domingo, 31 de agosto de 2003

e de outros...

                                                                             .                                                                                                                                                                     

            A ficção acompanha a vida, mesmo quando apela para a magia.     Dyonélio Machado.

Ele aparentemente narra o trivial, disse Nei Duclós no seu artigo “Quarenta anos de silêncio”, publicado na Folha de São Paulo, em 3 de fevereiro de 1979, a propósito da segunda edição de O Louco do Cati pela Vertente. E, simples parecem ser cada um dos breves episódios do romance e os personagens que vão fazendo parte, embora por pouco tempo, da aventura que foi para o louco do Cati a viagem de Porto Alegre ao Rio de Janeiro e a volta até a região da fronteira do Rio Grande do Sul. E, obviamente, salvo as zonas de sombra a esconder o personagem-guia do relato e os diálogos feitos de meias palavras, não parece existir segredos nesse universo ficcional de Dyonélio Machado que, se surpreende – por utópico – ao afirmar e reafirmar a disposição dos personagens para o ato solidário, não esconde de alguns, no entanto, a visão de mundo, cerceada pela mediocridade que os aproxima do ridículo. Por exemplo, Manuel, tido por um alto funcionário da Light, usando três ou quatro galões dourados em cada punho e cujo serviço consistia em, do centro da cidade, despachar os bondes com um apito. Ou o médico, professor da universidade, que só admitia a entrada na sua casa de quem fosse doutor. E, mais explicitamente, a separação de classes no navio.

            Dyonélio Machado ou ironiza, ou caçoa. No caso do alto funcionário da Light, o narrador se faz presente para observar que no mundo dos funcionários não havia nenhum que não fosse alto. Quanto ao médico, três seqüências lhe desenham o perfil: quando Norberto agradece a ajuda que dera a seu companheiro, ele esboça uma reprovação frouxa com um gesto todo lisonjeado da sua bela cabeça de professor da universidade. Vaidade que irá se manifestar, também, e acrescida da admiração do forâneo, no que se refere a sua casa: recém construída perto do mar, de cujo terraço se avistavam a enseada, o casario de Botafogo e as montanhas. Uma paisagem que a família costumava comparar à da Suíça: Só faltava a neve. E, igualmente, do exagero seletivo quanto aos que a freqüentam. Ao esperar a visita de Norberto e seu companheiro, previne a empregada que, obedecendo aos costumes da casa, só deixa entrar doutores. Assim, ao mandá-los entrar, usa as palavras de costume: -Passe doutor. (Norberto ia na frente).- Passe Dr. Cati o que é jocoso visto que eles não eram doutores e que acabavam (ainda que sem culpa formal) de sair da prisão.

            “As classes de um navio” é o capitulo com o qual se inicia a quarta parte do romance. O louco do Cati, entregue aos cuidados de um casal (designado, ele por o capitalista e ela por sua companheira), viaja para o sul. O fato de estarem em classes distintas dificulta o trabalho de tomar conta dele: como lhe vigiar os passos quando entre eles se interpunha uma separação tão severa como aquela das classes dum navio. Daí a decisão de transferi-lo para a primeira classe o que resulta em matéria de estudo para a alta administração do navio, pois, para o responsável da ordem a bordo, um viajante de segunda (quando há também viajantes de primeira) é tão diferente desses últimos, como se houvesse realmente nascido nessas acomodações inferiores. No entanto, como havia casos de indivíduos admitidos na classe acima, e aqueles que faziam o percurso inverso (tido como uma degradação), o pedido foi considerado. Primeiro, a inspeção do tipo por um membro da tripulação. Depois, informadas as condições para se efetuar a mudança: a quantia que devia ser paga e a promessa a ser assumida pelo passageiro de mudar a roupa, trocando-a por outra de sua nova classe. E, assim, com as despesas pagas pelo capitalista que, também lhe fornece as roupas – embora lhe ficassem grandes, eram regulamentares – o louco do Cati, foi içado à primeira classe do navio. Lugar de privilégios onde a comida, tanto quanto o gelo, era azul, de um azul desmaiado que era a cor da moda; e onde o divertimento consistia em espiar algo de pitoresco que, porventura, houvesse na segunda classe ou o enorme interesse pelo modo como cada um passara a noite.

            É um fazer troça de certos tipos e situações que se inserem no relato – leve sorriso em meio ao melancólico destino do personagem-guia do romance – e se torna digno de nota pela habilidade com que o narrador faz uso de recursos formais, não somente para conduzir à emoção, mas para lançar farpas à conhecida tolice dos que buscam refúgio numa classe à parte no intuito de serem diferentes ( assim eles creditam)  e distinguir-se dos demais.

domingo, 24 de agosto de 2003

De autoridades...


            Em 1942, Dyonélio Machado publica, pela Editora Globo de Porto Alegre, O Louco do Cati (Aventura) cujo nome do capítulo inicial, “A primeira aventura foi no bonde”, reafirma o anunciado no sub-título do romance. E, certamente uma aventura para o louco do Cati, essa longa viagem que o levará de Porto Alegre ao Rio de Janeiro e, de volta, até o extremo sul do Rio Grande. Um percurso no qual ele irá machucar o pé, ser preso e ser posto em liberdade; em que viajará  na caminhonete “Borboleta”, de ônibus, de navio, de caminhão, de trem e de avião; em que irá ganhar agasalho e hospedagem e o cuidado das pessoas que dele se encarregam. Breves episódios que se sucedem, galeria de tipos que desfilam, algo do cenário que se desenha para mostrar esse mundo cotidiano revelado, sobretudo no prosaico, iluminado, às vezes, pelo gesto solidário ou se definindo pelo ridículo que envolve os homens quando se permitem o preconceito ou se atribuem uma autoridade, não raro, estapafúrdia. Como Dyonélio Machado tem olhos para as bondades de que eles são capazes, não lhes escapam, tampouco, esses momentos em que impera a tolice e, maior,  quando advinda daqueles que se acreditam donos do poder (valha o lugar comum) e da verdade. Assim,os episódios em que se defrontam os delegados, o comandante do navio, o chefe da escolta policial e outras  pretensas autoridades menores com aqueles que lhe são ou que devem lhes ser, presumivelmente, submissos.

O delegado de Araranguá, cidade onde Norberto (seria esse o seu verdadeiro nome, Norberto Molina ou José Cândido Morais?) e seu companheiro, o louco do Cati (do qual nunca foi sabido o nome) foram presos, diante do impasse  de lhes conhecer os verdadeiros nomes, sugere que fosse dada a maior  consideração possível aos dois nomes, não porém, ao sujeito em si.  Entre as resoluções, que o caso lhe parecia merecer, tomou, logo, várias e, entre elas, a de considerar os dois sujeitos como presos de importância, pois, na sua opinião, trancafiar alguém sem saber porquê, apenas para agradar a ilustres desconhecidos significa ser esse alguém, de importância. Por outro lado, o ter o companheiro de Norberto gritado, quando foram detidos, levou a polícia a considerar o grito sedicioso e o homem um agitador. Daí a dúvida e o jogo de opiniões, travado no gabinete do delegado: se eles se constituíam um tesouro, que nas mãos da autoridade local seria sem proveito, deveriam ser transferidos. E o capítulo com o sugestivo título de “Um tesouro”, termina com o que foi feito:  E despacharam os indivíduos para Florianópolis.

O outro delegado é do Rio de Janeiro. De rosto pálido, muito bem cuidado, muito distinto, vestindo roupa leve e usando  na mão bonita, bem tratada, um anel de bacharel. Chegou tarde, sentou-se à mesa, logo rodeada pelos altos funcionários, trazendo assuntos para ele resolver o que fazia com pressa, não tinha muito tempo para destinar à repartição. Depois, deu ordens terminantes ao comissário e foi para outra peça, seguido por uma enorme cauda da subalternos, que iam muito satisfeitos, a julgar pelo muito que sorriam entre si.

            No capítulo “Descendo”, o navio segue o seu curso, quando, ao entardecer, dois marinheiros levam  à presença do Comandante o clandestino, acusado de falar mal dele. O diálogo então travado, revela a preocupação do alto funcionário da empresa em saber o que, sobre a sua pessoa, havia sido dito e a submissão dos marinheiros, de olhos baixos, a cabeça abanando cautelosamente, todo um respeito organizado diante da ira do superior.  Além da técnica inventiva, tão própria de Dyonélio Machado, na construção formal do diálogo, a ele se acresce o inesperado motivo de riso com  o qual ele se conclui: -E o que foi que ele disse de mim? – Ele fez: - Huum... – Meta nas grades!.

            Na viagem de navio para o Rio de Janeiro, o chefe da escolta (eram cinco investigadores, duas praças e  um sargento), interpelado por Norberto, que pedia para fazer a barba, argumenta que só havia barbearia na primeira classe e, portanto, impossível de  levar dois presos para lá. Pensara em trazer o barbeiro para o refeitório, mas dependia do comissário de bordo consentir. Norberto, então, pergunta por que não levar o barbeiro para o camarote. A reposta foi que isso era  impraticável pois eles deviam ser mantidos incomunicáveis. E diante do argumento do preso que tanto importava, quanto ao conceito de incomunicabilidade cortar a barba num canto do refeitório como metido no camarote, ou que, então não apanhava bem o sentido da coisa, o chefe da escolta teve o seu sorriso superior de orgulho profissional. – Só mesmo nós, pra pegar bem essa figura jurídica. 

É um nós que também  aparece e em itálico no primeiro capítulo do romance quando o personagem vai pagar a passagem com um dinheiro falso que o cobrador reconhece e rejeita. Logo, depois, porém,  já no meio do bonde, explica que se fosse por ele, receberia o dinheiro mas nós não podemos aceitar. Frase a dar ensejo à intromissão do narrador que aparece entre parêntese para comentar que em toda parte há os que dizem nós e se escusam ou se justificam de qualquer coisa que só a eles não se permite.

            E, subjacente, o nós contido do empregado da delegacia, diante da insistência de um rapaz em querer ser ouvido pelo delegado e que ele  atendia com um sorriso em que havia perdão pela ignorância da pessoa do povo com respeito  aos trâmites judiciais.

São perfis, atitudes, frases que Dyonélio Machado insere no relato com seus experientes recursos de um narrador que sabe muito bem de que barro são feitos os humanos. Porque em O Louco do Cati é dos humanos que se trata.


domingo, 17 de agosto de 2003

O preto e o branco

Jamais se espichem nos temperos é o primeiro conselho antes de passar às receitas da culinária típica do gaúcho sul-rio-grandense. Durante anos, o tradicionalista Glaucus Saraiva os foi coletando entre pessoas simples, sobretudo na região campeira. E, então, simples são os pratos que enumera: Arroz simples, Arroz com couve ou repolho, Arroz com pêssego (inchado), Arroz com bucho, Arroz com lingüiça, Arroz com galinha, Arroz de carreteiro, Feijão preto, Feijão simples, Feijão mexido, Feijão miúdo, Sopa de feijão, e Preto e branco. Eles tem  poucos segredos (pitada de açúcar para quebrar o amargo do pêssego, não pôr sal no início do cozimento do feijão porque ressabeia) nesse mínimo de condimentos de uma cozinha ainda não contaminada pelas novidades importadas de outras plagas. E as recomendações, para chegar a bom termo da cada receita, reafirmam que o sabor do ingrediente básico não deve ser anulado pelo excesso de condimentos e, muito menos, por outros bagulhos de que o gaúcho campeiro nunca ouviu falar. A elas se juntam outras, corriqueiras e, quem sabe, desnecessárias ou não, sobre a intensidade do calor do forno (leve, esperto, forte) ou sobre as medidas, pois não enfrentando bem estas, qualquer receita destrilha e ele cita: xícara, copo, cálice de licor, colher de sopa, colherinha, punhado (a quantidade retida na mão fechada), pitada (a quantidade retida na ponta de uma faca de mesa ou no bico de uma colher de sopa). Tampouco esquece de dizer que a limpeza  é o apanágio de todo bom cozinheiro. No entusiasmo dos sabores,  La fresca, que coisa boa!..., exclama para o mondongo com arroz  e dos cheiros,  o irresistível do arroz de carreteiro, o cheiroso e gostoso de arreganhar as ventas e tremer os beiços do feijão – acaba por legislar que um prato bem feito é um poema.
 
Em “Culinária Gauchesca – Folclore”, texto do “Caderno de Folclore”, que o Correio do Povo de Porto Alegre publicou em 14 de dezembro de 1976, ele não apenas ensina a fazer o arroz e o feijão como o seu linguajar denota o quanto nele convivem, e em harmonia, os dons de cozinhar e de poetar.

A não ser destrilhar, não dicionarizado, com o sentido de sair da linha, e de guasquear regionalismo do Rio Grande do Sul que significa fustigar com a guasca (tira ou correia de couro cru) ou com outro açoite qualquer, os verbos acolherar, amansar, assanhar, bufar, ciscar corcovear, entropilhar, roncar, ressabear, sapecar, de uso corrente, são reinventados nas receitas, quando Glaucus Saraiva lhes dá um inesperado sujeito: o arroz que, ao fritar, recebe a água fervente e que, então, vai corcovear, roncar e bufar mas, que logo se amansa. Os ingredientes para o feijão miúdo que devem ser bem dosados, pois quase todos se entropilham. Ou, os parceiros que podem se acolherar ao feijão. Também, inesperado objeto direto: assanhar a pimenta na panela.

A esse uso de verbos que remetem às atividades típicas do gaúcho nas suas lides campeiras, se acresce o emprego das comparações e das expressões que distinguem a fala sul-rio-grandense. Tendo como primeiro elemento o arroz, as comparações, no seu segundo elemento, se atém ao que está próximo: os grãos de arroz devem ficar bem soltinhos como areão seco, se feito a preceito, o arroz fica cheiroso, soltinho, branco e lustroso como dente de cachorro novo e quando ferve e se alvoroça, é como potro laçado pelas virilhas.
E alguns termos (querendão, bombear, chaira, matambre, guaiaca), o uso de diminutivos (trotezito, carregadito) ou de expressões a moda fronteiriça (ferver no mais) reafirmam a geografia em cuja mesa campeira reinam o arroz e o feijão. Num estudo ímpar de singeleza e lirismo, Glaucus Saraiva lhes canta a simplicidade e o sabor.

domingo, 10 de agosto de 2003

Do ofício de traduzir


Entre 1934 e 1955, Mario Quintana traduziu cerca de trinta obras e, possivelmente, outras mais como contos de Edgar Wallace, usando pseudônimo e aquelas em que – o que parece ter sido usual na época omitir o nome do tradutor – não aparece nem o seu nome e nem algum pseudônimo. Tinha vinte e oito anos quando traduziu, pela primeira vez, para a Editora Globo, chamado por Érico Veríssimo que lá trabalhava e que se lembrou que era o único, entre os seus conhecidos, a saber francês, numa época em que o inglês começara a pontificar no Brasil como o idioma preferido. Em Mario Quintana, sexto volume de “Autores gaúchos”, do Instituto Estadual do Livro de Porto Alegre, nas linhas dedicadas a sua biografia, ele conta que aprendeu o francês em casa onde era falado sem pretensões esnobes, mas para que não entendessem o que falava o pai, um conspirador da Revolução de 23, ou para que estranhos não tomassem conhecimento de assuntos que só diziam respeito à família. Mais tarde, no Colégio Militar, em Porto Alegre, só estudava História, Português e Francês porque as demais disciplinas não o interessavam. Depois, foram os livros de Literatura francesa que, no início do século, alimentavam os intelectuais brasileiros e que deixaram inequívoca marca na sua produção literária como o atesta o trabalho de Zilia Mara Pastorelli Scarpari, “Presença da Literatura Francesa” (Cadernos Porto & Vírgula, 14 Porto Alegre, Eu, 1997). Para a Editora Globo,  traduziu obras de Guy de Maupassant, André Maurois, Madame de La Fayette, Prosper Merimée, Voltaire e Marcel Proust. O primeiro volume de A la recherche du temps perdu foi publicado em 1948 quando Mario Quintana já tinha uma assaz longa experiência. No entanto, não lhe resultou um trabalho fácil, como o comprovam suas palavras muitos anos depois, no texto publicado sob a rubrica “Do Caderno H”, no “Caderno de Sábado” (Correio do Povo de Porto Alegre, do dia 23 de agosto de 1980). Sem título, se inicia com a frase O tema é a tradução e seus problemas e entre os que enumera, já conhecidos, como achar que traduzir do espanhol é apenas copiar; ou as “arrumações” dos revisores ou a, infelizmente, irreparável invasão dos sucessos alienígenas de enorme consumo e rápido desaparecimento, dando origem à mão-de-obra barata. Primeiro, comenta sobre a forma de remuneração do tradutor: por página ou com ordenado mensal fixo? Esquece de falar sobre as vantagens e desvantagens de um ordenado mensal para o tradutor e se estende no perigo que pode resultar de um trabalho remunerado por página quando a pressa para torná-lo rentável conduz a um resultado deficiente. Como exemplo de uma tradução, a requerer tempo, cita André Gide e Marcel Proust. E lembra que ao traduzir A la recherche du temps perdu, seu trabalho mensal exigia um número determinado de páginas, cujo mínimo ele nunca atingia, diante das dificuldades do texto proustiano e das quais ressalta e extensão das frases: Tem ele períodos de quadra e meia. Era preciso dar-lhes o equivalente em português, sem que a complexidade do texto interferisse em sua clareza. Ficava, às vezes, tão abafado que saía na quadra, ruminando as suas longas frases, mas ao ar livre. Mais tarde, em 1984, ao ser entrevistado para os “Autores Gaúchos”, outra vez menciona essa dificuldade com as longas frases de Marcel Proust: Uma barbaridade traduzir aqueles períodos que dão volta na esquina e não se sabe onde vão parar. Dificuldade que, certamente, venceu, pois o cotejo de seu texto com o de Proust testemunha essa qualidade que leva Maria da Glória Bordini (“Mario Quintana tradutor”, “Caderno de Sábado” do Correio do Povo do dia 31 de julho de 1976) a considerar que chegou a verter Proust tão quintanarmente e ao mesmo tempo tão proustianamente que não é fácil distinguir o que é de um e de outro nos textos. E que também leva a Beatriz Viégas-Faria (“O tradutor”, Cadernos Porto & Vírgula, 14) a se referir ao dito popular Qui du cul d’un chien s’amoureuse / il lui paraît une rose que Mario Quintana, respeitando a rima, a analogia e o sentido, traduz para Quem suspira ante o rabo de um cão / Só vê nele uma rosa em botão.


Na verdade, ainda que tenha enveredado, casualmente, no ofício de traduzir, Mario Quintana o exerceu – como acontecia com os demais do grupo que trabalhavam para a Editora Globo – com muito cuidado, convicto da dignidade que tal profissão deve ter e do senso de responsabilidade que deve guiar o verdadeiro tradutor. E se pensa nos grandes autores, como Prosper Merimée, Honoré de Balzac, Voltaire e Marcel Proust, não pode se impedir de considerar que, traduzi-los, não é tarefa para tradutores bisonhos.

domingo, 3 de agosto de 2003

O poeta e o outro

            A historinha pertence ao “Do Caderno H”, publicado no “Caderno de Sábado”, do Correio do Povo de Porto Alegre, no dia 19 de abril de 1980: Mário Quintana conta desse espanhol, Dom Pedro Manuel de Urrea, que poetava na época da invenção da imprensa e empalidecia só de pensar que seus versos, com isso, corriam o risco de ser lidos até mesmo nas adegas e cozinhas.  Suscetibilidade que muito divertiu o Poeta gaúcho e que o fez se dar conta de que, se a sua formação democrática impedia exclusões de classe, fazia, no entanto, exclusões em todas as classes, pois ele, somente, podia contar com, aqueles poucos, as exceções que lêem poesia. E parece que ele não duvida lhe estarem próximos, porque nos “Do Caderno H”, desse mesmo ano, não são poucos os versos dirigidos a um interlocutor. Eles pertencem aos poemas “Pedra Rolada” (6 de setembro), “Encantação da Primavera” (20 de setembro), “Escadas” (25 de outubro), “Bilhete” e “Oferenda” (29 de março), “Do temor da morte” (21 de junho) e interpelam, ordenam, aconselham, legislam e pedem, o que é da alçada de um poeta que se permite a troça e o non sense, a roçar-lhe o lirismo. As perguntas que faz – Mas que podes temer?, Ah, tu querias que eu te embalasse?!   e que não deixa sem resposta – Tu estás vivo...e basta!, Eu estava, apenas, explorando uns abismos... – pode ser a esse interlocutor com quem compartilha o imaginado e o cotidiano. Sugere que repare em certas coisas (se não é / O Espírito Santo que vem descendo em lento vôo) que olhe outras tantas (a avó atravessando a rua com sua neta pela mão). Por vezes, lhe aconselha prudência (não fiques eufórico, – nem tudo são rosas) ou, submete as suas vontades, determinando o que deve ser feito (Esta pedra que apanhaste à beira do caminho [...] Deposita-a no chão, cuidadosamente...



            Mas, apesar da precisão do pronome tu, esse interlocutor também pode significar todos os humanos ou, simplesmente, esse outro eu, confidente de si mesmo. O eu que teme a morte e a exorciza, afirmando que A única morte possível é não ter nascido; o eu que divaga e se enleia em mistérios que imagina – escadas de caracol que descem como nas histórias de imortal horror, fantasma chamejante e fosfóreo, escadarias de velhos edifícios públicos – e quer o refúgio de fechar os olhos, a pensar em felicidades: cascatas de riso / Escada abaixo, crianças saindo da escola. O eu que irá se expor sem peias nos poemas “Oferenda” e “Bilhete” ao se dirigir ao feminino, razão dos dois poemas.

            “Oferenda” é um poema de três versos. Coloquial e extremamente simples, o primeiro: Eu queria trazer-te uns versos muito lindos..., anunciando uma intenção que o tempo do verbo já decreta não ter sido cumprida e que o segundo verso irá confirmar: Trago-te estas mãos vazias, expressão melancólica de um fracasso que se dissipa no terceiro verso: Que vão tomando a forma de teu seio, soberbamente inspirado nesse dizer da transformação do nada em carícia plena e aceite.

            “Bilhete” tem a despretensão do título (algumas palavras, não uma carta), negada diante da importância do destinatário – Amada – e do pedido que lhe é dirigido: uma ordem ou uma súplica feita de dúvida e de certeza. O pronome se, expondo um possível sentir­ – Se tu me amas – que, se existente, deverá determinar o modo de amar: Ama-me baixinho, bem devagarinho. Intensidade submissa ao axioma daquele que é amado e decreta: que a vida é breve e o amor mais breve, ainda..., o que talvez seja outra das invenções do Poeta, na mágica de criar e recriar-se num mundo de palavras e de sonhos.