A ficção acompanha a vida, mesmo quando apela para a magia. Dyonélio Machado.
Ele aparentemente narra o trivial, disse
Nei Duclós no seu artigo “Quarenta anos de silêncio”, publicado na Folha de
São Paulo, em 3 de fevereiro de 1979, a propósito da segunda edição de O
Louco do Cati pela Vertente. E, simples parecem ser cada um dos breves
episódios do romance e os personagens que vão fazendo parte, embora por pouco
tempo, da aventura que foi para o louco do Cati a viagem de Porto Alegre ao Rio
de Janeiro e a volta até a região da fronteira do Rio Grande do Sul. E,
obviamente, salvo as zonas de sombra a esconder o personagem-guia do relato e
os diálogos feitos de meias palavras, não parece existir segredos nesse
universo ficcional de Dyonélio Machado que, se surpreende – por utópico – ao
afirmar e reafirmar a disposição dos personagens para o ato solidário, não
esconde de alguns, no entanto, a visão de mundo, cerceada pela mediocridade que
os aproxima do ridículo. Por exemplo, Manuel, tido por um alto funcionário da
Light, usando três ou quatro galões
dourados em cada punho e cujo serviço consistia em, do centro da cidade,
despachar os bondes com um apito. Ou o médico, professor da universidade, que
só admitia a entrada na sua casa de quem fosse doutor. E, mais explicitamente,
a separação de classes no navio.
Dyonélio
Machado ou ironiza, ou caçoa. No caso do alto funcionário da Light, o narrador
se faz presente para observar que no
mundo dos funcionários não havia nenhum que não fosse alto. Quanto ao
médico, três seqüências lhe desenham o perfil: quando Norberto agradece a ajuda
que dera a seu companheiro, ele esboça uma
reprovação frouxa com um gesto todo lisonjeado da sua bela cabeça de professor da universidade. Vaidade que irá se
manifestar, também, e acrescida da admiração do forâneo, no que se refere a sua
casa: recém construída perto do mar,
de cujo terraço se avistavam a enseada, o casario de Botafogo e as montanhas.
Uma paisagem que a família costumava comparar à da Suíça: Só faltava a neve. E, igualmente, do exagero seletivo quanto aos
que a freqüentam. Ao esperar a visita de Norberto e seu companheiro, previne a
empregada que, obedecendo aos costumes da casa, só deixa entrar doutores.
Assim, ao mandá-los entrar, usa as palavras de costume: -Passe doutor. (Norberto ia na frente).- Passe Dr. Cati o que é
jocoso visto que eles não eram doutores e que acabavam (ainda que sem culpa
formal) de sair da prisão.
“As
classes de um navio” é o capitulo com o qual se inicia a quarta parte do
romance. O louco do Cati, entregue aos cuidados de um casal (designado, ele por
o capitalista e ela por sua companheira),
viaja para o sul. O fato de estarem em classes distintas dificulta o trabalho
de tomar conta dele: como lhe vigiar os passos quando entre eles se interpunha uma separação tão severa como aquela das classes dum navio. Daí a
decisão de transferi-lo para a primeira classe o que resulta em matéria de estudo
para a alta administração do navio,
pois, para o responsável da ordem a bordo, um viajante de segunda (quando há
também viajantes de primeira) é tão diferente desses últimos, como se houvesse realmente nascido nessas acomodações
inferiores. No entanto, como havia casos de indivíduos admitidos na classe
acima, e aqueles que faziam o percurso
inverso (tido como uma degradação),
o pedido foi considerado. Primeiro, a inspeção do tipo por um membro da tripulação. Depois, informadas as condições
para se efetuar a mudança: a quantia que devia ser paga e a promessa a ser assumida pelo passageiro de mudar a
roupa, trocando-a por outra de sua nova classe.
E, assim, com as despesas pagas pelo capitalista que, também lhe fornece as
roupas – embora lhe ficassem grandes, eram regulamentares – o louco do Cati, foi içado à primeira classe do navio. Lugar de privilégios onde a
comida, tanto quanto o gelo, era azul, de um azul desmaiado que era a cor da
moda; e onde o divertimento consistia em espiar algo de pitoresco que, porventura, houvesse na segunda classe ou o enorme interesse pelo modo como cada um
passara a noite.
É
um fazer troça de certos tipos e situações que se inserem no relato – leve
sorriso em meio ao melancólico destino do personagem-guia do romance – e se
torna digno de nota pela habilidade com que o narrador faz uso de recursos
formais, não somente para conduzir à emoção, mas para lançar farpas à conhecida
tolice dos que buscam refúgio numa classe à parte no intuito de serem
diferentes ( assim eles creditam) e
distinguir-se dos demais.



