domingo, 28 de maio de 2006

Os peixes


Tanto dentro da forma democrática como dentro de qualquer forma de ditadura, os governos dos países fracos não passam de bonecos nas mãos de poder oculto do Capitalismo Internacional Anônimo [...]. Monteiro Lobato.
 

 Em 1935, Monteiro Lobato publicou, no Diário de São Paulo, “Os grandes crimes contra os povos”, um artigo em que, ainda uma vez, expressa a sua repulsa indignada diante da atuação do Governo Brasileiro. Refere-se, inicialmente, à hipertrofia do jogo financeiro, a determinar uma ordem social que só pode subsistir por meio da destruição cada vez maior de vidas em guerras periódicas e da destruição igualmente monstruosa de produtos de alimentação na paz. E cita dados estatísticos, extraídos de publicações brasileiras e norte-americanas, confiáveis, para enumerar a absurda exterminação de alimentos ocorrida em 1934. Foram toneladas de arroz, trigo, açúcar; foram mil e mil animais abatidos (porcos, carneiros, vacas, salmões); foram árvores frutíferas arrancadas, seus frutos destroçados; leite lançado nos esgotos, chá atirado no mar. No Brasil, oitenta milhões de sacas de café queimados, sistematicamente a partir de 1931, como solução definitiva e perpétua do problema do café. Uma escolha governamental que ignorou as necessidades de seu próprio povo, pois a metade da população do Brasil, na época, não consumia café tanto quanto o interesse da Rússia, então com duzentos milhões de habitantes, que tudo fez para comprar o café brasileiro e não o conseguiu. Além de enunciar o absurdo (óbvio), instituído pelo governo brasileiro ao deixar que o proprietário rural cuidasse do plantio do café, o colhesse, o beneficiasse e depois de ensacá-lo o fizesse transportar em lombo de burro ou em carro de boi para as estações de estrada de ferro ou para os portos quando, então, o tomava e com luxuosa burocracia e alta técnica o queimava, relata o ocorrido com a oportunidade de negociar com a Rússia o excedente do café brasileiro. E o faz com base no que presenciou quando era, em 1930, adido comercial interino nos Estados Unidos e nas gestões que realizou para que a proposta russa – trocar o excesso da produção do café pelos derivados de petróleo que a economia brasileira necessitasse comprometendo-se, ainda, a efetuar o transporte de um e outro produto – fosse concretizada.

            Assim, no início de 1931, quando retorna ao Brasil, Monteiro Lobato traz essa proposta que encaminha, junto com o seu relatório, ao Ministério do Exterior. Como não obtivesse resposta, torna a encaminhar os documentos à Presidência da República e, após um mês de espera, os encaminha a outro ministério. Nenhuma resposta lhe foi dada: A pátria sempre naquele eterno mutismo de peixe que não foi rompido nem para fazer constar uma negativa. Desapontado, insiste, enviando um ofício aos três destinatários, pedindo uma resposta, porquanto se havia comprometido a dá-la ao representante da Rússia. Nada. Silêncio de morte. Os três peixes persistiam na inviolável mudez dos peixes. Envergonhado, abandonou as diligências. Na verdade, envergonhadíssimo da desgraça de ser brasileiro. Porém, lúcido para formular questões acerca da recusa do Governo Brasileiro em realizar um negócio que não apenas iria acabar com a superprodução de café ao ter um comprador tão importante quanto os Estados Unidos, como ao obter gasolina, querosene, óleo combustível e lubrificante, economizar os milhões de dólares, gastos anualmente, na compra desses produtos. Igualmente lúcido ao entender que, certamente, o que faltava ao Governo Brasileiro era a coragem de antepor o bem público, as verdadeiras necessidades do país, a felicidade e a prosperidade de 45 milhões de pobres diabos coloniais que somos, aos interesses dos grupos financeiros daqui, ligados, ao Capitalismo Anônimo Internacional que paira sobre o mundo como tremendo Pássaro Roca controlador dos governos fracos e promotor de guerras entre os governos fortes.        

            Era nos idos de 1930...

domingo, 21 de maio de 2006

A morte das guerreiras


            Rosa, codinome de Maria Célia Correia, foi presa quando seu companheiro já havia desertado. Teria permanecido uma semana na Casa Azul (edificação situada próxima a Marabá que abrigava um Estado Maior ao qual se subordinavam os pára-quedistas de Xambioá e os comandos da selva de Bacaba e onde permaneciam os prisioneiros para serem interrogados), conversando com os militares que a trataram bem. Inclusive, alguns se emocionando ao ouvi-la contar que não era comunista e que para estar junto com o namorado o acompanhara ao Araguaia. Devido ao cerco dos militares não havia podido sair. Assim, ainda que não representasse perigo – e houve militares que pensaram em mantê-la presa, por tempo indeterminado – em nome da segurança, foi executada. Certo dia, embarcou num helicóptero, pensando que fosse fazer o reconhecimento de uma área e entrou para a relação dos desaparecidos políticos.  
            Igualmente executadas, embora já feridas, as guerrilheiras Fátima e Sônia. Helenira de Souza Nazareth, a Fátima, tombou em 28 de setembro de 1972, num confronto com uma patrulha dos fuzileiros navais. No “Diário do Velho Mário”, de autoria de Maurício Grabois, consta que, após matar dois soldados, ferida nas pernas, foi fuzilada.

            A morte de Lúcia Maria de Souza, a Sônia, que anunciou Soldado é cachorro do governo, só atiro em quem tiver galão, se tornou a mais conhecida dentre os militares. Morte que teria sido heróica, digna de respeito até mesmo por parte dos inimigos. Abandonando o curso de Medicina no quarto ano, em 1970 foi para o Araguaia. Bebia água num riacho quando surpreendida por uma patrulha de oito militares. Obedeceu, a meias, a ordem de por as mãos na nuca e levantou o braço esquerdo e com a mão direita foi desamarrando o coldre do revólver. O militar atirou, atingindo-a na coxa e ao perceber que o ferimento sangrava muito, se aproximou. Foi atingido por um tiro no rosto, como também foram atingidos os oficiais que o seguiam. O soldados atiraram e mesmo com muitas balas no corpo a guerrilheira conseguiu fugir e se arrastando se refugiou em meio a umas moitas de capim. Dois militares a encontraram deitada de costas e com a arma na mão ainda quis atirar. Um dos militares pisou-lhe no braço e perguntou o seu nome. Diante da resposta, guerrilheiro não tem nome, ele acrescentou: Nem nome nem vida e apontou, como também um outro soldado, para lhe dar o tiro de misericórdia. Relata: Não soltamos mais o gatilho. Ela ia morrer mesmo, só reduzimos o sofrimento dela. Só paramos quando as balas de nossas metralhadoras terminaram. Ela ficou com mais de 80 furos. E insepulta porque, preocupados em salvar a vida do militar ferido, não perderam tempo com a inimiga morta. Que tampouco foi enterrada pela equipe que foi fotografá-la para reconhecimento em Brasília.

            Nos últimos dias de setembro de 1974, Walkíria Afonso Costa, a Val ou Vera, foi executada com três tiros.

            Estas execuções foram contadas por militares que participaram das ações contra os guerrilheiros no Araguaia a Hugo Studart e tais relatos fazem parte de seu livro A lei da Selva: estratégias, imaginário e discurso dos militares sobre a Guerrilha do Araguaia (Geração Editorial, 2006). Como um grande número de outros , assim, trazidos `a luz, se constituem bem mais do que uma simples reconstituição de fatos. Além de mostrar como as mortes de Fátima e de Sônia, marcadas pela coragem, passaram a alimentar o imaginário dos militares (propósito inicial da pesquisa), dos moradores da região e dos guerrilheiros, leva a imperiosos questionamentos. Entre outros, se fora efetivamente preciso executar as guerrilheiras depois de presas ou feridas; se deveriam ter sido deixados insepultos os corpos dos inimigos abatidos ou enterrados sem a devida identificação. E a uma interrogação maior: de quem emanava a ordem para as execuções?

domingo, 14 de maio de 2006

Perversos descaminhos


O petróleo, agora, parece ser nosso como decanta uma eufórica e entusiasta mensagem do governo. No entanto, não são muitos os que sabem das inimagináveis desgraças e perversos malogros acontecidos, ao longo dos anos, em que a existência de petróleo no Brasil era negada e a sua exploração proibida. Ou das tragédias e dos dramas que atingiram os que afrontaram tais assertivas e tais proibições.


            No capítulo “Os primeiros mártires do petróleo" de O escândalo do petróleo (Brasiliense, quinta edição, em 1951), Monteiro Lobato lembra três deles. José Bach, de nacionalidade alemã, estudou, durante treze anos o litoral de Alagoas e desse estudo se originou a certeza de que era imensa a riqueza de petróleo na região. No dia 26 de agosto de 1918, sentindo-se, talvez, ameaçado, escreve ao Chefe de Polícia de Alagoas, pedindo proteção. Poucos dias depois morre afogado. Ao cruzar  um braço da lagoa, o canoeiro não era o mesmo que sempre o levava: “a embarcação revira e o pobre sábio perece. O canoeiro limitou-se a um banho.

            Pinto Martins, sócio de um senhor de Maceió, que havia adquirido da viúva de Jose Bach os seus estudos e direitos, viaja para Londres e Nova Iorque. De volta ao Rio de Janeiro, telegrafa para o sócio, informando que havia fechado negócio e que assinaria o contrato em três dias. Suicida-se, antes disso, num quarto de hotel, sem que ninguém compreendesse semelhante tragédia [...]. A sua papelada – mapas, relatórios e mais estudos de José Bach – desapareceu do hotel....

            Barzaretti, engenheiro italiano, realizou pesquisas em Mato Grosso. Anuncia que há petróleo no Pantanal e que pretende explorá-lo. Súbito, em Campo Grande, uma bala o pega. Tiro mortal. E de bons efeitos práticos: ninguém mais falou no petróleo mato-grossense.

            A este capítulo, segue-se a “Carta aberta ao Ministro da Agricultura” em que Monteiro Lobato relembra ter escrito um ano antes, uma carta ao Presidente da República em que denunciava a sabotagem sistemática contra o petróleo brasileiro, feita pelo órgão governamental que dele deveria se encarregar. Tendo em vista que nenhuma providência havia sido tomada, explica, decidiu repeti-la como prefácio do livro A luta pelo petróleo de Essad Bey. Como o seu texto teve uma enorme repercussão – muitos jornais o reproduziram – o órgão mencionado se obrigou a fazer um comunicado aos jornais, referindo-se às acusações aleivosas, formuladas por aventureiros de má . Monteiro Lobato reconhece que tal epíteto lhe é dirigido tanto quanto aos heróicos pioneiros que à frente das companhias nacionais procuravam, com tremendo esforço, dar petróleo ao Brasil e se dispõe a fundamentar a sua assertiva de que os aventureiros de má fé, na verdade, eram aqueles que atuavam no Departamento Nacional de Produção Mineral: um órgão de enorme custo para o país. Regido por uma figura decorativa, seus técnicos exerciam, apenas funções burocráticas e suas principais figuras eram o diretor da Geofísica e o diretor de Geologia. Um, o detentor em primeira mão dos resultados dos estudos geofísicos e o outro é o detentor, em primeira mão dos estudos geológicos, isto é, dispõem, sempre, em primeira mão de todos os segredos do sub-solo nacional, revelados pela Geofísica e pela Geologia. Porém, mais estarrecedor, ainda, é a menção de Monteiro Lobato de que, além de serem estrangeiros e exercerem funções no Departamento Nacional de Produção Mineral, esses dois diretores, criaram uma firma comercial para uso externo, a Malamphy & Oppenheim. Oferecem, em revistas estrangeiras, serviços profissionais para os que pretendem se apossar das terras petrolíferas brasileiras, dando, inclusive, como prova de integridade  serem membros de institutos norte-americanos.

            Todavia, nem tais fatos, nem os demais, igualmente graves, que Monteiro Lobato foi denunciando, durante anos, receberam outra reação por parte do governo brasileiro que não fosse a de se mostrar  vilipendiado, vítima de falsas acusações e, portanto, no direito de instituir um processo contra o seu detrator, visando a sua punição. Uma punição que, verdadeiramente, ocorreu  embora baseada em tortuosas vias, pois Monteiro Lobato acabou sendo preso. Na cadeia, ainda escreveu uma carta ao Presidente da República. Datada de 19 de abril, inicia, dizendo que está a lhe mandar um presente de aniversário: a idéia de fundar a Companhia Nacional do Petróleo.

domingo, 7 de maio de 2006

As meninas do caos


             Ao me dirigir para o carro, vi o grupo de garotas, a maioria com idade entre treze e quinze anos, fazendo ponto na calçada, expondo-se seminuas na tentativa de atrair fregueses para um programa. Na verdade, nada que já não soubesse. Jornalista, preparava uma reportagem sobre prostituição infantil. Saíra da redação, como sempre de madrugada e ao atravessar a rua e chegar do outro lado o orelhão tocou. Logo, passando entre as meninas para chegar ao carro, uma lhe chamou a atenção. Aparentemente, nenhuma relação houve entre o tilintar do telefone e a menina. O suficiente, no entanto, para impressioná-lo como irá relatar, mais tarde, ainda com a imagem da menina que não lhe sai da cabeça.  

            É assim que se inicia “Um orelhão toca na noite”, conto que faz parte do volume Contos cruéis: as narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea, organizado por Rinaldo de Fernandes que a Geração Editorial acaba de lançar. Primeiro, dizendo dessa emoção que perdura na lembrança dos olhos grandes, do corpo franzino, da tentativa de se passar por mulher. Depois, o relatar de seu ir e vir nessa noite, do que vinha lhe acontecendo na redação do jornal onde trabalhava, os conselhos dos amigos, as pistas falsas que os colegas lhe davam e a presença de deputados, juízes, empresários, escroques e filhinhos de papai, sugerindo que algo tinham que ver com a matéria que ele estava escrevendo. E o ser chamado à direção do jornal e ouvir as razões que ocultavam a ameaça de ser mandado embora antes de ser designado para uma reportagem sensacionalista numa cidade do interior, afastando-o, assim, da matéria comprometedora sobre fatos que ninguém ignora e que, embora monstruosos, muitos querem mascarar, esconder para que, protegidos por um silêncio conivente, continuem a vicejar. São tais fatos que o narrador-personagem tem diante dos olhos ao sair da redação do jornal e entrar no seu carro: o grupo de meninas, o carro que estaciona, a menina que se aproxima e entra, o carro que se afasta. Cena que se repete e torna a se repetir.

            Como se repetem, para ele, o som do orelhão a tocar e a imagem da menina cujo rosto de criança a maquiagem pesada não consegue esconder e cujo corpo franzino não terminara, ainda,de crescer. Mas, se imagem e som se diluem no cotidiano – no dia seguinte esquecera orelhão e menina – ao escutar a notícia no rádio de que uma menina fora encontrada morta, com sinais de violência, ele se sobressalta. Tem certeza de que era ela e se martiriza imaginando-se culpado, pois a vira entrar num carro que poderia ter fotografado ou cuja placa poderia ter anotado. Porém, à noite, novamente ao sair da redação do jornal, ele a vê, entre as outras, com a mesma pequena saia que de tão curta, mais parecia roupa de boneca que ela havia vestido por engano ou brincadeira, a fazer o ponto e sente um alívio imenso. “Como se não tendo sido ela a menina assassinada, não tivesse havido assassinato. Porém, o orelhão toca e ele se lembra da garota assassinada e se dá conta de que outras garotas continuarão a ser mortas escreva ele ou deixe de escrever a reportagem sobre prostituição infantil. E, nesse constatar que a palavra é inócua e nada irá mudar nos fatos desse mundo, quase sempre cão, se instaura, também, a cruel violência feita da submissão ao inútil e ao precário da lucidez.

            O conto de Geraldo Maciel, um ficcionista que é professor do departamento de Engenharia da Produção da Universidade Federal da Paraíba, fala de coisas chãs: aos poderosos e aos ricos, tudo é permitido, aos assalariados compete obedecer, a liberdade de imprensa é regida por suas próprias leis e seu personagem-narrador, igual a todos os que têm olhos para ver se mostra despreparado para enfrentar a vergonhosa realidade das meninas que se prostituem. Algo assim como um chamado a partir do caos, só o orelhão continua a tocar no silêncio da noite.

            Na contra-capa do livro a pergunta: o que os escritores podem fazer senão retratar esse caos assustador?