domingo, 25 de dezembro de 2005

O preço da utopia


Salvo aqueles que, ao longo dos anos têm se apropriado, ilegitimamente, das riquezas do Continente, a maioria de seus habitantes sempre esteve à deriva, dona somente de ausências. Porque nunca deixou de lhe ser negado esse mínimo que deveria ser direito de todos para viver com dignidade. Como lhe tem sido, também, negado, almejar tais direitos. Daí ser muitíssimo sugestivo o título do livro de Celso Lungaretti que a Geração Editorial de São Paulo lançou em outubro deste ano: Náufrago da utopia. Pois não apenas expressa o estado de espírito de seu autor como o de muitos latino-americanos que tentaram mudar o destino do Continente e foram massacrados pela repressão; ou, poupados, por sorte ou por circunstâncias, viveram para presenciar os descalabros da miséria, cada vez maior, que reina nos seus paises e das injustiças como norma, resultado das supremas incompetências e dos paroxismos da corrupção de seus governantes. 

            Se, de certa forma, o sub-título do livro, “Vencer ou morrer na guerrilha aos 18 anos” sintetiza e restringe o seu assunto, o que nele é narrado vai muito além de uma experiência individual.

            Escritor, poeta, jornalista a construção de seu relato e o escorreito da linguagem revelam alguém que sabe usar o seu instrumento de trabalho. Dividida em três partes, a narrativa é feita na terceira e na primeira pessoa. Ao tratar do movimento estudantil e da luta armada, não lhe pareceu apropriado – assim Celso Lungaretti o explica – colocar-se como protagonista; ao narrar as torturas sofridas, não se sentiu à vontade para fazê-lo na primeira pessoa que usa, então na terceira parte do livro, quando retoma o controle de sua vida na luta empreendida para esclarecer os episódios que, em 1970, o transformaram num renegado. Opção pessoal que, instigante, dá ao texto algo de ficcional tanto quanto o dinamismo do ritmo narrativo, conferido pelo uso do presente para relatar fatos do passado. Recursos que, juntamente com a linguagem sóbria (raras vezes cede à emoção e se permite um comentário mordaz) estão a serviço de uma tocante narrativa: o caminho percorrido por um jovem que escolhe a luta armada para se opor à ditadura militar vigente e a suas diretivas e que, preso e torturado, atingiu o limite de resistência e cedeu ao ser obrigado a escrever uma carta de renúncia as suas convicções e a dar uma entrevista, dizendo o que lhe ordenavam com armas na mão. E, ainda, ser considerado um delator pelos companheiros de luta e, como tal, responsável pela derrota da guerrilha.

            Denso testemunho sobre uma História que a História Oficial quer ignorar, sepultando-a no silêncio e que Celso Lungaretti torna próxima, mostrando combatentes não como heróis, mas como pessoas passíveis de grandezas e de fragilidades. Vislumbram-se os pusilânimes, os medrosos, os oportunistas, os preconceituosos, os politiqueiros, os temerários, os honestos, os bons companheiros, os que,verdadeiramente, são movidos por ideais. E, assim, também, um testemunho sobre as relações humanas com suas invejas e vaidades que o ideal não é suficiente para vencer. Evidenciam-se, as rivalidades, as bravatas, a arrogância dos que se acreditam intelectuais. E as retóricas inúteis, as dissidências, que, juntamente com a  falta de organização, o seguimento de modelos alienígenas, a inexistência, por falta da instrução militar necessária à luta armada, tornavam mais difícil atingir resultados. E, ainda, o doloroso testemunho desse tempo que passou nos cárceres da ditadura, em que a prepotência e o arbítrio, em nome de verdades ou, mais precisamente, em nome de nada, feriam e ultrajavam e matavam os militantes.

            Mas à juventude é permitido acreditar na utopia. Celso Lungaretti, almejava, como tantos, construir uma sociedade nova. Tinha dezoito anos e lhe era inimaginável prever o preço que pelos seus sonhos ele iria pagar.

domingo, 18 de dezembro de 2005

"A esperança é de cristal"


             Há trinta anos atrás, prêmio Casa de las Américas, La canción de nosotros vinha à luz, em edição da Editorial Sudamericana, de Buenos Aires. Eduardo Galeano era, então, diretor da revista Crisis e já havia publicado Las venas abiertas de América Latina e um livro de contos, Vagamundo. Depois, se seguiriam Dias y noches de amor y de guerra, Memorias del fuego, Patas arriba e Bocas del tiempo além da sua vasta e constante obra jornalística.


             Mestre da narrativa curta, La canción de nosotros é uma exceção entre os seus textos. Romance, panfleto, testemunho ou documento histórico – desnecessário dar-lhe um rótulo pois seu autor não desejou fazê-lo e, certamente, não faltarão teóricos que disso se ocupem – mais pertinente  é se ater a seus temas ou a seu tema central. Obra escrita num momento cruciante para os países latino-americanos, está em uníssono com uma grande parte da sua ficção, quando descreve caricaturalmente o opressor (Gabriel García Márquez, Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos) e, tragicamente, o oprimido (José Maria Arguedas,, Manuel Scorza, Carlos Fuentes, Miguel Angel Asturias).

            O livro, dedicado a Montevidéu, se inicia com um poema e se constrói, sobretudo, a partir de dois destinos: Marino e Ganapán. Entre eles, Fierro. Não mais o de José Hernández porque esse levantou a sua voz, mas um Fierro cuja opção política só o pode aniquilar, por irreversível e porque a repressão dificilmente abre mão de sua presa. Ao redor dos três, os famintos, os marginais, os desempregados. E, dominando a cidade nos seus habitantes, “a máquina”: retrato fiel (e/ou melhorado) ou simples herança daquela que dominou a América Latina no século XVI e seguintes e de cujos feitos Eduardo Galeano extraiu a matéria dos capítulos “El Santo oficio de la Inquisición”: A máquina que tortura, que aniquila, que mata e que, se não se constitui o cerne da obra, é expressão convincente do que em muitas reuniões internacionais se define como atentado aos direitos do homem.

            No relato, Mariano, jovem jornalista de parcos recursos, sente-se realizado apenas em escrever a verdade. Esta escolha – desde os tempos imemoriais, rejeitada pelo poder – ou sua amizade com Fierro, levam-no à prisão.

            Ganapán, criado num orfanato, ex-operário sem trabalho e que, segundo ele próprio, veio ao mundo para sofrer (Nasci torto ou me puseram mau-olhado), encontra Mariano ferido entre as macegas, fugitivo da prisão. Esconde-o no seu barraco, o alimenta, dividindo o quase nada que tem e o trata. Recuperado, um dia, Mariano parte sem se despedir. Tempos depois, volta para agradecer.

            As últimas páginas do livro contam do reencontro dos dois marginalizados: um, proibido de pensar; outro, impedido de conseguir condições para viver. Sob um teto cheio de goteiras que deixa passar a chuva, tomam um pouco de vinho e fumam um cigarro feito de xepas, conscientes e convictos de que somente respirar não basta: algo é preciso fazer. Nesta convicção e nas palavras finais do livro As duas sombras gigantes se aproximaram nas paredes de lata, a simbologia otimista a sugerir um entrelaçar de forças, um intuito de luta.

            No conjunto da obra, a riqueza da palavra, a expressão da angústia, as interrogações, a denúncia da repressão. A cidade sugerida, presente no mar, no porto, nas folhas de plátano, nas gaivotas, no detalhe da vida cotidiana. O temor do hoje que, só por sorte, pode se transformar no amanhã; as perguntas que são reflexões (como é que nós éramos?, Quem éramos?, Não voltarão a se juntar nunca os pedaços que nos fizeram possíveis) ou deveriam levar à reflexão. Sobre a palavra ou sobre o poder da palavra e se basta escrever para redimir-se ou redimir. Ou se, unicamente, a ação é redentora porque a canção se esvai, se dilui num testemunho repetido a exaustão na América, mesmo sendo chama e esperança em dias de paz.

            E a esperança do povo, diz o Eduardo Galeano, é feita de cristal.

 

domingo, 11 de dezembro de 2005

Recursos de Dyonélio

       
Luiz, Leo e Maneco Manivela saem de Porto Alegre, numa sexta feira, para um curto passeio até a praia. Na volta, devem parar em Águas Claras devido a um grave defeito no pequeno caminhão em que viajavam. Encontros ocasionais se sucedem no hotel onde se hospedam até encontrar a solução para o conserto, fazem crer a Manco Manivela que é perseguido pela polícia política. Sem comentar com ninguém as suas preocupações, ele vai se deixando dominar pelo medo. Sinuoso, o relato, mais do que as aventuras dos amigos na pequena viagem empreendida, se constitui de sua aventura interior. É a partir dela que Maneco Manivela irá se revelando em Desolação, romance de Dyonélio Machado, publicado em 1944 e, neste ano, em nova edição da Planeta do Brasil.

            Presa fácil de sustos, receios, angústias que a sua imaginação incrementa e que se traduzem, por vezes, em sensações físicas, por algum momento, procura dormir, descansar, espichar as pernas e dobrá-las como um polvo espreguiçando-se ou, num relaxamento repentino, sentar-se inclinado para a frente, com as pernas afastadas, as mãos unidas, os seus braços, a pender entre os joelhos que se mostram como dois ramos dum compasso de espessura. Quase sempre, se deixa dominar por um medo súbito como uma emboscada, por um desgosto intenso dolorido, como uma ferida sobre o peito; ou se abisma numa apreensão, como se afundasse lentamente no atoladouro; embaralha suas idéias como se uma coisa qualquer caísse sobre um bando de aves e as assustasse e dispersasse.

            Percebe que as tensões lhe enchem os músculos como o vapor enche uma caldeira e que a inquietação os faz vibrar como se houvesse encostado o corpo num motor em pleno movimento. Diante de uma situação, que presume perigosa, sente como que umas picadas de fogo a queimar-lhe o couro cabeludo e os ossos do crânio. Quando imagina que irão invadir o seu quarto, se apossar de sua pessoa e arrastá-lo, o coração como que perde o ritmo natural, um ritmo tão regular como o trabalho do cilindro num motor.

            Como faz do símil um elemento expressivo e determinante para marcar a figura plena de nuanças de Maneco Manivela, o romancista gaúcho, igualmente, o emprega para assinalar gestos, comportamentos de um personagem/figurante do qual nada mais ou pouco mais é mencionado. O empregado do hotel, ao ser chamado, vai atender como acionado por uma mola. Leo, quando carrega a lata de gasolina e a entrega para Maneco Manivela, faz um movimento como que desenrola alguma coisa. E, ao caminhar pelos cômoros, seus pés afundam como quem vai sendo aos poucos engolido por um sumidouro e ao deixá-los para trás, neles ficam impressas suas pegadas fundas como o rasto dum animal do deserto. O solicitador, cujo interesse pelo pequeno caminhão o leva a permitir que seja guardado no pátio de sua casa , quando o estão levando para lá, vai na frente como um guri entusiasmado, alerta. O chofer do Studebaker que encontram na estrada e lhes vende um pouco de gasolina, atenta para o pequeno caminhão, acha graça e vai lhe passando a mão “como se faz com um animal de montaria. Síntese perfeita a delinear Bagé, o elemento provocador (aquele que incita a confidências ou opiniões politicamente comprometedoras, a serviço da repressão), a seqüência que relata como, após contar na pequena roda, na qual se introduzira, suas peripécias revolucionárias, ele vai embora como veio espiando-se, guinando para um e outro lado, como quem percorre um labirinto invisível, por fim esgueirando-se por uma das portas.

            Considerado um escritor em que, no ideário do conjunto discursivo está o realismo, Dyonélio Machado, ao usar o símil em que o segundo elemento, o termo ideal é constituído, quase sempre, de objetos concretos ou de sensações reais, para dizer de seus personagens, como se não procurasse efeitos estéticos, mas, sobretudo, demonstrar ou explicar em busca da precisão.

 

domingo, 4 de dezembro de 2005

Em Desolação, as areias e o Borboleta


            Desolação continua a história que se inicia em O Louco do Cati, onde se interrompe no capítulo treze e cujo epílogo, depois da trajetória narrada em Passos perdidos, somente se dará em Nuanças. Publicado, em 1944, terceiro romance de Dyonélio Machado, acaba de ter, neste ano, uma nova edição, desta vez, da Planeta do Brasil. Como O Louco do Cati e Passos perdidos, é um romance de excepcionais qualidades na perfeição de sua estrutura narrativa e de seus recursos formais que a aparente simplicidade parece escamotear.

            Se abundante é o uso das aspas e das palavras em itálico a marcar ironias, a indicar a visão dos personagens sobre o que lhes acontece, a significar, a respeito de algum objeto, uma função diferente daquela que lhe é própria ou de frases entre parênteses a explicar sentimentos ou idéias, a completar dados ou, ainda, o reiterado emprego do pleonasmo, embora em menor número, neste texto do escritor gaúcho, os símiles não são menos expressivos. Muitas poucas vezes, eles se constroem com as expressões semelhante, qual e parecer. Na sua grande totalidade – mais de cinqüenta – são introduzidos pela partícula comparativa como e se relacionam com circunstâncias do relato e com os personagens. Assim, se referem ao cenário: O campo ao redor doestabelecimento” é raso como uma tábua; às árvores, de copa pequena, troncos grossos, retorcidos como forjados entre tenazes, laboriosamente. Outros, a certo momento do dia, um entardecer que se define por esse halo, cujo lilás desmaiado abraça o horizonte, como num vasto anel; às  nuvens que se cruzam rápidas, como tocadas por esses ventos frios de inverno. Ou à areia, elemento dominante de uma  paisagem desértica que se estende, como uma fita enrugada, amarrotada (dos cômoros), perto do mar, de norte a sul por muitas léguas. Uma areia que entra pela fresta da casa, pousa na comida, nos talheres, na louça, nos copos e no fundo das xícaras, como um açúcar mal dissolvido. Que é levantada pelo vento como uma praga daninha, como uma praga assola a região com seu vôo, e, lançada no ar pela brisa é como um borrifo seco. Areias móveis, tênues e finas que envolvem os homens, soterram a vegetação e quase fazem desaparecer o povoado junto ao mar. Soprando dos cômoros, parecem assim fumegar, como se estivessem ardendo num fogo sem combustão. 

            E, assim, muitos símiles esboçam o Borboleta, pequeno caminhão em que os três moços viajavam nesse passeio que desejavam breve e foi prolongado à revelia de todos, devido a problemas no seu motor. Estático, visto de longe, sob os eucaliptos, quando  voltavam da praia, se mostrava inclinado para um dos lados, como essas velhas diligências que os solavancos e a desigualdade das cargas a suportar, acabavam por tirar de sua posição simétrica de equilíbrio, e que assumiam assim um caráter mais degradado, mas também mais íntimo. Rodando pela estrada, no amanhecer, sua sombra, tornada fantasticamente aguda como uma lança, avança rapidamente à sua frente, como se fosse ferir alguém que estivesse lá adiante, longe. Mas, principalmente, revelam as comparações o que  esse pequeno caminhão significa para os seus  ocupantes. Conferindo-lhes traços que soem ser dos humanos, eles o percebem mudo e enigmático, como um ídolo, familiar e dócil como um animal doméstico, fiel como um bicho, à espera, como um ser vivo, paciente, enquanto opinam sobre ele.

            Então, quando presente nas seqüências descritivas, o símil, neste romance de Dyonélio Machado, busca precisar formas e movimentos. Também, na relação  entre os viajantes e o Borboleta – um personagem mais do que um ser inanimado – evidenciar  os liames não enunciados.

E é no uso de um recurso básico da linguagem – desta forma é considerada a comparação pelos teóricos – que Dyonélio Machado demonstra não apenas uma  escolha pelo despojamento estilístico mas, como disse Guilhermino César, saber amassar o seu barro com estilo próprio, inconfundível.