domingo, 26 de dezembro de 2004

Bilhete natalino


             Foi em 27 de dezembro de 1969 que Mário Quinta enviou um “Bilhete” sob a rubrica  “Do caderno H”, publicado no Correio do Povo de Porto Alegre. Na verdade, um poema de muitos versos que ele inicia citando um conceito do poeta latino Valerius Flaccus, autor de Argonáutica,   relembrado diante da pureza intocada da folha em branco na qual deseja escrever uma mensagem de Natal. Mensagem que a página lhe diz ter sido enviada, já há muito, pelos Reis Magos. O poeta recorda da estrela que eles tinham e se pergunta, talvez atônito, onde ela está. Porque, no presente,  elas apenas  se mostram visíveis como as estrelas pirotécnicas / estrelas do mar / estrelas de generais... Hoje se esparramam no céu em efêmeros espetáculos, em encantados mistérios de águas  verdes ou azuis, em realidades cruéis nesse 1969 em que os subterrâneos da ditadura guardavam seus segredos. Talvez razões para que o poeta afirme ser melhor não falar nem escrever, apenas desenhar coisas sem nenhum conceito. Épocas existem em que os conceitos devem ser calados e não é dado saber qual deles o poeta teria desejado enunciar. Cala e, crítico ou melancólico, acrescenta que uma palavra qualquer macularia uma pobre página, ainda nuínha como a verdade. Assim, ainda que toscamente, quer desenhar a Virgem, o Menino, o burrico...  A menção à figura materna com seu filho e do animal, que o diminutivo suaviza, insere no poema, uma imagem terna. Lirismo cujo tom se acentua nos versos seguintes ao se fazer mais presente esse interlocutor a  quem o poeta se dirige. Já presente no início do poema, agora, o poeta o enlaça neste envio não de uma idéia, mas de uma visão: o desenho que deseja esboçar e do qual adviria – a felicidade? a alegria?, a paz? – certamente um bem que sabe ser propício a ele próprio e ao interlocutor: o bem que isso nos faria aos dois. Todavia, algo ainda a conquistar, aprisionado que está nesse tempo de verbo no condicional a remeter a um querer que não culmina no desejado mas, apenas do desejado se aproxima. 

Esse bilhete que se inicia remetendo a um poeta definido como arqui-sofista, que mais adiante questiona o paradeiro da estrela dos Reis Magos e, sobretudo, afirma o possível malefício de uma palavra contrapondo a ela o despojamento da verdade, é um dos poucos poemas de Mario Quintana em que a sua vontade se expressa no condicional.  Se vislumbra o motivo de seu desenho que o dia em que escreve o poema  Hoje ,/ Dia de Natal,   amplia, em sugestões, de certa forma, o dilui, ao enunciar que será feito toscamente o que, no entanto, pode significar pureza e ingenuidade. Se aponta para o bem que tal desenho fará, o verbo imagina, imperativo que dirige ao interlocutor, torna esse bem anunciado para si e para ele, uma hipótese.

Na verdade, na hesitação em querer e não querer dizer, na ingenuidade do desenho almejado, os versos desse Bilhete revelam, principalmente, um ingênuo desejo do poeta de compartilhar um sonho.

domingo, 19 de dezembro de 2004

Faíscas na chuva


            Seu nome, Jaime Espaillat. Seu país, Santo Domingo. Fora ministro do governo socialista de Juan Bosch, eleito em 1961 e deposto sete meses depois. Sérgio Faraco em Lágrimas na chuva : uma aventura na URSS (Porto Alegre, L&PM, 2002) o descreve, nesses idos de 1963, já com sessenta anos, com voz anasalada e olhar manso. Por um breve tempo, seus dias se cruzaram na clínica de reabilitação onde um e outro foi internado por algum ato de rebeldia que desagradou ao Partido. O texto do escritor gaúcho que relata a sua viagem a Moscou para freqüentar, como estudante, a convite do Partido Comunista da União Soviética, o Instituto Internacional de Ciências Sociais e os terríveis momentos vividos sob o efeito de medicamentos num regime de reclusão a que foi submetido como todos aqueles que ousaram criticas às assertivas superiores, foi publicado, primeiramente em A Notícia, de São Luiz Gonzaga de fevereiro a setembro de 2002. São lembranças, diz Sérgio Faraco, em nota quando da publicação do livro, que remetem ao gelo. E os anos que passaram, desde então, não minimizaram os desconfortos originados dos atritos constantes com os demais componentes do grupo de brasileiros, da insegurança gerada pelo golpe de 64 que iria se constituir, não somente um entrave para a volta ao Brasil, mas, principalmente, uma incógnita quanto ao tratamento que lhe seria reservado ao retornar; da grande tristeza causada pela morte acidental de um companheiro; das tediosas visitas às fazendas que deveriam se constituir  modelos de produtividade. Tampouco deixaram esquecer os itinerários de um país fascinante e um percurso amoroso que o transitório de sua situação, na Rússia, transformou em sofrimento. Sobretudo, resguardaram esses momentos ímpares em que, repentinas, emergem, como que do nada  a solidariedade e a gratidão a reafirmar as qualidades do homem.

            Sucumbindo ao cerco mesquinho e hipócrita armado pelo grupo brasileiro do qual fazia parte e pelos anfitriões, é levado a uma  verdadeira situação de horror cujo cenário foi o Hospital do Kremlin e cujo preço, o entorpecimento que o acometia, advindo dos comprimidos e injeções com que era “medicado”. No leito do hospital, sucederam-se os dias brancos, a perda da vontade de sair da cama, a falta de ânimo de sair do quarto. É quando recebe a visita de um dos pacientes que ele já vira passar pelo corredor. Propunha que fizessem a caminhada juntos. Ainda que não lhe tivesse dado resposta, Jaime Espaillat volta no dia seguinte e tanto insiste que termina por convencer. Não somente Sérgio Faraco se submete à ingente tarefa de se erguer do leito, de efetuar o esforço de sair do quarto e caminhar, como também aceita o conselho de não mais engolir os remédios que recebia a cada manhã, numa tigelinha. Assim, lhe foi  possível tornar-se, outra vez, um ser humano normal, capaz de perceber a beleza do bosque de bétulas por onde caminhavam e o afeto de um companheiro que até então lhe fora desconhecido.  
            Antes disso, quando nas férias foi à Armênia, cuja história sempre o atraíra, presenciou uma cena que o tocou profundamente. Viajava no ônibus e de súbito se dá conta de que uma menina de uns oito ou nove anos, que viajava sozinha com um embrulho, fora apanhada  sem passagem. Não levantava os olhos, nem falava para responder às ríspidas perguntas do cobrador. Percebendo que seria devolvida à estrada, Sérgio Faraco prontifica-se a pagar-lhe a passagem e a menina volta para o seu lugar com os olhos baixos. A viagem prossegue e o sol começa a se por e ele dormita. Até  que um  leve susto, como se alguém lhe tivesse tocado a face com um raminho, o faz abrir os olhos e se emocionar com a delicadeza do gesto agradecido da menina que, ao ser surpreendida, recua ruborizada.

            Assim, embora nessa experiência vivida na Rússia, imperassem “ressentimentos e malquerenças, incompreensões e vilanias, a solidariedade e a gratidão – inesperadas presenças – mostraram  quanto é possível o luminoso se inscrever na fosca melancolia das horas.

domingo, 12 de dezembro de 2004

De arames farpados



            Em 1956, Pablo Neruda publica Nuevas odas elementales e “Oda al alambre de púa” (“Ode ao arame farpado”) é o terceiro poema do livro. A estrofe que o inicia, No meu país, / arame, arame... é quase igual a seu último verso: No Chile, arame, arame.... Um círculo que se fecha, aprisionando um espaço bem definido, mas que, na verdade, não se diferencia de outros espaços do Continente: paragens desertas, sem homens, sem cavalos, apenas arames farpados e terras despovoadas: terras emudecidas, terras cegas, / terras sem coração, terras sem sulco. À essa aridez, o Poeta opõe a alegria da abundância que existe em outras terras do planeta, tornando assim mais questionável e cruel a presença agressiva do arame farpado nessa constatação de que nelas poderia existir o trigo, a hortaliça, o queijo, o arroz, a fruta e o pão enquanto, no Chile, só arame ao longo das amplas extensões de vazios. 

            Daniel Viglietti é uruguaio. Também em seu país a imensidão deserta dos campos se recortam, como soe acontecer com os latifúndios, com arames farpados: provas dos sonhos desfeitos de José Artigas, o prócer da Independência de seu país que já no século XIX acreditava pudesse a terra pertencer a todos. Seguindo-lhe o ideal, Daniel Viglietti, uma das figuras mais expressivas da música latino-americana compõe “A desalambrar”, uma canção profundamente ligada à realidade do Continente que, embora tenha sido composta na década de 60, continua expressando os anseios desses homens que o passar dos anos não libera de estarem sempre alijados de tudo o que lhes é devido.

            Em março deste ano, Daniel Viglietti se apresentou na Semana Nacional da Cultura Brasileira e da Reforma Agrária, no Rio de Janeiro, convidado pela Direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Agora, no passado dia 21, cantou em Curitiba no primeiro Festival Latino-americano de Música Camponesa, organizado pelo Governo do Estado do Paraná e pelo MST. No seu repertório, as belíssimas composições “Gurisito”,  em que as palavras gurizinho, crianças, amanhecer, remetem a um futuro demarcado pela esperança da igualdade: “cada criança um pouco, todos tomarão do mesmo leite e do mesmo pão”;  “Soledad Barret”: minha vida inteira não alcança para acreditar que possam fechar a pureza de teu olhar,  um tributo à jovem paraguaia,  vítima da luta clandestina, assassinada no Recife, lembrada pela sua vida, querendo levar a justiça onde não existia, pela compreensão de que as lágrimas devem ser empunhadas para cantar, pela certeza de que a união levará à vitória. E  “A desalambrar”,  cujos sons do violão, lentos e melancólicos se aproximam do sentencioso que, segundo Félix Coluccio  (como também a alegria) define a milonga, ritmo popular escolhido por Daniel Viglietti como acompanhamento para as palavras que expressam o anseio coletivo de séculos. Elas emergem com a autoridade, dada pela razão, que esta terra é nossa a sugerir o ato de tirar os arames que a dividem entre poucos e assim  socializar-lhe a posse; e se dirige aos que a escutam, questionando o estabelecido: eu pergunto aos presentes / se começaram a pensar / que esta terra é nossa / e não do que possua mais. E o estribilho é um chamado à ação: a desalambrar, a desalambrar (a tirar os arames, a tirar os arames).

domingo, 5 de dezembro de 2004

Para constar


 Em “Las vidas del Poeta: Memórias y recurdos de Pablo Neruda”, publicadas em 1962, na revista O CRUZEIRO Internacional há um parágrafo que foi eliminado de Confieso que he vivido (1974). Aquele em que, ao relatar Pablo Neruda sobre esse tempo em que, perseguido pela polícia de seu país, teve que viver escondido no campo, na cidade, nos portos, em acampamentos, recebido por camponeses, advogados, engenheiros, médicos, mineiros, fala na alegria  que, se não fossem as circunstâncias, teria então, sentido. Uma alegria que somente é possível sentir, diz, quando existe uma identificação absoluta de um poeta com o seu povo: Estou consciente de ter alcançado está subterrânea distinção, título raro, louros que muitos desdenham mas que não conhecem. Mais tarde, irá dizer a Sara Vial, na entrevista realizada a 28 de março de 1965, que leu seus versos em lugares que teriam espantado os poetas do passado. Num galpão de tosa de ovelhas na Patagônia, por exemplo, onde os tosadores  interromperam sua tarefa para escutá-lo. E assim foi em Vega Central, o maior mercado popular de Santiago, no Sindicato dos Carregadores onde leu seus versos de España en el corazón para homens que vestiam apenas velhas camisetas manchadas ou tinham o torso nu, como que alheios ao frio do mês de julho e que se emocionaram até as lágrimas, como ele narra em Confieso que he vivido.  E, também, assim foi em Lota, durante o comício em que, ao ser anunciado o seu nome e o título do poema que iria ler, a multidão de mineiros, como um só gesto tirou o chapéu numa calada reverência, feita por dez mil mãos.

            Algo de similar ocorreu no passado dia 20, em Curitiba. Na Programação do “Primeiro Festiva Latino-americano de Música Camponesa”, organizado pelo MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e pelo Governo do Estado do Paraná, entre outros conferencistas, Eduardo Galeano. Uruguaio, autor de contos (Vagamundo), de um romance Prêmio Casa de las Américas 1975, (La canción de nosotros), de breves textos que narram a História da América latina de nossos dias e dele próprio (Dias y noches de amor y de guerra), de um ensaio que foi traduzido em mais de vinte idiomas (Las venas abiertas de América Latina e de Memórias del fuego, cujos três volumes, feitos de pequenos textos, é um dos mais belos livros de Histórias das Américas, é um dos poucos autores latino-americanos, cuja obra, na sua maior parte, traduzida para o português, é conhecida dos brasileiros. Um interesse não muito comum num país em que os leitores, em geral, tem a tendência de acreditar que apenas tem valor o que chega do Hemisfério Norte.

            Já em 1987, a Associação de Professores de Espanhol do Estado do Paraná, realizou de 28 de setembro a 2 de outubro, um Seminário sobre a sua obra. Analisados  Las venas abiertas de América Latina, La canción de nosotros, Memórias del fuego e a sua participação na revista Crisis, respectivamente por Carlos Roberto Antunes dos Santos, Marilena Weinhardt, Francisco de Morais Paz e Roberto Figurelli, professores da Universidade Federal do Paraná, os trabalhos foram publicados no volume II de Cuardernos Hispano-América (Curitiba). No dia em que devia falar Eduardo Galeano, a sala Scabi do Solar do Barão estava repleta para ouvir não apenas um escritor de talento, mas aquele que desafiara os regimes de exceção, chamando, como já ensinava La Fontaine, no século, as coisas pelo seu nome.

            Agora, dezessete anos passados, novamente em Curitiba e participando de uma programação oficial, ao ser apresentado ao público – seus leitores fiéis e os que o vem descobrindo ao longo desse tempo transcorrido e, principalmente, os que fazem parte do MST, a maioria dos presentes – Eduardo Galeano recebe uma ovação que irá se repetir, inúmeras vezes, ao longo da leitura de seus textos. Cada um deles, expressando a realidade do Continente que não consta das crônicas oficiais. Em  “Los nadies” (El libro de los abrazos), “os ninguéns” são esses compatriotas de cidadãos de qualquer país, cuja existência parece constar, apenas, nas estatísticas: nenhum direito possuem e, certamente, nenhum direito irão ter se continuarem na ignorância que lhes coube e lhes nega a consciência de saberem quem são e o que podem ser. Um texto claro e objetivo que, ao ser lido para aqueles cuja luta ainda se prende à conquista dos mais elementares direitos à cidadania  como ter direito à posse de um pedaço de terra, à saúde, à educação, à alimentação e para aqueles que, já não necessitando dessa luta a aceitam como válida e imprescindível, certamente não elude o seu sentido. E esse sentido foi entendido pelos que na sua condição de serem tratados como ninguém, estão conscientes ou se conscientizam de que podem passar à condição de serem efetivamente alguém.

E o entusiasmo dos aplausos enlaçou Eduardo Galeano, arauto de seu tempo, com aqueles que pelas palavras escutadas passaram a perceber muito mais sobre si mesmos.