domingo, 26 de setembro de 2004

Ode a Setembro


Em ambos os lados da entrada do Cemitério Geral, embora a certa distância, grupos de soldados armados vigiavam em carros blindados e em jipes.  Sergio Villegas em “Funeral vigiado”(Los rostros de Neruda, Santiago, Planeta, 1998)
 

Na antigüidade, a ode exaltou heróis e façanhas. Pablo Neruda dela faz a crônica da realidade que o rodeia onde os elementos mais comuns e prosaicos se apresentam numa visão lírica e universal, regida, sobretudo, pela clareza . Nuevas odas elementales foi publicado em  1956, dois anos depois de Odas elementales. Pablo Neruda tinha  cinqüenta e dois  anos e cantava a vida que percebia nos homens e nos seus sentimentos, no mundo feito de cores e sons e formas que encontrava no frêmito da natureza e na imobilidade dos seres inanimados. Entre as cinqüenta composições desse seu segundo livro de odes, estão aquelas dedicadas ao sol, às estrelas, à lua do mar, à cascata, à cordilheira andina, às flores da costa, à rosa. Também ao azeite, à batata, à tipografia, ao arame farpado, a um amor secreto, à solidariedade, e a setembro.


Se na “Oda al mes de agosto” (que pertence ao Tercer libro de las odas, 1957) o Poeta se detém no frio do inverno, no branco, no azul, na neve, numa única rosa, num espaço sem folhas / sem latidos, buscando a solidão absoluta (e ando / até mim, / por fim, na mais clara / claridade da terra), na “Oda a septiembre”, ele deseja oferecer um sentido à vida, um ensinamento. Setembro é o mês que ele diz ser das bandeiras, ser seco e ser molhado. Binômio que lhe dá motivo para um desabrochar de imagens em que se alternam o sol e a chuva: mil flechas de chuva, Lança de sol queimante. E, então, dá ao mês uma presença humana, agraciada com uma relva festiva para seus pés, com um  arco íris para sua cabeça. Presença que, não apenas    se desenha  mas é instada a dançar e a cantar. Cantar, porém, com a voz dos pobres;  dançar, porém, com os pés da pátria, nas ruas com o povo.  E o povo (que é o país e a primavera)  se faz dono  da terceira e última estrofe da ode e está presente nos cachos de uva, nos peixes fritos, no Chile dos vinhedos, do longo litoral marinho.  E o povo  está sob esses signos que logo a seguir se alinham quando o Poeta ordena ao mês de setembro coisas de mágica que assim se mostram a bandeira, a camisa, um par de rosas, uma canção florida, uma guitarra a emergirem do prosaísmo da arca, do subúrbio, da mina, do abandono, do peito para dizer de ideais e de lutas.  Como guia, um inatingível – o sol , / o céu puro da primavera - que a pátria faz vislumbrar de maneira bem real e cotidiana: algo de sonoro dentro de um bolso: a esperança. Nos versos estão as cores ( o verde, o vermelho, o amarelo, o azul); estão os movimentos (a fumaça que sai do teto, o abrir das janelas); estão as formas ( bandeiras desgrenhadas, mina enlutada, pequena corola temerária). E na metáfora, setembro é um vento, um rapto, / uma nave de vinho.

No mundo dos homens, porém, setembro  tem  mil caras e, entre elas, também a da morte que o marcará para sempre: dia 11, o bombardeio da Casa de la Moneda, instaurando o grande luto no Continente. Dia 23, consciente desse luto e de seu significado, a morte do Poeta.

Aqueles que acolheram o esquife de Pablo Neruda, quando de sua morte, no mausoléu da família, pressionados pelo regime pediram que dali os seus restos fossem retirados. Matilde e uns quantos amigos realizaram o translado. Neruda foi dormir num modesto nicho incrustado no muro dos mortos de  setembro. Era o que lhe correspondia. Estava ali com seus companheiros de nomes conhecidos ou simplesmente anônimos. Mas todos tinham caído no mesmo mês e pela mesma causa. (Volodia Teitelboim. Neruda, Santiago. Sudamericana,1996).

domingo, 19 de setembro de 2004

O poder das listas e das estrelas


             Em 1954, a Losada, de Buenos Aires, publica Las Uvas y el Viento, livro que reúne os poemas escritos ou reunidos entre 24 de fevereiro de 1949 e 12 de agosto de 1952, quando Pablo Neruda viaja pela Europa e pela Ásia. Mais do que a visão de um mundo que acredita renovado pelo socialismo é um livro que, nos seus vinte e um cantos, vai  desenhando, nas idas e vindas do Poeta, um mapa lírico no qual cabem as paisagens e os homens, a reafirmação de certezas e os momentos de emoção.

 “La flor de seda” é o título do décimo segundo canto e, como o  segundo,  dedicado à Ásia, nesses anos, agitada por mudanças que o Poeta desejou registrar. O primeiro poema desse canto,  “El lírio lejano” se inicia com a palavra Coréia. Um país  delineado num tempo de transformações, de novas flores, de paz que se eleva; de um traje recente, aquele usado nas fábricas, a substituir o de boneca ensanguentada e da vontade de modelar a própria estrela. No segundo poema, “Los invasores” a estrofe de um só  verso,  feito de uma única palavra, vinieron (vieram) dramaticamente, anuncia aqueles que chegaram: os  que arrasaram com a Nicarágua, os que roubaram o Texas, os que  humilharam Valparaíso, os que oprimiram Porto Rico. Cinco vezes o verbo vieram é usado, insistindo no que, ao longo da História, sempre se repetiu: o domínio de um povo sobre o outro. Reportando-se ao passado e à outras geografias, o poeta lembra os agressores que, agora, chegam, também à Coréia. Eles não são nomeados, mas se definem por seus atos: queimam vivos mãe e filho na aldeia, incendeiam a escola, procuram o último pastor nas montanhas,  matam o prisioneiro no seu leito, destroem vidas e a vida. E pelo caos  - fumaça, cinzas, sangue, morte - que então e somente com a sua presença passa a existir. São conhecidos pelo que possuem – o napalm, os dólares, os aviões assassinos, suas listas e suas estrelas (clara alusão à tão conhecida bandeira), o que não deixa dúvida sobre a identidade daqueles que realizam tais proezas. O terceiro poema, “Las esperanzas”, testemunha esse momento que parece ser de fracasso e ao qual se sucede uma forte razão – um homem, uma nação, uma bandeira – para que retorne a luz e a semente volte a ser semeada. O Poeta, outra vez, nomeia a Coréia, enaltecendo-a ao chamá-la de  mãe de nossa época e mencionado-lhe o sofrimento, advindo da morte de seus filhos e da destruição.O quarto poema, “Tu sangre”, vai  reafirmar as perdas – filhos mortos, filhas mortas – e o sofrimento: Não há número nem há nome / para tantas dores. E exaltar, então, o tesouro que a Coréia deu ao mundo: não apenas a própria liberdade, mas a liberdade inteira, / a de todos, a liberdade do homem. O que, no último poema, “La paz que te debemos” será, outra vez, reafirmado e, outra vez, enaltecido, como  a convicção, tão própria do Poeta, de que As lâmpadas / continuarão acesas / e as sementes buscarão a terra.

            Lírico, seus versos remetem às cores e às flores, ao sacrifício dos heróis.Ao militante, ao sangue vertido e ao valor inigualável da conquista. Porque assim como acredita que o vento irá conduzir as palavras do novo ideal, que é possível elevar a nova estrela ao firmamento, o Poeta conserva a certeza de um florescer das verdades que ele  sempre distinguiu e exaltou.

domingo, 12 de setembro de 2004

A brasileira


            Em junho de 1927, para assumir suas funções de Cônsul do Chile, em Rangum, capital da Birmânia, Pablo Neruda parte de Buenos Aires para a Europa a bordo de um barco alemão, o “Baden”. No seu livro de memórias, Confieso que he vivido (Barcelona, Seix Barral, 1974), lembra essa viagem:  como, de repente,  ele se transformou, deixando  de se interessar pelos outros  passageiros  e pelo oceano Atlântico, que, então, se lhe tornou  monótono para somente contemplar os olhos escuros e largos de uma jovem brasileira, infinitamente brasileira que subiu ao barco no Rio de Janeiro com seus pais e dois irmãos. Além de se referir ao companheiro de viagem, Álvaro Hinojosa ( para viajarem juntos, trocara a passagem de primeira classe por duas de terceira), de suas fórmulas de conquista amorosa  (era um ativo tenório) e de mencionar, rapidamente, os demais passageiros ( imigrantes portugueses e galegos e os outros, sobretudo alemães que voltavam das minas ou das fábricas da América Latina)  nada mais diz dessa viagem que terminou em Lisboa . Na crônica, “Imagen viajera” – a primeira de uma série sobre a viagem , enviada para o jornal  La Nación, conforme mencionam Aída Figueiroa de Insunsa e Edmondo Olivares Briones  no livro Mi amigo Pablo  e que faz parte de Para nacer he nacido (Barcelona, Seix Barral, 1977) -  a jovem brasileira tem uma presença maior. O texto se inicia com uma notação de tempo: é um passado bem recente, de apenas alguns dias para, então,  descrever a baía de Santos, exuberante na sua natureza tropical e em duas breves frases, relatar que ali embarcou uma família brasileira composta do pai, da mãe e de uma jovem muito bela. Logo, lhe fará um cuidadoso retrato:  Boa parte de seu rosto o ocupam os olhos, absortos, negruscos, dirigidos sem pressa, com abundância profunda de fulgor. Sob a testa pálida, fazem notar sua presença num adejo constante. Sua boca é grande, porque seus dentes querem brilhar na luz do mar do alto de seu  riso. Linda morena, compadre. Seu ser começa em dois pés diminutos e sobe pelas pernas de forma sensual, cuja madurez  o olhar quisera morder.  Volta a falar da viagem, da atmosfera tropical que invade o barco. E da bela jovem: Marinech, a brasileira, ocupa todas as tardes a sua cadeira de convés, diante do crepúsculo. Seu rosto levemente se tinge com as tintas do firmamento, as vezes sorri.  No parágrafo seguinte, completa a descrição: Marinech é  minha amiga. Conversa na melosa língua portuguesa e lhe dá  encanto seu idioma de brinquedo. Ela é altiva e pálida, não mostra preferência por  ninguém. Seu olhar, carregado de matéria sombria, está fugindo.  Outra vez, Pablo Neruda torna à natureza nessa hora do crepúsculo em que a invadem as sombras da noite. Sobre a brasileira nada mais é dito.

            Para nacer he nacido é um livro feito de textos de Pablo Neruda reunidos por Matilde Urrutia e Miguel Otero Silva, em 1977, três anos depois de terem sido publicadas as suas memórias e que lhe são, muitas vezes, um complemento. Num  livro e noutro, dois dados sobre  a brasileira não coincidem: o porto de embarque e a composição de sua  família. Em Confieso que he vivido, Pablo Neruda diz que a jovem embarcou no Rio de Janeiro com seus pais e dois irmãos; em Para nacer he nacido que o embarque foi em Santos  e apenas ela com seus pais.


            Instigante, no entanto, é o texto que publicou em 16 de fevereiro de 1962 em O CRUZEIRO Internacional e que faz parte da série “Las vidas del poeta. Memorias y recuerdos de Pablo Neruda”. Lembrando a sua viagem no “Baden”, ele conta:De minha parte, a viagem de repente se transformou e deixei de ver os passageiros que protestavam ruidosamente pelo eterno menu de “Kartoffee”(sic), deixei de ver o mundo e o monótono Atlântico para somente contemplar os olhos escuros e largos de uma jovem brasileira, infinitamente engraçada, que subiu ao barco no Rio de Janeiro com seus pais e seus dois irmãos,  Trata-se, quase do mesmo texto que fará parte de Confieso que he vivido. Dele se diferencia, somente,  pela mudança de uma palavra: no texto de 1962, atribui à brasileira ser infinitamente engraçada;  no texto desse livro, o adjetivo engraçada é substituído pelo adjetivo brasileña o que irá ocasionar um pleonasmo sem dúvida curioso:  uma jovem brasileira, infinitamente brasileira pois, se na primeira vez o sentido  de nacionalidade é inequívoco, na segunda,  talvez,   elogioso,  não está evidente o significado que desejou  lhe dar.

            Porém, o mais intrigante é a presença de uma  breve seqüência que encerra o texto de 1962.  Não faz parte daquele de 1927, quando de sua viagem  e, tampouco das memórias, escritas anos mais tarde que resultaram em Confieso que he vivido. A razão de não ter mencionado essa troca de olhares em 1927 e a razão de ter eliminado a referência que faz a essa troca de olhares no texto que reaproveitou anos depois, parecem fadadas a permanecerem desconhecidas.  Um breve e encantador mistério que só a efêmera emoção alimenta: Aqueles olhos escuros que só ao passar  se enredaram com os meus, duraram muito tempo nas minhas lembranças.

domingo, 5 de setembro de 2004

Chamam de rebeldia


            Em 1872 era publicado Martin Fierro, considerado um clássico da Literatura Hispano-americana e, sobre o qual nunca é demais retornar. Seu protagonista que dá o nome à obra, -  gaúcho perseguido pelo seu modo de vida, em desacordo com o que preconizavam, então, os dirigentes  do país – possui uma incontestável estatura heróica e se converte, diz Arturo Rioseco num símbolo de força moral dentro da história Argentina. Segundo Jean Franco (História da Literatura Hispanoamericana, Barcelona, Ariel,1975), no entanto, durante muitos anos, a sua popularidade entre as massas foi considerada, pelas minorias cultas, quase como demonstração de inferioridade. Porém, no começo do século XX, as opiniões foram mudando. Assim, para o poeta  e  historiador  Ricardo Rojas é  o supremo poema nacional. Por sua vez, Robert Bazin, o francês autor de História de la Literatura Americana en lengua espanhola (Buenos Aires, Nova, 1958), considera que em Martin Fierro  se mesclam a epopéia e a lírica, o patético, o didático e o pitoresco e, principalmente o desejo de protesto que norteia o poema.

            José Hernández, seu autor,  foi viver no campo quando tinha doze anos de idade. Nos anos que se seguiram, conheceu os gaúchos com quem compartilhou  os trabalhos de  domador, os perigos de uma vida em plena natureza,   a força para atravessar rios e se orientar nos imensos desertos,  a coragem para enfrentar  as provocações e as brigas. Seu irmão assim sintetiza a transformação que nele se operou: José se fez gaúcho.  E, assim, pode constatar a situação em que viviam esses homens do campo  que as injustiças e as perseguições transformavam em bandido,

            Em Martin Fierro, José Hernández dessas injustiças e perseguições quer deixar testemunho. Na primeira pessoa, seu personagem relata a vida de agruras – o destino de todos os gaúchos – que levou a partir do momento em que se deixa apanhar pelo serviço militar e é levado para a guarnição da fronteira onde a luta contra os índios é feita sem armas, onde constata a corrupção dos superiores, onde jamais lhe pagam o soldo. Razões que o levam a desertar. Porém, ao chegar de volta a seus campos, encontra só uma tapera. Desesperado, busca consolo numa pulperia, briga, mata e perseguido, passa a  viver se escondendo da polícia. Até que, cercado por muitos soldados,  sua valentia, ao enfrentá-los,  leva um daqueles contra os quais se defende, o sargento Cruz, a ajudá-lo na luta e a desbaratar seus perseguidores. Reconhecendo-se  companheiros de desgraça, decidem abandonar os civilizados, atravessar as fronteiras e se unir aos índios porque lá, os caciques agasalham o cristão. O poema termina com o autor assumindo  a  sua autoria, dizendo que relatou a seu modo  Males que conocen todos / pero que naides contó,  dois versos, graficamente distintos dos demais,  em que não deixa dúvidas sobre a sua intenção.

. Porque a autoridade que decide do destino dos gaúchos,  instaurando a lei da vagabundagem e exigindo-lhes submissão, confunde poder e abuso de poder e se caracteriza pela ladroagem e pelo arbítrio. Martin Fierro,  na consciência  que tem de si mesmo, é, também, capaz de discernir as discrepâncias da ordem social. Sou gaúcho, ele diz, o que significa dar conta das lides campeiras; saber-se orientar nos campos; suportar, sem queixas, as adversidades; não se dar por vencido;  não ter medo.  Renega da autoridade  e a enfrenta: nada o faz recuar, ninguém lhe põe o pé encima; entra e sai do perigo sem que a dificuldade o espante; não se afasta de seu caminho ainda que em sentido contrário venham degolando. E por mais que um rigor o atormente, permanece convicto de que  não deve baixar a cabeça / nunca por nenhum motivo.

            Ao contar seus males, José Hernández não se distancia da abundante vertente literária que, no continente, opõe opressores e oprimidos. No entanto, essa dicotomia constatada se apresenta, muitas vezes, como que imune à transformações; como se um acordo existisse e cada um, o que detém o poder de oprimir e o que à opressão se submete, aceitasse o papel que lhe compete; como se tal dicotomia fosse incapaz de deixar de existir. Porém, o que  diferencia Martin Fierro de muitos dos personagens latino-americanos  é essa visão de mundo que lhe orienta a rebeldia  na busca de resguardar a dignidade a qual julga ter direito.