domingo, 27 de agosto de 2006

As figurantes


A história se constrói em cinco partes e cada uma delas possui mais de uma dezena de capítulos: breves episódios que vão dando conta dos sucessos acontecidos na viagem do Louco do Cati, personagem título do romance de Dyonélio Machado. Viagem que se inicia numa tarde de sexta feira, em Porto Alegre e o leva até o Rio de Janeiro de onde retorna para chegar nos campos de Quaraí. Se a sua figura, além de se constituir o fio condutor do romance, é a de um personagem ímpar na Literatura Brasileira, não menos expressivos sãos os inúmeros outros – belíssima galeria de tipos – que vão surgindo e se sucedem nas muitas etapas de seu percurso. Em número assaz  reduzido, e a exemplo do que acontece com os demais, os personagens femininos somente se vislumbram ou se mostram, sobretudo, nas suas ações. Mencionados, são protagonistas de outras histórias que não constam do relato: mulheres de homens doentes (uma, acompanha o que está sendo examinado pelo professor Cantel. Interpelada pelo gesto que afugenta a mosca, pousada no olho do doente, murmura algo que a narrativa não refere. A outra, ar triste e cansado, explica a brabeza repentina do marido, pela desconfiança que tinha de todo o mundo; as presas da cadeia do Rio de Janeiro (surpreendidas na hora do recreio, caminham de uma extremidade do corredor comprido e voltam. Duas delas, uma ruiva, magra, interessante falam com as mãos, com a cabeça, dando a impressão de que, embora vivendo em alojamento coletivo deixavam os assuntos mais árduos para serem tratados àquela hora amena da manhã, à hora do sol. E a Jeni que namorava, pelas grades e à distância, o preso que se encarapitava na janela para lhe falar; a menina que viajava no navio (e saracoteava contente, entusiasmada diante da possibilidade de desembarcar e ir ao cinema enquanto a mãe olhava para ela e pedia modos, se entusiasmando pelas qualidades do moço que nem parecia desse tempo); a companheira de viagem no ônibus que costeava a  praia, branca e de cabelo cor de cenoura, insistindo em tomar banho de mar; a hóspede do hotel que, ao envelhecer se rodeava de tudo o que era bom: compotas, conservas, latas de bolachinhas e de biscoitos e já muito gorda nunca saía do quarto; as alemãzinhas servindo na hospedaria ao pé da estrada cuja dona, alta, voz simpática, muito descansada, conversou com o motorista do caminhão e não lhe cobrou o café.
 

            Outras, estão presentes em histórias apenas esboçadas como a da mulher feia, destinada a não se casar. Sua morte é referida pela filha o que leva a negar não ter sido escolha de alguém; a da hóspede que, no hotel da praia, se diz independente (porque o veraneio é para a diversão) e conta, sem pejo, a sua história que define – ainda que na realidade não o seja – de história simples. A de Ecila e de Nanci que, seduzidas, não recebem a reparação que o pai e a mãe acreditam lhes seja devida.

            Já com uma função precisa, ainda que mínima, as mulheres que na condição de criadas se apresentam como ligação entre um episódio e outro: a moça bonita e bem vestida, mas onde se sentia a empregada que introduz o hóspede na saleta da patroa onde era esperado; a criada do doutor que abre a porta e manda as visitas entrarem; a empregada da pensão, camareira e copeira, que era portuguesa e tinha a voz doce e de garganta como um arrulho que avisa quando os hóspedes clandestinos podem ir e vir ou que lhes dá recados.

            Outras, ainda que sumamente passageira. possuem uma presença maior no relato.É o caso de madame Cantel, a mulher do professor: frágil, moça, o cabelo de um castanho fofo. A surdez lhe orientava os gestos: o hábito galante, de se encostar no interlocutor, colando a orelha muito fresca, a sua face macia nos lábios do outro, retirando as mechas do cabelo da orelha ou colocando uma lâmina delgada flexível, escura entre os dentes para ouvir melhor.

            O fato de se apresentarem tais personagens de maneira fragmentada – um gesto, uma ação, uma atitude, umas poucas frases ditas  – não as diminuem perante as demais que fazem parte do mundo ficcional de O Louco do Cati. Presenças necessárias ou imprescindíveis para completar desse mundo os contornos, a habilidade com que Dyonélio Machado as constrói e na qual não estão ausentes pinceladas de lirismo e de troça, lhes conferem significados que somente um conhecedor dos humanos e do fascínio de reinventá-los pode traçar.

domingo, 20 de agosto de 2006

Mundo reconsquistado


 
            A viagem começara com ele e seus improvisados amigos indo para o litoral, num pequeno caminhão Ford, muito antigo, o Borboleta, assim chamado porque luzia na trama em favos do radiador, uma borboleta de louça, com as asas azuis muito abertas. Depois, mudanças de planos e circunstâncias inesperadas, prolongam o que seria um breve passeio e fazem dele uma sucessão de aventuras. A pé, de ônibus, de navio, de caminhão, de carro, de trem, de avião e outra vez a pé ele faz um longo percorrido em que as paisagens e os espaços urbanos se intercalam, em que um ou outro interior se deixa ver, como sem se dar conta do que existe a seu redor. Cenários apenas delineados, seja nas suas linhas e formas, seja nas suas tonalidades, onde se inscreve o seu drama de solidão. Levado pelos outros, ele se deixa ir. E é o narrador de sua história que anota, em rápidas menções, alguma imagem: matarias densas, vale profundo com torrentes, o morro de faces abruptas cortadas em plena pedra, a beleza do vale – essa caixa enorme, sinuosa, cavada com desperdício, para conter apenas um rio – que fugia.... Por vezes, assinalando o que a natureza tem de cambiante quando invadida por claridades da manhã ou penumbras do entardecer. Quando movida pelo vento: Os coxilhões desapareciam nos panos de neblina fria que o vento rasgava ou tocava para longe, numa fúria. Rara vez, alguma imagem da qual se lembre: estrada-rua, primeiro com muita poeira, bananeiras e ananases margeando-a por entre as casas, os pomares e os jardins das pequenas cidades suburbanas....

            Das cidades que foram se sucedendo, algo apenas entrevisto, a avenida iluminada prolongando a estrada, a igreja alta, bonita, toda de pedra, a praça que parecia um descampado, a ponte metálica de Montenegro, a ponte de cimento do rio Pelotas com suas amuradas, com seus balaústres simples e retos, a de Florianópolis, elegante e fina como um pernilongo. E, algo apenas vivenciado, as ruas estreitas e entupidas da parte comercial do Rio, a praça, a igreja, a casa de governo, a rua principal de Florianópolis e os bondes de São Paulo que apareciam não se sabia de onde e também perdiam-se em qualquer parte fabulosa da cidade.

            Frágeis contornos que uma ou outra tonalidade ilumina. A cor branca a qualificar as nuvens, as águas da cachoeira, a beira do mar, a completar o sentido do adjetivo na expressão o pasto se achava polvilhado de branco. O Azul, para dizer do mar (uma língua azul marinha jogada no chão contra uma barra branca), da poeira (azul violácea do mar), da manhã (tinha uma transparência azul violácea), da sombra do Borboleta (oblíqua, fazia uma faixa diagonal dum azul violáceo), do céu (um azul desmaiado pelo calor). O verde a dar cor às paredes da casa onde os móveis, as molduras, o quebra-luz eram num tom entre o vinho e o marrom. Como um sinal de alegria, o novelo de lã amarela. O vermelho, a destacar algumas folhas dos pés de ananás perto da estrada.

            No último capítulo do romance, “Já não chovia”, clara alusão de bonança, ele chega, enfim, da volta a sua terra e, num cenário em que irrompe a luz depois da chuva, entende que terminara a razão de seus medos. A sua volta, as cores, agora, se mostram num desabrochar: o pasto como que brota verde, do chão, a faixa do céu, antes chuvoso, se descobre dum azul puro de louça ou de cetim, as flores rasteiras e pequenas, se espalham, em manchas brancas, amarelas, roxas. Liberto, já inserido nesse mundo que não mais lhe é hostil, diante daquela tarde de ouro, ele sorri. De estranho no mundo, passa, então, a dele fazer parte: um dos mais instigantes e comoventes personagens da Literatura Brasileira a conduzir o relato de O Louco do Cati. Publicado, em Porto Alegre, no ano de 1942, este segundo romance de Dyonélio Machado, apareceu num momento que não era propício para os que se permitiam ter idéias diferentes daquelas preconizadas pela Ditadura então vigente no país. Assim, embora tivesse vindo à luz sob a chancela, prestigiosa, da Editora Globo, as opiniões favoráveis sobre ele não foram muitas. E, inexplicavelmente, ao longo dos anos, continuou sendo privado da crítica atenta que lhe é devida. As qualidades estão presentes em cada uma das páginas de O Louco do Cati e, mormente, na composição de seu personagem, no caminho escuro que percorre em direção da luz.

domingo, 13 de agosto de 2006

O cara de sapo


             Em 1944, um momento da história brasileira marcado pelas perseguições aos que se opunham ao autoritarismo instaurado pela ditadura de Getúlio Vargas – como qualquer outra, uma ditadura que mantinha seus esbirros obedientes às práticas exigidas para mantê-la – é publicado Desolação (reeditado, em 2005, pela Planeta). Nesse romance, Dyonélio Machado continua a história que iniciara em O Louco do Cati: em dezembro de 1935, um grupo de amigos faz um rápido passeio ao litoral. Na volta, Norberto, mais o improvisado companheiro que levara junto, decide ficar. Maneco Manivela, Léo e Luiz iniciam o retorno a Porto Alegre. No entanto, problemas com o pequeno caminhão em que viajavam os detém em Capela do Viamão e em Águas Claras. Maneco Manivela, falando com outros hóspedes do hotel onde se alojavam, se interessa por assuntos considerados subversivos e se dá conta de que, há tempos atrás, já havia participado de uma reunião clandestina, já havia conversado com pessoas, politicamente comprometidas. O aviso do Dr. Matos, um hóspede do Hotel, informando que seu velho conhecido, Bagé, era um provocador e a presença de elementos, tidos por policiais, o fazem acreditar que, além de provocado, também está sendo vigiado. Pelo Pimenta, um personagem criado por mão de mestre.    

Pimenta, parecendo meio arredio, chegara em Águas Claras a dizer que estava de passagem para Cidreira onde pretendia achar um emprego. É levado até o grupo de amigos por Bagé que o apresenta como ex-embarcadiço, um companheiro, alguém com tradição de luta. Tipo de nortista, moreno pálido, tem o ar dum indivíduo experimentado e conta as circunstâncias em que se deu a morte de Altamira, o apóstolo dum credo condenado, que presenciara. Relato que, sobretudo por um detalhe – ao ser preso com Altamira havia acendido um cigarro – deixa Maneco Manivela intrigado. Mais tarde, entre seus amigos, manifesta essa estranheza e em meio ao diálogo, um deles pergunta qual era o nome do marítimo e outro responde: Pimenta.

Maneco Manivela, ao olhar para ele, achara que tinha uma cara de bandido como aquele que lhe mostraram quando era criança: um homem rico, mandante de um crime hediondo. Desconfia tratar-se de um policial. O que, de fato, é confirmado pelo Dr. Matos: É um velho policial... disse ao pousar o olhar na sua cara achatada, fria, imóvel. Uma cara de sapo, em que só os olhos viviam. E, nas páginas que seguem, ainda que a ele se refiram como marinheiro, policial, espião, embarcadiço, odioso Pimenta, vagabundo, será, principalmente designado por cara de sapo: o homem de cara de sapo que monta guarda numa cadeira, ao pé da porta da rua; o homem cuja cara de sapo já uma ou duas vezes avançou na sombra, junto à porta, para espiar ali para dentro.... Maneco lhe imagina “a cara fria de sapo, limpando o suor, descansando depois duma jornada daquelas. Descansando um momento, para seguir adiante, na perseguição duma outra caça..; quando pensa no Dr. Matos o vê , perseguido pelo Pimenta, numa corrida, em que ele ia na frente e Pimenta, a cara de sapo, atrás, atrás, infatigavelmente.... E Maneco tem medo “de meter a cabeça pela fresta e dar de cara com a cara chata, repelente, fria do sapo; inquieta-se com a possibilidade de reencontrá-lo, sapo frio de olhos devastadores ou de se defrontar com os olhos gulosos do sapo. Sente-se ameaçado pelo sapo frio e repelente à sua frente, pronto a abocanhá-lo e considera: Estranho, como se mete na cabeça de um bandido desses uma idéia assim: de fazer mal a uma pessoa. Não há fadigas, não há perigos que não enfrentem e vençam.

Outras expressões lhe completam o retrato (cara imóvel, chata, impenetrável), sua maneira de ser (olhar frio, olhar de anfíbio, olhar que diligencia ser atencioso, impassível, pálido, sereno, frio, obsequioso, alerta... Sobretudo alerta.) ou mencionam suas atividades de farejador que levanta a caça para que outros se encarreguem de prender. Mas é, sobretudo, na frase do Dr. Matos a Maneco Manivela quando ele, já irritado de se ver seguido, quer lhe amassar a cara, que se estabelece a verdadeira abrangência do policial a serviço da repressão: De nada adianta. Para substituir a cara amassada, surge logo outra, mais odiosa ainda.

Dyonélio Machado sabia muito bem do que estava a falar.

terça-feira, 8 de agosto de 2006

Os nomeados

 

       Designado pelo Vice-rei do Peru para fundar uma cidade, Juan Núñez de Prado com os homens que pode reunir, percorreu um extenso itinerário durante o qual enfrentou discórdias e lutas e toda sorte de desventuras. Carlos Droguett, sem se afastar da história oficial, relatada nas Crônicas da Conquista, refaz esse caminho em El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973), um dos mais belos e perfeitos romances latino-americanos. No segundo capítulo, o capitão e seus homens avançam no Continente em pós de um sítio para assentar, pela segunda vez, a cidade.  
           

O vice-rei do Peru, padre La Gasca, ao ordenar que Juan Núñez de Prado organize uma expedição para, internando-se no Continente, fundar uma cidade, não lhe propicia ouro, nem cavalos. Tampouco soldados. Não tens bandidos e assaltantes aqui? procura famintos sem entranhas, leva contigo cárcere e encarcerados Foram duzentos os que partiram e, além dos capitães, poucos são aqueles que, no segundo capítulo, são identificados por seus nomes. Quando Juan Núñez de Prado, se dando conta de que não poderia levar todas as cadeiras que estavam atiradas no chão, chama Bautista, Alcántara, Rentería e Griego;  num de seus delírios, se imagina doente, ferido ou que soldados tenham se revoltado, e os nomeia: Sebastián Mateos, Santos Velásquez, Cristóbal Pereira. Ao ter dúvidas sobre o lugar que escolheram para, pela segunda vez, assentar a cidade, Juan Núñez de Prado olha com ira para Rentería, Antonio Griego, Juan de Humarán que afirmam ser aquele onde pararam, obrigados pela chuva, um bom lugar. Por vezes, é o narrador quem menciona os soldados, conhecendo-lhes as intenções e identificando-os pelo nome: Humarán, indiferente aos destroços da cidade  feita e desfeita e aceitando a sua mudança, disposto a levá-la para os cerros, a costa, os bosques, as montanhas, perto dos rios, porque a sua casa, o seu caminho era o cavalo e por ele seria conduzido a outras cidades, a outras aventuras. Diego Griego, o único a receber menção sobre o seu físico (belo rosto, olhos negros, cabelo revolto), que estava armado e com a espada na mão, queria se enfurecer logo para perseguir índios e prisioneiros amarrados. Diz que a mudança já deveria ter sido feita (já vês que estamos indo embora tarde) e por isso seria, mais dolorosa e motivo para que centenas fossem mortos. Diante da decisão da mudança -Vamos embora, senhores diz o capitão Santa Cruz, querendo demonstrar que o estimava e continuava sendo seu amigo lhe sorri. Com o arcabuz sobre os joelhos, incapaz de segurar as rédeas do cavalo, de apertar-lhe a cincha, tremia um pouco, dando a impressão de que, se o cavalo saísse a trote, ele se desvaneceria.

Também em outras seqüências, aparecerão os nomes de Humarán e Antonio Griego. No episódio em que Juan Núñez de Prado mata um soldado, Humarán se mostra irritado porque pretendia estar, dentro de quinze dias em Santiago para negociar a mina que possuía, perto do rio; Antonio Griego apeia do cavalo com muito barulho e aparato para que se soubesse quem ele era. Ou, em outro episódio, quando em meio à desordem e à loucura da cidade que estava sendo desfeita, eles riam contentes.Ou, ainda, naquele em que o padre Carvajal chega na cidade, imersa no movimento de construção e destruição e os reencontra junto com Valdenebro. Eles se aproximam dele através de seus sorrisos e do brilho delgado de suas almas. Ao caminhar, à noite, vai cumprimentando: olá Rodrigo, como vai Sacramento, boa noite, bom dia Diego e escuta os soldados pedirem ferramentas: dom Álvaro, passe as tenazes, mais pregos, o serrote.

Dois nomes ainda aparecem referidos no segundo capítulo. O do soldado Bruselas que dom Francisco, capitão a soldo de Pedro de Valdívia, do Chile, afirma ter sido assassinado por Juan Núñez de Prado, pelas costas. E o do prisioneiro que, empurrado, caminhando como bêbado, parou  para buscar rostos conhecidos. Diz-lhes os nomes: Romero, Alonso Romero, deixa que eu te explique, Griego, Antonio Griego, meu amigo. O que deseja explicar o relato não diz como, tampouco, quem foram os que, depois de ele ter dito o próprio nome, Sou Ginés Herrera, o golpearam no rosto. 

Carlos Droguett, ao reescrever a história do ato colonizador no Continente, identificando ou não esses soldados que o tornaram possível, em algumas expressões ou em algumas frases lhes fixa a presença. Uma imprescindível presença que a crônica oficial fez constar em números, em datas, em atos onde eles se diluem. Imaginando-os em meio a emoções, em meio a gestos e à vulnerabilidade de seu destino, o romancista chileno com seu talento e o compromisso que sempre assumiu com o homem, torna essa presença verdadeira e comovente.

 

 

domingo, 6 de agosto de 2006

Aventura sem regresso


            O título anuncia paixões e, maiores ou menores, elas se enleiam em conflitos, traçados por verdadeiras ou pretensas escolhas ou por armadilhas inelutáveis da vida. Tais conflitos pontilham os contos reunidos em Inventário de pequenas paixões: o abandono de um meio de sobrevivência, a constatação de que o dinheiro guardado por muito tempo não tinha mais valor, a surpresa do marido diante de escolhas femininas, o melancólico fim de um amor de adolescentes, o lamentável resultado do jogo de futebol, o suspense que antecede o nascimento do jumentinho; a sensata escolha do novo marido, a atração feminina pelo mundo a ser descoberto, o desencanto a levar ao suicídio; a estatueta que vira talismã. Publicado pela Manufatura, de João Pessoa, este segundo livro de Geraldo Maciel confirma a imensa qualidade literária já presente em Aquelas criaturas tão estranhas, publicado cinco anos antes: o autor paraibano revela possuir não apenas uma imaginação alterosa que, aliada à capacidade de expressar o real, no que ele tem de incongruente, como um certeiro domínio da estrutura do relato. Excepcionais, as narrativas dos encontros entre Aprígio Justo e Antunino, entre Andrezildo e Luízio, enlaçados por raivas perenes ou por uma antiga amizade.

            Em “A doce rapadura da vingança”, como se fosse adequadamente fantasioso, o ódio que se instaura e se alimenta e permanece à espera da hora assinalada para se saciar no sangue do outro. Hora que, nenhum dos dois, e tampouco os que estão à volta, sabem qual será. O relato se inicia com o encontro que não era para acontecer. No fim de tarde, na pequena praça, o destino mexendo seus pauzinhos, a fatalidade calculando seus desígnios Aprígio Justo e Antunino, sem o pretenderem e, tampouco, sem o esperarem, se vêem face a face. Os moleques da rua fogem, as portas e as janelas se fecham e muitos, ainda que tentando se esconder, se aproximam para assistir ao embate. A narrativa torna ao passado e expõe as humilhações que os contendores impuseram um ao outro, seus medos e sobressaltos, a teimosia em odiar, a expectativa do encontro fatal. Torna ao momento da ação quando eles estão frente a frente, cada um com a arma apontando para o inimigo. Os minutos passam e, diante de uma platéia sem respiração, os braços caem, eles se dão as costas e vão embora. A refazer estratégias, a organizar o tempo que ainda teriam para se “dedicar a lamber a rapadura da vingança”.

            Estrutura semelhante tem o conto “A visita”. Andrezildo Varela, sem saber muito bem o porquê, viaja trezentos quilômetros para fazer uma visita. Após a seqüência inicial que se refere aos desígnios do destino, ou divinos ou, simplesmente, da vida, é assim que se inicia o conto: Andrezildo a presumir as razões de sua viagem, uma delas, talvez, o sonho que o vinha atormentando há dezoito anos. E que passa a ser realidade quando ele chega ao presídio e as portas e grades vão se abrindo para lhe dar passagem. O narrador volta no tempo, a esses dezoito anos atrás, para dar ciência do que acontecera: uma jogatina, três parceiros, um assassinato, o que se confessa autor do crime e se deixa prender e o delegado que percebe a mentira embora aceite o dito para não ter que enfrentar aquele que, dos dois, era filho de alguém. Um ou outro desacerto no julgamento e o que o réu não esperava, a condenação a ser cumprida no presídio da capital a ajuda  dada a sua mãe e esse algum dinheiro, roupas e consolos que lhe foram enviados pelo amigo. Assim dizendo, o narrador volta ao presente, ao encontro, no pátio da cadeia, dos dois velhos amigos. O que chegara, não fossem as marcas do passar do tempo, continuando a ser o mesmo: a acenar com o alvará de soltura, com uma vida folgada, com um emprego de pouco trabalho e boa paga, com laços de amizade reatados. O outro, Luízio, na recusa da liberdade, achando motivos para ficar preso. Na verdade, sabendo que encontrara o melhor deles: seus olhos gelados,  seu hálito de cachaça e ódio o diziam. Resposta, sem palavras, que o visitante entendeu porque o tremor que lhe viu nas faces era o mesmo que ele próprio havia sentido dezoito anos antes, quando matara esse tal Ramo, xerém qualquer.