funcionário de uma escola de samba onde foi apresentado ao escritor que vê nele, não apenas a criança renegada pelos pais, e sim alguém incapaz de esconder, especialmente nos olhos, uma tristeza descomunal, uma tristeza ancestral, uma tristeza sem cura. A história de Rosa, irmã caçula de Janéti, é contada no capítulo “Quatro”. É a quarta negra, a única dos sete irmãos que não foi dada pelos pais, porém entregue, à revelia deles, por Janéti, a uma colega de trabalho, dona Nair que estava bem de vida e, na menina, encontrou a filha que o seu destino de solteirona lhe havia negado.

            Quatro parcas vidas com seus breves momentos de felicidade, irrompendo num cotidiano de trabalho e pobreza que o narrador, na convicção de que é o condutor da história, relata escolhendo o cenário, explicando opções narrativas ou a verdade de um personagem, experimentando enredos, demorando-se em digressões.

             Digressões que se disseminam pelo texto. Como considerações pretensiosas do narrador ao explicar a razão de não mais querer ir a Canela – a cidade não possui livraria – e ao mencionar, talvez no intuito de mostrar erudição, conceitos de escritores. Ou, como testemunho de realidades que se lhe deparam quando vai para o interior do Rio Grande do Sul. Descendente de imigrantes, o que ele considerava campo era um espaço não muito distante da cidade, ocupado por canteiros, bretes, cercas, pastos, chiqueiro, galinheiro, árvores. Em Caçapava, ele conhece a imensidão do campo: maravilhoso, bruto, telúrico, primitivo universo, recortado por grandes latifúndios e onde nas partes dobradas em cerros e penhascos, sem valor comercial, inscrevem-se pequenas fazendas de famílias pobres, donos de umas poucas cabeças de gado. Não tiravam leite, não tinham horta, nem criavam porcos ou galinhas, embora não tivessem muito o quê comer. Assim, os pais de Janéti. Sem condições para alimentar os filhos que iam chegando, mal nasciam iam sendo dados, passando a ser, na família, que os acolhia aquela figura agregada da tradição senhorial brasileira que se desse sorte encontraria casa, comida e carinho, mas que se desse azar viraria um saco de pancada e trabalharia diuturnamente. Costume aceito na sua crueldade tanto quanto a caçada de tatu e a marcação do gado e o pealo de cucharra nas quais se detém o narrador. Momentos que registram um Rio Grande do Sul profundo e fazem de Quatro negros não apenas um relato de sofridos e pequenos destinos mas, aquele que, no testemunho e na ficção, também se quer documento.