
Augusto
Lins da Nave tem um conhecimento limitado de seu passado. Assim, se instauram
lacunas no relato. Por vezes, dúvidas e interrogações sobre determinadas
circunstâncias se acrescentam a essas lacunas – ele mesmo está convicto de que
para elas nunca terá respostas – e, então, surjem, também, os mistérios. Ele
não conheceu a mãe e, na foto em que está no seu colo, a luz da máquina
prejudicou a imagem e do rosto ficou apenas uma
mancha clara e indistinta. Dela, apenas parece saber o que dizem os outros:
que era bonita. Ao encontrar a foto em que, ainda pequeno, aparece junto da
madrasta, percebe que o seu vestido e o da mãe – brancos e compridos, com
pregas e bordados – são tão parecidos que chega a pensar se era ou não o
mesmo, se elas haviam se conhecido ou tinham sido amigas. Quinze dias depois,
um conterrâneo seu, mais velho, diz ter conhecido a sua mãe, lamentando o que houve com ela e certo de que
morrera há pouco tempo, pois havia lido um convite para a missa. Quando o
narrador esclarece que fora a madrasta quem morrera, mostra estranheza e muda
de assunto. Reafirma com esta estranheza – embora seja assaz frequente que uma
situação, uma história ou um drama familiar sejam conhecidos a meias por
terceiros – que alguma coisa em relação a sua mãe ou a sua madrasta não ficara
muito claro. O que deveras acontece no que diz respeito a Ariana, segunda
mulher de seu pai. Ao saber da sua morte e se lembrar quanto tempo ficara
encerrada num sanatório, faz um esforço – até se abstém de beber para ficar
mais lúcido – para entender, interpretar
os fatos o que já se constitui um indício de que não eram muito simples e
tampouco transparentes. Porém, se consegue sintetizá-los numa sequência lógica, no dia 2 de setembro
de 1945, nos registros anteriores a esse dia relata que no anúncio da missa que
mandara rezar por ocasião de seu falecimento, fizera constar o seu nome de solteira
e o de seu pai, ocasionando a indignação do irmão que argumentou: Ariana nunca teve aquele sobrenome [...]; e que o irmão pagara as despesas do enterro
mas, no túmulo da madrasta, mandou constar apenas um número. O narrador aventa
a hipótese de que Ariana não tivesse sido casada com seu pai, mas, também, a de
que o irmão, talvez, por baixo do pano,
tivesse providenciado uma anulação do casamento. Pergunta-se por quais obscuras
razões, além de mantê-la prisioneira, seu irmão lhe interditara o nome.
Pergunta-se, igualmente, se Ariana era judia ou cigana, uma refugiada de outras guerras, de outras
insânias. E por que, ao escrever a seu
marido fez cópia das cartas que, aparentemente, desejou esconder, ao recortar
a parte superior do papel, eliminando as
datas. Todavia, numerando as cartas na ordem desejada. Em número de quatro,
essas cartas breves, ainda que não
expliquem o porquê do destino que lhe foi dado, sugerem iniquidades que, o
tê-la mantido prisioneira durante anos e a sua revelia, parece ser a prova
inegável. Aparecem transcritas entre as páginas do diário do narrador que as
define como curtas mensagens em que há perplexidades,
súplica, desesperança, humilhação.
Esta
história de Ariana se perde entre as demais que se mostram nas cartas escritas,
a pedido dos interessados, por Augusto da Nave e das quais, também, ele pouco
sabe. Como tudo ignora sobre a mulher por quem se apaixona. E a supor
circunstâncias mais do que a conhecê-las, no seu itinerário amoroso, o
desconhecido se faz presente, instituindo, no relato, novas zonas de sombra.
No
preciso de um espaço e de um tempo demarcados, sucessos que se subtraem ao
conhecimento do personagem narrador. Na história que relata, se estabelece o
enlace de uma inquestionável realidade com aquela outra, passível de se furtar
ao conhecimento mesmo daqueles que a perseguem.
Claros-escuros
ficcionais, sabiamente dominados por Liberato Vieira da Cunha que, em O homem
que colecionava manhãs (Rio de Janeiro, Objetiva, 2004) deixa evidente o
seu talento de narrador.
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