domingo, 13 de março de 2005

As zonas de sombra no relato de O Homem que colecionava manhãs

            Escreve em cadernos onde, como diz em certo momento, anota tudo o que acontece em sua vida. Tem trinta e seis anos e, segundo um das mulheres com quem se envolve, é parecido com Gregory Peck. O que, se não fossem as datas compreendidas entre 25 de maio e 6 de dezembro de 2005, encabeçando cada um de seus registros, também poderia ser, como as balas Sönksen, a Emulsão de Scott, a Maravilha Curativa, as Pílulas do Doutor Ross indicativo, ainda que aproximado, da época em que se passam os sucessos que relata. Outrossim, se por um lado acontecem num espaço determinado, a cidade de Porto Alegre, que, embora jamais descrita, está  presente nos seus logradouros e nas suas instituições e em  dias e horas precisos, eles, também,  estão à mercê das zonas de sombras próprias de uma narrativa feita em primeira pessoa.
 

            Augusto Lins da Nave tem um conhecimento limitado de seu passado. Assim, se instauram lacunas no relato. Por vezes, dúvidas e interrogações sobre determinadas circunstâncias se acrescentam a essas lacunas – ele mesmo está convicto de que para elas nunca terá respostas – e, então, surjem, também, os mistérios. Ele não conheceu a mãe e, na foto em que está no seu colo, a luz da máquina prejudicou a imagem e do rosto ficou apenas uma mancha clara e indistinta. Dela, apenas parece saber o que dizem os outros: que era bonita. Ao encontrar a foto em que, ainda pequeno, aparece junto da madrasta, percebe que o seu vestido e o da mãe – brancos e compridos, com pregas e bordados – são tão parecidos que chega a pensar se era ou não o mesmo, se elas haviam se conhecido ou tinham sido amigas. Quinze dias depois, um conterrâneo seu, mais velho, diz ter conhecido a sua mãe, lamentando o que houve com ela e certo de que morrera há pouco tempo, pois havia lido um convite para a missa. Quando o narrador esclarece que fora a madrasta quem morrera, mostra estranheza e muda de assunto. Reafirma com esta estranheza – embora seja assaz frequente que uma situação, uma história ou um drama familiar sejam conhecidos a meias por terceiros – que alguma coisa em relação a sua mãe ou a sua madrasta não ficara muito claro. O que deveras acontece no que diz respeito a Ariana, segunda mulher de seu pai. Ao saber da sua morte e se lembrar quanto tempo ficara encerrada num sanatório, faz um esforço – até se abstém de beber para ficar mais lúcido – para entender, interpretar os fatos o que já se constitui um indício de que não eram muito simples e tampouco transparentes. Porém, se consegue sintetizá-los numa sequência lógica, no dia 2 de setembro de 1945, nos registros anteriores a esse dia relata que no anúncio da missa que mandara rezar por ocasião de seu falecimento, fizera constar o seu nome de solteira e o de seu pai, ocasionando a indignação do irmão que argumentou: Ariana nunca teve aquele sobrenome [...]; e que o irmão pagara as despesas do enterro mas, no túmulo da madrasta, mandou constar apenas um número. O narrador aventa a hipótese de que Ariana não tivesse sido casada com seu pai, mas, também, a de que o irmão, talvez, por baixo do pano, tivesse providenciado uma anulação do casamento. Pergunta-se por quais obscuras razões, além de mantê-la prisioneira, seu irmão lhe interditara o nome. Pergunta-se, igualmente, se Ariana era judia ou cigana, uma refugiada de outras guerras, de outras insânias. E por que, ao escrever a seu  marido fez cópia das cartas que, aparentemente, desejou esconder, ao recortar  a parte superior do papel, eliminando as datas. Todavia, numerando as cartas na ordem desejada. Em número de quatro, essas cartas breves, ainda que não expliquem o porquê do destino que lhe foi dado, sugerem iniquidades que, o tê-la mantido prisioneira durante anos e a sua revelia, parece ser a prova inegável. Aparecem transcritas entre as páginas do diário do narrador que as define como  curtas mensagens em que há perplexidades, súplica, desesperança, humilhação.

            Esta história de Ariana se perde entre as demais que se mostram nas cartas escritas, a pedido dos interessados, por Augusto da Nave e das quais, também, ele pouco sabe. Como tudo ignora sobre a mulher por quem se apaixona. E a supor circunstâncias mais do que a conhecê-las, no seu itinerário amoroso, o desconhecido se faz presente, instituindo, no relato, novas zonas de sombra.

            No preciso de um espaço e de um tempo demarcados, sucessos que se subtraem ao conhecimento do personagem narrador. Na história que relata, se estabelece o enlace de uma inquestionável realidade com aquela outra, passível de se furtar ao conhecimento mesmo daqueles que a perseguem.

            Claros-escuros ficcionais, sabiamente dominados por Liberato Vieira da Cunha que, em O homem que colecionava manhãs (Rio de Janeiro, Objetiva, 2004) deixa evidente o seu talento de narrador. 

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