domingo, 26 de junho de 2005

Brasil: o sentir dos outros


São dores antigas de uma guerra que destruiu  o país e que persistentes, levam Félix Moral, personagem narrador de El Fiscal,  romance de Augusto Roa Bastos publicado em Buenos Aires, pela Sudamericana, em 1993, a exclamar: O Paraguai tem bastante experiência com os macacos brasileiros há mais de trezentos anos. Em Paris, seu amigo francês que lhe mostrara o convite para uma grande congresso que seria realizado em Assunção,  chama a sua atenção para um ato, entre muitos outros, que também faria parte do programa: a entrega de casas, implementos agrícolas e generosos créditos para imigrantes de países europeus orientais e asiáticos que desejassem se estabelecer no país. Félix Moral ainda que no exílio, não desconhece a situação de sua pátria,  submissa, há anos,  à vontade de um ditador e  argumenta que existem mais de cem mil camponeses sem terra e outros tantos mil indígenas que são metralhados quando invadem os imensos latifúndios vazios em poder dos que defendem o regime.  E, sem levar em consideração a resposta de seu interlocutor, para quem a defesa da propriedade é sagrada,  acrescenta que as colônias brasileiras no norte da região oeste de seu país, estabeleceram um novo estado em pleno território paraguaio. Uma invasão pacífica com leis, autoridades, moeda e língua, novos bandeirantes que avança na direção da capital e vai estender seus domínio por todo o pais. A resposta, em tom metálico, o aconselha a deixar  os macacos nos seu lugar, pois ninguém pode com o direito do mais forte. E os mais fortes, no caso, são aqueles que usufruem do beneplácito de um governante- tirano,  sabidamente, adicto e confesso,   admirador do Brasil  que, por sua vez,  o irá receber, dando-lhe honras de estado quando  uma insurreição militar o obriga a sair de seu país.

 Mas, igualmente, ninguém pode contra a força da herança do passado. Ainda no Paraguai, antes de seu exílio,  Félix Moral  trabalhou no roteiro de um filme sobre  Solano López. Nesse reaproximar-se da História de seu país,  se depara com os terríveis momentos em que o Marechal  foi ferido pelo golpe de lança do corneta brasileiro, ultimado com um tiro nas costas e, então, mutilado e vilipendiado, preso numa cruz de galhos; igualmente, com aqueles que antecederam a sua morte e com  os que se lhe seguiram , regidos pela embriaguez  da vitória.  


            Relata que na retirada que Solano López empreendeu e quis converter numa  guerra de resistência, em cada alto que fazia, no silêncio da noite, se ouvia um enlutado tambor   que nenhuma patrulha  conseguia calar e que, sob as batidas de um  tocador ubíquo,  se fazia ouvir cada vez mais forte e melhor.  E, assim,   até  a morte de Solano López quando entrou com os invasores em Cerro Corá para retumbar “entre os gritos de júbilo de quinze mil gargantas e as salvas de vitória.

            Depois, o desfile militar dos vencedores: os chefes e oficiais do Império em traje de gala, rutilantes os peitos de condecorações sob o sol de fogo e no silêncio de morte, dominando o acampamento, imobilizada,  a  soldadesca de negros macacos brasileiros .

 E o Paraguai, botim  de guerra das tropas brasileiras por mais sete anos, curvando-se diante das ordens do império que determinavam fosse mantido o domínio militar e político sobre os vencidos. E os vencidos, lutando pela sobrevivência num país devastado e miserável, eram  os inválidos e as crianças. Para conseguir-lhes um pouco de alimento as mulheres  se submetiam à venda de seu corpo. O preço para os estrangeiros que ocupavam o pais era módico: duas bolachas, um pouco de sal e de açúcar e uma tira de charque.

 

domingo, 19 de junho de 2005

Brasil: o olhar dos outros


            O ano de 2005 é o ano oficial do Brasil na França. Em meio a  exposições, filmes, conferências, espetáculos de música,  dança e teatro, o momento é, excepcionalmente, oportuno para o lançamento, pela Gallimard (Paris) de La Salamandre, um romance ambientado no Recife. Embora a capa do livro reproduza um detalhe de “ O Mestiço” de Cândido Portinari com a figura masculina de um  jovem negro, dominando o espaço, a permitir, apenas, a visão distante de um pedaço de céu azul, de duas bananeiras, do quadrado singelo de uma construção e do alinhamento de uma plantação, a narrativa se fixa, sempre,  na personagem feminina. Francesa, chega ao Brasil em novembro para passar um mês de férias. Como reage nos primeiros dias, como se porta ao viver uma aventura amorosa com um jovem mulato, como se deixa destruir  lhe traçam um perfil de mulher que, segundo a Editora, permitirá conhecer uma outra faceta de Jean-Christophe Rufin.

            Autor de ensaios sobre o Terceiro Mundo (Le piège humanitaire, L’empire et les nouveaux barbares, La dictature libérale, L’aventure humanitaire) e de seis romances, entre os quais Rouge Brésil, Prix Goncourt 2001, em La Salamandre, inserindo-se na trama novelesca, o testemunho de sua vivência no Brasil onde viveu muitos anos, médico do movimento humanitário sem fronteiras do qual foi um dos pioneiros.

            Pelos olhos de sua personagem, o cenário tropical, sonho e paraíso, se oferece nas efêmeras cores do mar, (tom de ardósia e de espuma, verde pálido  muito doce) ou das plantações de cana de açúcar (imensas ondas da cor do absinto). Depois, também no contraste urbano dos arranha-céus da orla marítima com as construções menores, casas baixas, por vezes, feitas apenas de tábuas juntas ou pedaços de papelão. Também, no recurso   algo ingênuo de remeter  à cor local: referência à caipirinha , tão do agrado dos turistas,  da qual não é dito o nome mas, sim do que é feita e então, definida como uma bebida doce na garganta como uma calda mas que ferve nas veias e devora a cabeça;  menção ao forró, ao frevo, à capoeira, palavras grafadas em português e em itálico,  assim como uma ou outra frase  da qual a tradução aparece em pé de página . Se ao forró apenas  se refere, o trevo é  explicado como sendo  a música reservada para o carnaval , mistura de melodias da  Europa Central,  sonoridades ibéricas, ritmos negros  da qual os pernambucanos reivindicam a invenção; e à  capoeira, como  dança combate que exige mais do que destreza, uma disciplina e uma fé.  Povoando o cenário, os delinqüentes, dando ensejo a um personagem dizer, com um sorriso do qual não estavam ausente nem a reflexão nem o desprezo: É o Brasil. Cirurgiões formados com as últimas técnicas e tipos na rua que matariam um cego por dez dólares”. E, uma gente sofrida: mulheres carregadas de filhos, homens desdentados, os que, para trabalhar,  saem, cedo, da favela. A favela, onde os ratos correm pelo chão e aparecem, à noite, para devorar recém nascidos e de onde saem, para as ruas da cidade, os bandos de crianças seminuas, de cinco ou seis anos, a viver  de esmolas e de roubos, submissas à autoridade das  crianças maiores se empenhando, sem esperança,  em lutar pela vida sem que lhes seja adjudicada qualquer possibilidade de vitória.

                       

         A palavra favela aparece grafada em português, porém não em itálico. Não é traduzida, tampouco explicada o que leva a crer já seja conhecida de alguns franceses como, talvez o sejam outras tantas situações de miséria do país.

domingo, 12 de junho de 2005

A porfia das árvores


            Félix Moral vive exilado na França onde foi salvo das terríveis seqüelas das torturas a que foi submetido no seu país por Jimena Tarsis com quem passa a viver. Circunstâncias incomuns, a realização de um Congresso Internacional sobre “História, cultura e sociedade na América Latina” na capital do Paraguai,   o levam à inabalável decisão de retornar a sua pátria, acreditando que terá condições propícias para matar o tirano que há anos se mantém no poder. Na viagem, continua a escrever o diário que iniciou algum tempo antes e que  pretende seja lido por Jimena quando ele não mais existir. 
            A segunda parte de El Fiscal, romance de Augusto Roa Bastos, publicado em 1993, pela Sudamericana de  Buenos Aires, tem início com a informação de que dentro de vinte minutos ele  irá chegar a Assuncão.  Porém, desde os nove mil metros de atitude até o momento em que o avião começa a descer,  não lhe foi possível vislumbrar nem o céu, nem a terra, só uma imensidão sem cor, efeito que presume se deva à selvagem destruição dos oitocentos mil hectares de selvas virgens para a construção da hidroelétrica.

            Pouco antes, o comandante  anunciava estarem prestes a atravessar a fronteira Brasil/Paraguai e que, em poucos minutos,  iriam sobrevoar a área central da hidroelétrica. A maior do mundo, ele precisa,  acrescentando  serem  as represas do Niágara ou de Assuán  pequenos charcos diante desse lago de dez mil quilômetros quadrados. E continua, repetindo com a voz cheia de nacional orgulho a fastidiosa enumeração de turbinas e potências que nenhum passageiro entende mas que aplaude,  premiando o seu fervor nacionalista  a guiar, ainda, a apologia desmedida que deixa algo irônicos e incrédulos parte dos convidados, passageiros desse vôo:  A luz da central de Itaipu alumia mais do que o sol, mas não se apaga como o sol, ao cair da noite. O céu noturno e o céu diurno deixaram de serem vistos no Paraguai. Não se  vêem mais, o sol, a lua nem as estrelas....Continuam existindo talvez, mas nem fazem falta...A luz que nunca se apaga de Itaipu ilumina o Paraguai num dia perpétuo como o poder do Grande Reconstrutor....

            Depois, foi a aterrissagem   brusca, a poucos metros da torre, a invasão de homens armados em meio à desordem provocada pelo medo, o assassinato de um dos passageiros, a instalação no hotel luxuoso. E a caminhada noturna  pelas aforas da cidade quando de repente um curto circuito faz desaparecer a luz turva e vermelha que reinava, deixando a noite irromper, esplendorosa, no alto, adornada de astros, o arco da lua, cravado no azul do céu. Logo, a luz fictícia turva e avermelhada volta  a reinar. A imensidão azul e cheia de estrelas, o quarto minguante da lua desaparecem escondidas por uma luz que não era nem do dia, nem da noite. Pelo caminho de terra, entre o capim, Félix Moral se dá conta das partículas macias e olorosas como gotas de chuva intermitente que lhe cobrem o rosto e os ombros. Indaga do menino,   guia dessa excursão noturna,  que explica serem sementes das selvas do Alto Paraná:  Para construir a represa tiveram que derrubar a selva. Cortaram milhões de hectares. Já não há mais mato virgem. Esses brotos de fetos e de outras espécies de árvores escapam da mortandade da madeira. Escapam e voam com os ventos do este e do norte em busca das terras que perderam. Mas não tem memórias. Voam a cegas. O vento os leva para qualquer lugar.

E teimosos,  esses brotos renascem onde encontram uma terra boa. 

 

 

domingo, 5 de junho de 2005

Além do revoar dos pombos


            O continente americano, espaço de crueldades, ilusões, magias. Na sua imensidão, algumas ilhas de trégua, de esperança, interregnos do terror. Nelas, delas, emergem fontes. Matizes, formas, vozes, textos sufocados. Vivências do absurdo, do sangrento, renovados na escrita, procurando uma compreensão do  incompreensível, procurando um desabafo do irremediável: textos depoimentos. Não menos fortes, profundos, cruéis, igualmente refazendo o que foi como se imaginário tivesse sido, os textos de ficção. 

            Da Argentina é Gerardo Mario Goloboff. Poeta, ensaísta, romancista. Criador de palomas, (Buenos Aires, Bruguera, 1984) seu romance desse interregno que então,  vivia  o país. Interregno que se desejaria muito longo e muito eterno para que nele pudessem respirar e crescer os criadores e os pombos.  Os pensadores, os trabalhadores, os artistas e a paz e a ternura. Limpei as macegas que tinham crescido no quintal [...] Pus várias tábuas no galpão desconjuntado. Curei e reavivei a parreira e passei cal nas paredes. Assim começa a última página do Criador de palomas. Um renascer muito simples, como se fosse natural. Uma fé muito grande e muito boa: Estendi, tremendo, o braço e a pomba se aproximou  da minha mão.

            O romance é a história de um aprendizado. Do amor, da ternura, da perda. Pedaços de vida registrados com a aguda precisão de um conhecedor da alma humana. Mas, sobretudo, alma adolescente, desfazendo-se  em silêncio. O contar se apóia em fatos acontecidos no passado a um menino de nove anos, mais tarde, de doze anos: uma festa de aniversário, um almoço de domingo, o incêndio na casa de móveis, um banquete de casamento, a chegada no matadouro para comprar carne, a viagem a outro povoado para vender roupas. Costumes e gentes, algo do país que se define nas sensações: cheiro das acácias, da  terra molhada, dos gravetos de vinha no fogo, do gosto amargo do chimarrão, do sal na carne.

            Mas, o que realmente importa são os pombos. O profundo prazer de tocá-los, o prazer muito grande de amá-los. Imensas presenças femininas: Clara, Verana, Blanca, Pampeana, Carla, a pequena pomba doente. E, mais do que elas, a presença dominante da morte. O menino encontra uma das pombas mortas, jogada no meio de uma pocinha de sangue; outra, com um corte profundo no pescoço, as patinhas cortadas, as asas torcidas, as penas arrancadas. Ainda, outra, com uma bala esburacando-lhe o peito. As demais, caindo longe. Mortes que acontecem de repente e assim de repente, são comunicadas ao leitor. Então, o narrador cala. Um silêncio como que originado do pudor  ou, talvez,  do acreditar desnecessário falar de uma dor já conhecida, experimentada por aqueles que vivem no Continente massacrado. Se as mortes não são explicadas, existem indícios, existem insinuações. Uns e outros diluídos, porém, nos momentos, feitos de brincadeiras e de risos,   vividos pelo menino no qual a violência do extermínio se constitui uma ruptura que, juntamente com o sangue e com o que é definido como esse torneio desproporcional entre a criatura indefesa e os seus captores, se insere no mundo ficcional depois de se ter constituído um cotidiano para muitos.

            Criador de palomas, claros escuros alinhados com a maestria da simplicidade. Ritmo de vida marcado pela morte. Um dizer inocente, um falar sem que se note. Como que seda e lã envolvendo o leitor. Que sem o sentir fica ferido para sempre.