domingo, 28 de março de 2004

O contrabandista 2


O narrador dos Contos Gauchescos de Simões Lopes Neto (primeira edição em 1912, pela Livraria Echenique de Pelotas) é Blau Nunes, um vaqueano de muito viver, de muito cruzar o Rio Grande em caprichoso ziguezague. Uma vez por outra, lembra o que vivenciou nas suas andanças de tantos anos. Sob o título de “Contrabandista”, vai contar de Jango Jorge, um que foi capitão de uma maloca de contrabandistas que fez cancha nos banhados do Ibirocaí. Mão aberta, brincalhão, passou a vida a atravessar os campos da fronteira. Não temia os senões dos caminhos e tanto enfrentava a escuridão da noite como a cerração da madrugada e a chuva e o vento. Vaqueano, conhecia os campos por onde andava ou pelo cheiro das plantas ou pelo ouvido ou pelo gosto das águas. Antes, porém, de contar seu último percalço, Blau Nunes se alonga em considerações sobre a prática do contrabando que no Rio Grande do Sul sempre existiu, desde em antes da tomada das Missões quando era então sem malícia e mais para se divertir e desalentar as guardas do inimigo.   Entravam campo adentro na Banda Oriental, arrebanhavam gado; e gado, era igualmente, arrebanhado pelos da Banda Oriental numa contínua desforra. Depois, veio a Guerra das Missões e o governo começou a dar sesmaria, mas não proteção e a prática dos monopólios dava lucro apenas a um rei distante. Os estancieiros, em pessoa, iam buscar ou mandavam buscar, do outro lado da fronteira, o que precisavam: pólvora, balas pras pederneiras, carta de jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparo de prata pros arreios... ninguém pagava dízimos dessas cousas. Depois, o tempo passando, as guerras a se sucederem – Guerra dos Farrapos, de Rosas, do Paraguai – se instituiu, para não ir com os cargueiros debalde, o leva e traz: baetas, fumo em corda, cachaça e panos, água de cheiro, armas, minigâncias, remédios. Um negócio sem papéis, sem contas feitas – era só levantar os volumes, encangalhar, tocar e entregar – para o qual não era preciso mais do que ser campeiro, decidido, bem armado e andar em grupo para, eventualmente, dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo.



E Jango Jorge foi maioral nesses estropícios, diz Blau Nunes que se lembra dele depois de muito tempo sem encontrá-lo, chegando no seu arranchamento. Era a véspera do casamento da filha, pois Jango Jorge já estava afamilhado, com mulher e filhos e filha casadoira.Na madrugada, saiu para buscar–lhe o enxoval e o vestido e os sapatos, e o véu e as flores de laranjeira. A festa ia se instalando com as visitas que chegavam e tomavam mate e licor de butiá, com os músicos, com a alegria de que havia de se dançar três dias. Ao entardecer, a mesa posta, vergando ao peso dos pratos enfeitados, a expectativa da chegada de Jango Jorge.

Pungente, em meio à alegria, a tristeza da noiva a chorar e a rir para mostrar contentamento quando já anoitecia e o pai não voltava. E o dia se extinguindo e o pai sem chegar e o seu choro vão anunciando a tragédia que está por vir. Inscrita na ingenuidade de um sonho feminino: o vestido branco, os sapatos brancos, o véu branco, as flores de laranjeira que o pai se propõe realizar, lançando-se uma vez mais no aventuroso e arriscado percurso da fronteira. Interceptado pela polícia, defende a preciosa carga e salva o vestido branco, o véu branco, as flores de laranjeira. Não, porém, a vida que perde ao ser crivado de balas. O silêncio que acompanhou o grupo ao chegar e se alastrou entre aqueles que viram ser descido do cavalo o corpo inerme, a compreensão, antecedendo as palavras, de que a festa terminara, o início da tristeza e o relato do que acontecera cabem em breves seqüências a preparar esse epílogo no qual se reafirma a presença do branco naquilo que fora desejado, já agora maculado pela violência da morte: Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de colorado, num padrão esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!...”.

            O título do conto anuncia essa ousada figura da História do Rio Grande do Sul que de boleadeiras na mão, de laço nos tentos ou de armas ao ombro, em furiosos encontros de arma branca se abrigava sob a lei da fronteira que ( diz Guilhermino César em seu ensaio O Contrabando no sul do Brasil) planava acima do bem e do mal. Nas primeiras linhas do relato, se individualiza pelo nome e ao ser descrito: magro mas sempre teso,beirando os noventa anos. Depois, os adjetivos lhe completam o retrato, como o completam a determinação com que enfrenta obstáculos e suas qualidades de vaqueano. Mais adiante, numa breve seqüência, a informação que se estabelecera e outra, também, breve: O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal enxoval da filha. Ele não se mostra em ação, sim pelo que dele diz Blau Nunes e pelas palavras que reportam seus últimos gestos: enfrentar sozinho e perigosamente, o adversário, avançar para a mula ponteira, apossar-se do pacote que vinha solto e amarrá-lo no corpo para cumprir – e aí o amor paterno apenas se acrescenta ao que já era praxe – o que se propusera. Inscreve-se, nessa defesa da carga e na valentia, na saga que o precede porque esse historiar do Contrabando no Rio Grande do Sul que se insere no relato (o melhor documento para a interpretação do contrabando sulino, diz Augusto Meyer) expressa valores – bravura, lealdade, dignidade na morte, desprezo pela autoridade – que também lhe completam o perfil.

domingo, 21 de março de 2004

O contrabandista 1

            João Ramiro era contrabandista; um dos derradeiros espécimens dessa corporação singular da qual hoje apenas resta a memória, sombra quase expungida nas tradições da fronteira. Com o monarca da coxilha e o vaqueano, compõe a galeria de tipos que, no cenário apenas esboçado e em meio às escaramuças e combates, fazem parte do universo romanesco de Os Farrapos ( de Luiz Alves Leite de Oliveira Belo, Porto Alegre, 1985) cuja ação tem início um ano após a eclosão da Revolução Farroupilha.

            No capítulo oitavo do romance, cujo título é “O Contrabandista”, Oliveira Belo, depois de no primeiro parágrafo, considerá-lo uma espécie já desaparecida, o relaciona com os flibusteiros, seus congêneres norte-americanos para, nas linhas seguintes, historiar-lhe o aparecimento: o monopólio de Portugal e Espanha que, ao explorar as colônias oprimindo-as com regulamentos tiranamente egoístas e brutalmente esterilizadores com rigores vexatórios, levou ao ódio que o despotismo provoca nas consciências apaixonadas e ao exercício da violação da lei. Uma vez que essa lei não podia ser repudiada às claras, o confronto era feito nas sombras da fraude e por um contingente que vivia ignorando o governo oficial, obedecendo à autoridade de sua escolha, alimentando-se de um código próprio, em acorde com os duros e enérgicos ensinamentos que a vida livre, selvática e altiva propiciava a esse verdadeiro corsário da fronteira: o contrabandista. Que será, então, definido pelo seu modo de vida, exposta e de incerto amanhã (habitante das matas e dos desertos), pelas suas lides sempre arriscadas e a medir força e astúcia com os guardas fiscais e seus soldados, com os indígenas e com as feras. E, pelo seu caráter: duro e pronto no combate intransigente contra o inimigo, e sociável, obsequioso, inofensivo e leal com os demais. E, embora sua profissão fosse de fraude, na rebeldia contra o regime asfixiante que impunha o preço leonino ao trabalho de suas vítimas e não titubeasse em lesar a fazenda metropolitana, era de uma honestidade – e, então, o romancista se atém às palavras de Nicolau Dreys – que lhe permitia resguardar um tesouro sem infamar-se nele. Também, do autor de Noticia descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro, ele se ampara. Não apenas para completar o perfil do contrabandista, mas para conferir-lhe um papel bem maior do que o de simples mediador entre os que possuíam mercadorias e os que desejavam comprá-las. Ao afrontar vitoriosamente o jugo ferrenho do ilotismo colonial, o contrabandista limava os grilhões que o arrochavam e, ensaiava no grito de liberdade do lucro comercial o verbo da liberdade nacional; ele foi o precursor desconhecido da independência no novo mundo, o conspirador de uma grande causa.

            João Ramiro, de contrabandista, como seu pai o fora, se torna estancieiro de vastos domínios e numerosos rebanhos. Diante das lutas que se instauraram no Rio Grande do Sul para fugir do jugo da corte, obedece às suas razões – nosso direito é combater e vencer – e marcha com os homens que se dispuseram a segui-lo para se unir aos revolucionários. Como a continuar os percursos que fizera pelos campos ludibriando as leis que, seguindo os farrapos, deseja acreditar que serão outras.

            Tratada a partir das idéias que tem sobre ela os que a atacam e os que a defendem, a partir dos conflitos pessoais que origina e suas ações belicosas, o romancista faz em Os Farrapos a História da Revolução Farroupilha e reelabora – como o diz Cláudio Gabiatti no Prefácio da edição da Fundação Universidade do Rio Grande/Movimento (Porto Alegre, 1985) – dentro da teia ficcional, homens verossímeis, tipos do povo, com seus vícios e suas virtudes [...]. Do contrabandista, Oliveira Belo acredita que “não produziram o estrépito de grandes cometimentos para reboar com a memória de seus nomes pelos tempos avante: seus bramidos de guerra não tiveram repercussão na esfera sonora da literatura; os estos volúveis, fugaces do pampa apagaram os vestígios dos hóspedes aventurosos das restingas e dos ervais, como as ondas do mar desvanecem e olvidam os sulcos, que por elas lavrou a quilha de um navio em viagem. Ao fazer dele um personagem, certamente quis salvá-lo dessa vida que não deixa rastros e não hesitou em se servir do testemunho de Nicolau Dreys que a vários conheceu e com vários tratou. A sua evidente simpatia por esse homem fora da lei, o leva a considerá-lo um ser humano excepcionalmente participante, uma criatura vigorosa que somente se submetia “às ordens de um chefe eletivo, cuja autoridade limitava-se à duração da expedição para a qual tinha sido criado, e cujo poder não reconhecia, às vezes, outro título senão o da força física ou da desteridade, mesmo durante o curso de seu reinado efêmero. Palavras que levam Guilhermino César a lembrar, no seu ensaio O contrabando no sul do Brasil, que se assim pensava e dizia um europeu cultivado que vivia no Brasil às vésperas da independência, muito mais favorável seria, de certo, o juízo de todas aquelas populações menos afortunadas – tropeiros, capatazes, peões de estância, posteiros da Campanha, a gente humilde dos vilórios missioneiros, uns e outros cerceados nos seu crescimento econômico por leis ditadas pela Europa, de cujo alcance não chegavam a formar idéia precisa.

domingo, 14 de março de 2004

Heroísmo semeado no rochedo


            Wilson Martins o considera o romance da revolução de 1835 e, em 1985, quando do Sesquicentenário da Guerra dos Farrapos, como um dos eventos então realizados, foi, novamente, publicado numa co-edição da Universidade do Rio Grande e da Editora Movimento de Porto Alegre. Escrito por Luiz Alves Leite de Oliveira Belo, Os Farrapos apareceu, pela primeira vez, em 1877 e, segundo Cláudio Gabiatti, professor de Literatura Brasileira na Fundação Universidade do Rio Grande, é o único romance em nosso meio, escrito especificamente sobre e com matéria da Revolução Farroupilha que irá fixar não nos grandes combates, não nas cenas épicas, não nas falas heróicas, mas nos indivíduos e nos seus conflitos.

            No cenário que descreve, brevemente, opondo as planícies do extremo sul às montanhas e às matas que formam a topografia do norte do estado se detém em tipos que o habitam e elabora uma trama amorosa de extrema simplicidade que, no melhor estilo romântico, se enreda numa teia de enganos que irão se desfazer nas últimas páginas do livro.

            Assim como no romance O Gaúcho, de José de Alencar, Os Farrapos se inicia com uma descrição de cenário no qual, igualmente, surge um cavaleiro que propiciará a definição do gaúcho – a quem cabem os epítetos de centauro, rei, herói, soberano, monarca da coxilha – numa generalização que se individualiza no personagem Juca Silva. Com Anita, formará o par amoroso que, em ingênuo e inesperado encontro, se faz juras de amor. Trágicas circunstâncias, favorecidas pela guerra, irão separá-los até que os mal-entendidos se desfaçam.

Embora a maior parte das ações que se sucedem sejam de índole guerreira, suas razões, poucas vezes, obedecem aos ideais revolucionários. Então, um apanhado de perfis, um emaranhado de relações, de amizades fiéis, de interesses econômicos e de envolvimentos afetivos delineiam, nas ações e nas palavras, universos díspares, desencontrados. O capitão Álvaro, espalhando incêndios e ruínas e mortes no desfraldar da própria bandeira, escamoteada sob a bandeira tricolor da Revolução; o estancieiro João Ramiro, lançando-se à corrente revolucionária para contê-la nos seus excessos.  Certezas e dúvidas se expõem em diálogos que irão compor o painel da luta, mostrando-a nas suas contradições.

Quando Juca Silva chega na casa do primo para comunicar que, aderindo à Revolução, vai se unir aos combatentes, primeiro escuta palavras indignadas: -Que é isso, homem, você está sonhando ou acordado? Quer ser farroupilha? Caramba! Não tem as maneias nos pés! Vá, mate, estaqueie, queime, roube, apraz-lhe isso? Está pesteado do juízo, o pobre!. Seus argumentos, porém –  os farrapos são soldados que defendem a liberdade, ameaçada pelos monarquistas e que preferem dar o corpo aos corvos e aos caracarás do que viver sem honra, antes brigar nos campos do que dormir como porcos na lama da tronqueira – irão convencer o primo e fazê-lo, também, um adepto da Revolução. Estão prestes a partir quando são interrompidos pelo pai, indignado, e tendo como razão estarem os farroupilhas combatendo contra a lei e que El-rei faz bem em mandar campeá-los como bois fugidos da mangueira, que ganharam o banhado [...], e andar Bento Gonçalves de conchavo com os castelhanos. Juca Silva não se dá por vencido e insiste, não em seguir a castelhanada, mas os que se proclamam livres e testemunha sobre as palavras do general, sobre a sua altivez, mesmo traído e na condição de prisioneiro.

            No capítulo IX, o rico estancieiro João Ramiro chama Juca Silva e o vaqueano Manuel Serrano, homens de confiança, para exprimir suas incertezas a respeito da rebelião: que pedindo aos chefes uma exposição de princípios e fins da guerra em que andam tão acesos, como reposta obteve palavras sonoras que prestam para concitar o povo, proclamações teatrais que o levaram à  convicção de que muitos generais – senão todos – ignoram o que fazer se forem vitoriosos. E que nem o governo do Rio sabe o que faz ou pode levar a cabo o que quer, nem o governo de Piratini conhece os caminhos pelos quais barafustou na confusão do combate. Continua desabafando as suas dúvidas sobre as origens da luta (desgostos e ódios acumulados pelos governos estúpidos ou despóticos, legítima defesa, desforra pessoal) e conclui que, para ser ouvido pelos generais, a sua espada tem que pesar na balança das batalhas. Assim, se decide a lutar. De seus interlocutores, na verdade, ouvintes de seu longo monólogo, Juca Silva não apenas se mostra de acordo com o que escutara – o que eu quero é a liberdade dos nossos pagos – mas estipula a sua linha de conduta:  que eu não quero, e comigo não contem para isso, é combater os caramurus à traição como o canguçu que se esconde na guaxima para saltar pelas costas da rês que vai descuidada. Linha de conduta que é comum à de outros campeiros gaúchos que, antes de partir para a luta contra os legalistas, já haviam estipulado que se acabe com eles brigando no campo frente a frente e não pelo traiçoeiro [...].

            Mais adiante, num capítulo em que aparecem personagens históricos, após uma reunião em que estiveram presentes os principais chefes rebeldes, convocados por Bento Gonçalves, no intuito de estabelecer, entre eles, a unidade e a harmonia, João Ramiro que nela se insinuara, assume a voz da razão para enumerar as fragilidades do movimento revolucionário: não tem exército porque não há comando efetivo; não tem chefes porque não existe subordinação. Grandiloqüente será a resposta de Bento Gonçalves e feitas de entusiasmo as palavras que ao General dirige Garibaldi.

            Nas vozes dos personagens, pruridos éticos, ódio a exigir represálias, vontades perseguindo a realização de sonhos, a lógica da razão conduzem, então, o relato de Oliveira Belo. No seu âmago, o desejo de escrever a História da Revolução Farroupilha, cuja derrota faz dizer a um personagem: Muito heroísmo semeado no rochedo.

domingo, 7 de março de 2004

Também para falar de flores

            É um livro de memórias: Os Saldivas: aprendizados nominais (São Paulo, Geração Editorial, 2003) em que a autora, Rose Saldiva, percorre, outra vez, testemunhando, os caminhos de sua vida. Fundou, com o irmão, uma agência de publicidade que, no dizer de Carlos Heitor Cony, no prefácio do livro, se destacou como uma das mais eficientes e de bom astral de nossa mídia. E nela, Rose Saldiva tem um dos motivos para escrever o seu livro: Achei que seria útil saber como se pode construir uma agência, às vezes rindo muito das bobagens que a vida apronta, às vezes chorando muito porque a vida é cruel. Nas suas lembranças, a emoção desse voltar atrás – vivências da infância, preparação para a vida adulta, sucessos profissionais – onde impera, sobretudo, a alegria de viver. Uma alegria que está presente nos breves capítulos que vão dando conta das travessuras infantis, das descobertas, das mudanças, das conquistas que, sob o signo do querer bem, foram propiciando esse aprendizado, anunciado no título da obra e que, na verdade, é o cerne de suas páginas.
 

            São episódios divertidos (o veterinário que medica o cachorro e a criança com a mesma injeção, a autora, dando, na pressa, para a colega que sentia dor, um remédio contra baba de vaca); breves perfis que emocionam (Dona Tizuka, japonesa, quitandeira, vinda de Mogi das Cruzes, risonha. Falava tudo errado [...]. Tinha de tudo um pouco, mas muito pouco, um pepino, um pé de alface, dois tomates. Ganhava quem comprasse primeiro); menções aos costumes e às modas e à mentalidade de uma cidade que, no início dos anos cinqüenta ainda era horizontal(casamentos com vestido de cauda de 15 metros, tradicionalíssimo. Copiavam figurino de Hollywood, cumpriam o sonho da mãe; era vestido da princesa, da avó, do cinema... Denner a ganhar dinheiro. Na Igreja Santa Terezinha, zona norte da cidade, jogavam-se pétalas de rosas sobre a noiva. O bufê era o França. Tinha orquestra. Jogar o buquê da noiva era o ponto alto da festa. Todos queriam fugir dali, inclusive os noivos). Entremeados em conceitos verdadeiramente oportunos e primorosos, reveladores de um poder de síntese que, aliás, conduz sempre o texto de Rose Saldiva. São muitos e relacionados no final do livro, depois do “Epílogo”. Feitos de máximas e de conselhos se agrupam sob o título O que aprendemos & o que aplicamos e, embora alguns tenham a ver diretamente com a publicidade, a maior parte é constituída de sentenças com um sentido mais amplo (Um sonho não é uma mentira), de conselhos moralizantes (por maior que seja a tentação, não roube) ou a visar o bem conviver (Só compareça se for convidado) ou, simplesmente, o melhor viver (Coloque flores em sua vida). Espelham uma visão de mundo de seu tempo, conservando, porém, (o que se torna assaz raro), valores tradicionais sem, no entanto, se mostrarem austeros como os do Marquês de Maricá que, nos seus quatro mil, cento e oitenta e oito aforismos, reunidos em Máximas, pensamentos e reflexões, somente se permitiram a grande seriedade que um viver na corte, o ter sido agraciado pelos inúmeros serviços prestados ao país com um título nobiliárquico e, principalmente o tê-los redigido quando contava mais de sessenta anos, poderiam explicar. Para Rose Saldiva, circunstâncias muito precisas resultaram em ensinamentos e na sua narrativa, assim inseridos no cotidiano, eles adquirem o significado e o valor da coisa viva. Quando, ainda menina, teve que contar para Dona Isaura, numa festa, o porquê da atenção de seu marido diante de tantos gestos de um primo mudo. Não sabendo o que dizer arranjou uma desculpa: - Acho que estão discutindo política. O que fez Dona Isaura concluir, numa verdadeira e definitiva lição: - Política é conversa de mudo e surdo. Ou, ao sugerir mudar de casa para se livrar de constrangimentos com uma das vizinhas, rebatendo os argumentos da mãe que não concordava com ela, escutou: olhe para a frente e de lá você vislumbrará o horizonte.

            E assim, atenta aos que a rodeiam, atenta às emoções, atenta aos caminhos que trilha, Rose Saldiva se submete às perdas impostas pela vida, que ela quis marcada pelas flores: O símbolo de minha agência é o crisântemo amarelo.