As
dedicatórias do livro e aquelas de alguns textos, assim como as epígrafes são
plenas de emoções ou as sugerem. Breves contos, alguns muito próximos da
crônica, formam Lâmina do tempo, livro de estréia de Moacyr Moreira,
publicado pela Ateliê Editorial de São Paulo, em 2002. Momentos do cotidiano ou
do intemporal a exporem a alma humana no indecifrável, no intrincado de seus
sonhos, de seus desejos, de suas lembranças, de suas angústias, sobretudo, no
seu relacionar-se com o tempo – o título da coletânea bem o sugere, no que ele
tem de fugidio.
São vinte e oito
histórias, muitas de amor e quase todas regidas por desencontros.
Palavras caladas, gestos não esboçados que se perdem e deixam o domínio apenas
da solidão: o adolescente que não consegue expressar o seu afeto, a mulher à
espera do marido que não chega, o dissolver-se dos sentimentos, o ato de
esquivar-se ao chamado do amor. No entanto, também, muitas vezes, o aceno da
esperança: os que percebem os primeiro elos se tecendo; os que descobrem, na
faísca do choque entre as pedras, o primeiro mistério da vida; a flor ofertada
para consolar num momento de fracasso: minúscula,
mostrando-se lentamente: suave,
persistente, alvíssima.
E,
entre esses vinte e oito textos, o penúltimo do livro, com menos de duas
folhas, conta do enredar-se de um momento sombrio do passado com o luminoso que
desabrocha no presente. O seu título, “Navio dos escravos”, se explica no
primeiro parágrafo em que, no julgamento de valor, Mais importante que as caravelas foram os navios negreiros, também
está contido um entendimento sobre o tráfico negreiro, preso, sobretudo, à
emoção ao se referir a homens que não possuem esperanças e que trazem no
coração e no caminhar o ritmo de seus rituais. Passado remoto que se insere no
presente, diante de um caminhar de mulher, cujo ritmo e elegância a fazem
diferente das outras. Anunciado é o seu nome e seu perfil, no qual prevalece a insubmissão
rebelde que a separa de seus antepassados. Talvez
neta de escravos em que a pele e os cabelos claros não a eximem de ser filha de Oxossi, de ser banhada pelas águas caudalosos de Iemanjá. E logo, também
anunciado o obstáculo para conquistá-la. Ao não ser como as outras, a
costumeira oferta de flores e viagens resultaria ineficiente e só o espontâneo
levaria à aproximação. O narrador fala de um jogo de sedução – palavras, sorrisos,
reticências – e da frase Você hoje está
mais mulata, retornando à questão da herança negra. Dela, o motivo para as
palavras que enunciam a capitulação feminina: Será que o amor, as paixões que
nos guiam são também herança dos negros? Suficientes para que nada mais
necessite ser dito pois os olhares que se cruzam expressam a inexistência de leis, a instauração das
rebeldias.
Nesse
universo de ficção em que desabrocham amores e amores fenecem, Moacyr Moreira,
nascido em 1972, se revela um escritor que sabe perceber os dramas e as
alegrias dos corações. Também os desacertos do cotidiano hodierno: Hoje, devido à polidez dos lidares diários,
ninguém diz nada a ninguém. As pessoas se odeiam, os dias passam e todos
esperam o momento de nunca mais ver o vizinho, o prefeito da cidade, o próprio
marido. Ou, aqueles maiores, como no conto “Pólvora úmida”, síntese
aproximada, ou não, do que é usual em certos governos, facilmente reconhecíveis
nos meandros de seus sistemas, no que possibilitam a existência de poderes
absolutos tanto quanto insurreições populares que assumem métodos idênticos aos
usados por seus antecessores. Ou, ainda, como em “Grito de gol”, quando
testemunha sobre as mazelas do ensino e sobre métodos da repressão exercida no
país, nos finais dos anos noventa. O personagem
primeiro, é obrigado a se explicar ao diretor da escola onde lecionava
pelo que dissera em sala de aula, definindo a matéria que lecionava e acusando os malditos militares de terem feito uma
reforma de ensino que incluía um bando de asneiras e eliminava coisas essências
dos currículos. Depois, ao chegar em casa e ver tudo destruído, decidir deixar
a cidade, mas, antes disso, ser apanhado e, num carro velho, conduzido a uma espécie de sítio onde foi jogado numa
cela com grades. Volta a São Paulo, novos interrogatórios, outros dias de
prisão até ser solto perto do Morumbi. Caminhava se afastando do Estádio quando
ouviu o grito da multidão a festejar o gol. Entre o barulho dos fogos, também o
dos tiros que o mataram.


