domingo, 26 de fevereiro de 2006

Tratado das breves sequências: Anastácia


            No oportuno artigo, “Um escritor e seu tempo”, publicado há pouco na coluna que assina em O Estado do Paraná, Wilson Bueno defende José Saramago das críticas que sofreu no Brasil ao comentar a atual (dir-se-ia perene) crise política. Com o argumento válido e, certamente inquestionável, de que a pátria de um escritor é a sua língua e que a indispensável tarefa de denunciar as mazelas do nosso insensato mundo deve estar alheia a qualquer geografia, Wilson Bueno faz, também, pensar o quanto a maioria dos escritores brasileiros escolheu se manter à margem do que acontece ao seu redor. Pessoas morreram destruídas pela repressão e reinou o silêncio. Pessoas continuam a viver em condições sub humanas e reina o silêncio. Mas, por vezes, em relatos centrados num drama individual, breves seqüências fazem ver os dramas sociais que, para a maioria da elite do país, parecem não existir ou, pelo menos, ter somenos importância. 

            Em Relato de um certo Oriente (Companhia das Letras, 1989, 2005), seu belíssimo livro de estréia, Milton Hatoum anota fragmentos de um cenário e seus atores que, miseráveis, formam um mundo diferente daquele encerrado no espaço da casa onde se abrigam os seus personagens. Mundos separados por um abismo, como o constata a narradora ao percorrer a cidade proibida, porque habitada por homens bêbados e mulheres ladras ou prostitutas e ao deter o seu olhar nas ruelas de Manaus, cujo traçado era uma geometria confusa, e o rio, sempre o rio, era o ponto de referência, era a praça e a torre da igreja que ali inexistiam; nas fachadas de madeira, pintadas com as cores espalhafatosas; nos enxames de crianças nuas e sujas, agachadas sob um céu sinuoso de redes coloridas’; nas mulheres amamentando os filhos, entre nuvens de moscas; na praia de imundícies, de restos de miséria humana; nos homens que brigavam entre si, cicerones andrajosos, de cujos corpos mutilados e rostos deformados com suas vozes que buscavam imitar alguma frase, talvez em inglês.

            Mas é a figura de Anastácia Socorro que assinala este outro abismo: o que separa, no Brasil – numas regiões mais, noutras menos – os que possuem (fortuna), daqueles que são donos somente de privações. Também o assinala, um dos narradores – no romance, são múltiplas as vozes – que dela se ocupa: Hakim, um dos filhos de Emilie matriarca ao redor da qual gravita o relato. Ele rememora, muitos anos passados, o ato de caridade de sua mãe, o dia da oferenda, quando ela distribuía quitutes e guloseimas aos que a esperavam, sob o sol escaldante do meio-dia, diante da porta de sua casa, numa fila que se alongava e na qual não faltavam as crianças, nem os mendigos, nem os doentes. Tampouco, esquece das relações entre sua mãe e a lavadeira. Lúcido, tenta ver no gesto da mãe ao dar comida para os filhos de Anastácia Socorro, uma atitude espontânea e generosa, mas, desta, ele duvida e tem razões para tal: as lavadeiras e empregadas da casa não recebiam um tostão para trabalhar [...]. Como, aliás, é um procedimento corriqueiro no norte, ele acrescenta. Sobretudo, que sua mãe resmungava: Anastácia comia como uma anta e abusava da paciência dela nos fins de semana em que a lavadeira chegava acompanhada por um séquito de afilhados e sobrinhos. Aos mais encorpados, com mais de seis anos era dado um trabalho: limpar janelas e lustres e espelhos, alimentar os animais, catar as folhas do pátio. Porém, a humilhação os transtornava até quando levavam a colher de latão à boca e se escondiam para comer uma comida diferente daquela servida para a família.

            Dessa convivência que se estabelece sob o signo de privilégios e servidões, diz Dorner, o alemão fotógrafo, para Hakim: -Aqui reina uma forma estranha de escravidão. A humilhação e a ameaça são o açoite; a comida e a integração ilusória à família do senhor são as correntes e golilhas.

domingo, 19 de fevereiro de 2006

A linguagem do olhar


            A volta do passeio que fizeram até a praia, devido a um defeito no pequeno caminhão em que viajavam, foi interrompida. No hotel em que se hospedaram enquanto tentavam a solucionar o impasse, Maneco Manivela, um dos três viajantes, acredita estar sendo vigiado pela polícia. Pensa que existem razões para tal, mas, nada comenta com Luiz ou com Leo, seu companheiros, como tampouco expressa seus temores. As suspeitas de que pode ser preso e as suposições a respeito de outros hóspedes do hotel o fazem viver um drama que, sinuosamente, Dyonélio Machado relata em Desolação (reeditado pela Planeta do Brasil em 2005). Mais do que em trocas de palavras e em gestos esboçados, a insegurança, os temores, a desconfiança de Maneco Manivela irão se expressar pelo olhar. Quando descansa no quarto, distraído, o seu olhar errante pode se perder nas manchas de lua que vão salpicando o aposento aqui e ali; quase sem ver, o seu olhar se pousa no rapaz que está do outro lado da rua e na criança arteira que a mãe tem trabalho para cuidar;  ou percorre, com calma, o salão do hotel, em busca da moça que o interessa. Por vezes, o seu olhar acompanha uma ação: quando está se escondendo e quer entrar, outra vez, no seu quarto do hotel, se aproxima da quina da casa e olha para a porta onde o cozinheiro e o investigador falam e procuram ao redor; antes de por em prática o plano para comprar a embreagem que faz falta no caminhão, põe um olhar investigador para dentro do salão do hotel;  e quando se quer pôr a salvo do investigador, planejando sair pelo pátio do hotel e, em dúvida, inseguro, pensa fazê-lo sem olhar para os lados, sem ligar às caras admirativas que o pudessem estar observando.... Então, sai do pequeno quarto da gerência, muito atento. Olha primeiro a sua esquerda: é o salão que ele vê, através do arco. Francamente iluminado, como tudo aquilo ali, está envolvido numa luz avermelhada. Uma nesga de céu – dum céu ainda crepuscular – encaixilha-se numa das portas da frente.

            Há, também, o olhar que nele se fixa: de simples curiosidade como o olhar indagador, parecendo procurar algo do garçom do hotel de Águas Claras e de seu hoteleiro que o espia e lhe depõe uma ou duas vezes o olhar, tornado redondo naquele esforço de reflexão, de compreensão ; e, ainda, o do seu Durval, dono do Hotel Saraiva, de Viamão, cujo olhar agudo nota a palidez de seu rosto quando o informa da prisão do Dr. Matos. 

            Mas, sobretudo, abundam os olhares que estabelecem a incerteza e o medo. O do investigador que o observa e não mais disfarçando uma atitude neutra, lhe arregala “um olho vivo, de interesse; que fumando, com o olhar abaixado gravemente sobre a mão do cigarro, mas olhar pronto a se elevar e “cintilar” ao menor ruído, à menor suspeita; e no hotel, de quando em quando, ergue-lhe um olhar furtivo, o fita longamente enquanto toma a sua média e come o seu pão. Maneco Manivela acredita que é da polícia porque, surpreendido, desvia os olhos, despistando. Ao contrário o olhar do Dr.Matos tem uma luz serena, firme e várias vezes cruza com o seu enquanto escutavam Bagé falar sobre o movimento revolucionário fracassado e seus planos de governo. O interesse que demonstrou pelo que ele dizia, levou o Dr. Matos a preveni-lo ser Bagé um agente provocador. E a mandar-lhe, de presente, “A Cartilha da insurreição” com uma dedicatória que expressa a certeza de que lhe será de proveitosa leitura. Ao folhear o livro e se dar conta de seu conteúdo, Maneco Manivela o fecha, cauteloso, e olha para os lados e para Jó que o entregara, com um olhar que quer penetrar fundo e que só encontra a cara séria e simples de peão de estância.

            Tais referências ao olhar, entre as muitas que pontilham as páginas de Desolação, tanto quanto as zonas de sombra, os diálogos que se interrompem, as idas e vindas da notação do tempo, se inserem, como um recurso de excelência, na intenção de ambigüidade que norteou Dyonélio Machado nesse seu romance, de 1944, que se inscreve, testemunho, no período de obscurantismo de uma ditadura.

domingo, 12 de fevereiro de 2006

O olhar e seu personagem


            Desolação, reeditado em 2005, pela Planeta do Brasil, relata os dissabores de três amigos, que se propondo a um breve passeio até o litoral, se vêem obrigados a prolongá-lo devido a defeito no motor do pequeno caminhão em que viajavam. Para um deles, Maneco Manivela, se inicia, então, uma outra aventura: a de se ver (ou assim acreditar) vigiado por um elemento policial a serviço da repressão.

            Publicado pela primeira vez em 1944, o romance de Dyonélio Machado, mais do que narrar as peripécias em que se envolveram os três amigos, quer registrar o clima de insegurança e temor em que viviam alguns brasileiros sob o signo da ditadura que dominava o país. Paralelamente às andanças do grupo, visando o conserto do caminhãozinho, vai-se instalando em Maneco Manivela o medo de ser preso o que ele não compartilha com ninguém. Drama a conduzir o relato feito, sobretudo, de ambigüidades entre as quais, muitas vezes, a ausência de palavras que expressem a angústia, as dúvidas, a insegurança de Maneco Manivela, são  substituídas pelo olhar. Pelo olhar irão se esboçar os personagens e, pelo olhar irão se estabelecer significados reais ou presumidos.

            Assim, é somente o olhar que marca a presença de personagens efêmeros, apenas mencionados: o mecânico da oficina, onde os amigos foram tentar a compra da embreagem, olhara o tempo todo para eles com uns olhos sorridentes, malandros; o rapaz moço e mal vestido que, na rua, se prontificou a empurrar o caminhão, cujo motor não pegava, tinha um olhar vivo, franco; o outro rapaz, parado perto de um portãozinho, do outro lado da rua e para o qual Maneco Manivela olhara superficialmente, tinha o pé direito, levantado, posto sobre uma saliência do muro e o olhar abaixado, preso a esse pé. Também é o olhar que definirá os sentimentos e emoções de Luiz e de Leo, os companheiros de Maneco Manivela. Luiz, ao escutar uma combinação a ser feita, a fim de negociar a peça que faria o pequeno caminhão funcionar, volta a ter o seu olhar redondo, inquisitivo, admirativo e, em determinado momento, se lembra do olhar do irmão, trabalhando no bar de que eram donos: suspicaz e intolerante, devassando tudo. Irritado, diante de um dos impasses para consertar o carro, olha para Maneco Manivela com um “olhar impaciente e interrogativo; face à tensão de Maneco Manivela com a chegada ao hotel, vindo de Porto Alegre, de um sujeito, cuja presença o intrigara, várias vezes ergue rápido o olhar para o companheiro de viagem, um olhar que espreita os seus gestos, uma provável ação de sua parte. Admirado com a notícia que o Dr. Matos fora preso, os seus olhos fuzilam enquanto Leo, o outro amigo, apenas levanta vivamente os olhos. Porém será um olhar intrigado e um tanto súplice que Leo irá lançar a Maneco Manivela quando ele entra no quarto do hotel e o surpreende contando a Luiz a prisão de um motorista. Olhar que se repete enquanto vai dizendo o que sabe; esperando uma decisão sobre o conserto necessário, tem o olhar suspenso da cara de Manivela. E curioso, se mostrará ao se defrontar com a casa cor-de-rosa de frisos brancos, procurando ver o seu interior, erguendo o olhar furtivamente para a janela entreaberta. Chico Galinha, o dono da casa, que oferece guarida para o pequeno caminhão, ao acompanhar o grupo até a oficina onde pretendiam comprar a embreagem, tem o olhar que fuzila, alerta e ainda com o grupo, olhando para o céu, comenta que irá chover. Sob a ramada de seu jardim, estacionado, o pequeno caminhão. Quando por ele passam, ao entrar na casa, todos lhe deitam um olhar.

            Tais zonas de sombra, tais descrições em que apenas um gesto, uma frase, são suficientes para conferir ao personagem uma vigorosa presença, ao se enlaçar à intrincada teia de olhares – origem de interpretações, suposições e certezas – aprisionarão Maneco Manivela numa trama desconcertante e fugidia .

 

domingo, 5 de fevereiro de 2006

Por conta do surrealismo


   
        
A reunião estava terminando como o entardecer que cede lugar a uma noite assombrada por prenúncios de tempestade. No salão nobre da Prefeitura, ao redor da mesa,  o prefeito, o bispo, o superintendente do Incra, o enviado do governador, o presidente da Associação Rural.  E os representantes dos sem-terra a expor a situação em que viviam sob as lonas – inverno rigoroso que a fome e as doenças tornavam difícil – não minorada, pois o governo apenas prometia. Como resposta, obtiveram somente  promessas a conduzir, ainda outra vez, a um incômodo impasse. Todos compreendiam que as palavras haviam se esgotado. Páginas antes, Orual Soria Machado tinha descrito a marcha dos sem-terra. Um guri que viajava com a mãe, do ônibus, vira a multidão  caminhando pela beira da estrada: parece uma baita lagarta, dissera. Como que surgida da terra doente dos agrotóxicos e enjoada da monocultura, acrescentara o narrador,  ela subia e descia colinas, atravessava riachos e acompanhava a mancha escura do asfalto que, por vezes, não podendo evitar, invadia, pagando com a vida qualquer atrevimento ou descuido. Quando já havia percorrido mais de dezoito quilômetros, no fim da tarde, parara perto de uma pequena cidade, deixando para trás três pontes, dez pontilhões, dezoito mil metros de fios, mais de cinco mil tramas e mourões. E só depois  de muita andar é que os sem-terra chegaram à  Fortaleza dos Amparados, ajeitando-se, nas aforas,  perto de um mato de eucaliptos. Seu acampamento é dado a conhecer pelos olhos da comissão de autoridades que até lá fora para conhecer a extensão do problema. Logo ao chegar, o bispo enxergou uma sucessão escura e indefinida de barracos que se perdiam entre as árvores. Cobertos com plásticos negros e guarnecidos por ramas e capim santa-fé, eram frágeis refúgios contra a chuva e os ventos. Pelos caminhos estreitos, as autoridades foram vendo a miséria – colchão de macegas, cobertores ralos, poucos utensílios de cozinha – e o seu resultado nas mulheres mal nutridas, amamentando crianças com fome, pessoas com tosse, meninos descalços, subnutridos. O narrador diz que a penúria e o desamparo cutucavam os nervos amortecidos da comissão que mergulhava lentamente nessa mancha dolorosa como quem se abriga a atravessar um pântano e  ouvindo dizer que estava faltando tudo: o leite, o arroz, o feijão, cobertores, roupas, remédios. Ao chegar à metade do acampamento já farta do que via, a comissão não quis continuar. O prefeito, como se acabasse de vislumbrar centenas de eleitores ávidos de sua oratória fez promessas e promessas fizeram os representantes do governo e do Incra. As do prefeito e da Diocese – sacos de cereais, agasalhos, utensílios de cozinha, madeira, lona – demoraram três dias, algumas horas e um mundão de minutos  para chegar. As do governo do estado e as do Incra, porém, se dissolveram no passar do tempo e nas razões que ninguém ignora: todos também sabem que o estado enfrenta dificuldades econômicas e as negociações levam tempo, existem procedimentos legais da União que precisam ser respeitados. A quantia que o Governo Federal destinara para cada família de colonos atrasara por problemas burocráticos; ajuda das associações comunitárias e da Igreja diminuía e os ventos fortes destruíam barracos. Fortaleza dos Amparados festejava a inauguração da XXX Feira Agropecuária do Município. As autoridades e os que participavam das atividades econômicas da região estavam ocupados com prêmios, negócios, festejos. Perto dali, com sua fome e seu desamparo, era como se os sem-terra não existissem. Assim, suas perguntas cismentas ficaram sem resposta: como poderiam confiar nos governos ou acreditar nos desígnios de Deus, se a razão daquela luta toda – a família – minguava e morria de inanição em meio aos campos verdes, à gadaria gorda e a muita terra fértil para plantar.

            Náufragos da terra os chama Orual  Soria Machado,   expressão que dá  título a seu romance (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1996): obra de ficção, ele diz,  no qual as coincidências com fatos, nomes e situações, devem ficar por conta de todo o surrealismo que vivemos neste país e na América Latina, onde é difícil separar a imaginação da realidade.