Em 1987, a
Tchê! de Porto Alegre, publicava, numa tradução de Paulo Hecker Filho, O
inglês dos ossos de Benito Lynch, uma obra perfeita tanto no que se
refere ao fazer literário como à imagem do Continente que oferece. Embora como
os demais romances do escritor argentino não tenha merecido minuciosos estudos
críticos, não lhe faltam definitivos louvores como os de Anderson Imbert que,
ao se deter na sua complexidade interior, no seu espaço, delineado pela cor
local e pelo saboroso linguajar rural onde o romancista tece uma hábil teia de
circunstâncias e acontecimentos e sutilmente observa o despertar do amor,
considera que se trata de uma obra-prima. Porém, mais sutil e nem por isso
menos sugestiva, é a imagem esboçada do Continente, a partir dos personagens
eixos – Balbina e Mister Gray – e das relações que entre eles se estabelecem.
Balbina,
personagem luminosa, símbolo puro da vida
agreste, deixa-se envolver pelo sentimento que pressente no inglês cujos
olhos azuis lhe diziam tantas coisas boas e formulavam tantas promessas na sua
linguagem sem voz e sem palavras. Mas, as palavras, até um certo momento
desnecessárias, terão razão de ser no momento crucial da separação. No monólogo
de Balbina e no diálogo de sua mãe com Mister Gray, fica bem claro o
antagonismo da visão de mundo de um e de outro.
Desesperada
com a partida do inglês, Balbina se refugia no seu quarto e procura entender o
abandono de que foi vítima. Jogada na cama, sem forças, argumenta, busca
soluções: mas se ela havia pedido tanto que ele não partisse...mas não se
tratava de uma ilusão tola que se fizera pois ele havia falado muito claro que
gostava dela...mas ele lhe havia dito que se pudesse evitar nunca a deixaria
sofrer...mas por que não dizia, simplesmente, ao patrão que ia ficar um pouco
mais... mas,por acaso, não tinha dinheiro suficiente para descansar onde bem
lhe aprouvesse...
James
Gray, o universitário inglês continua a trabalhar. Sob o sol e o vento, raspa,
sem vontade, uma velha caveira humana e pensa no diálogo que tivera com a mãe
de Balbina que o recriminava por a ter desenganado. Mim não promete nunca nada, havia respondido. Mas o que não
respondia a si mesmo era como evitar o sofrimento da moça porque, embora a
solução estivesse nas suas mãos, ele não
podia ceder. Seu desejo era trabalhar pela Humanidade, por compromisso moral
contraído consigo mesmo; seu destino, o de perfazer um longo caminho de
progresso escolhido de antemão e marcado pelo cálculo; e como homem prático e
sério tinha recorrido ao sistema mais prático e mais sério também, o sistema da
verdade inconteste. A vítima assim não padece dúvidas. Ou se resigna, ou morre
de dor.
Na
excelente introdução ao romance da edição da Troquel de Buenos Aires, Julio
Caillet-Bois diz que Benito Lynch, ao opor a civilização inclemente,
determinada por razões práticas, ao livre impulso afetivo, insiste num dos
temas do século XIX: o protesto contra as doutrinas materialistas e utilitárias
que irão se impor com os avanços científicos.
Em
O inglês dos ossos, esse repúdio, sem dúvida, contém, igualmente, um
outro, muito peculiar ao Continente. Ingênuos, os hospedeiros de James Gray não
percebem a importância dessas caixas cheias de material arqueológico que ele
envia para Londres; por sua vez, o inglês não se detém diante das lágrimas de
Balbina. Afinal, não tinha vindo para a América em busca de uma mocinha
de rancho para se casar; mas em busca de velhos cemitérios indígenas para
cavoucar depressa. Assim,
acompanhado de suas caixas, contendo ossos de índios, parte Mister James. Não
fora levado a sério ao chegar, montado num petiço e de guarda chuva aberto e
houve risos. Sua partida deixa atrás de si a tragédia mas, não ouviu os
prantos. Como se o pertencer ao mundo dos civilizados lhe desse o direito de
ferir o âmago do Continente: levando embora suas riquezas, impondo, sem
contemplações, o sofrimento àqueles que o acolheram de coração aberto.



