domingo, 27 de julho de 2003

Ato-retrato de Poeta


 E dizia Cyro Martins, em 1981, na festa em que eram festejados, no dia 30 de julho, os 75 anos de Mário Quintana, na saudação que foi publicada no dia 8 de agosto no “Letras & Livros” do Correio do Povo de Porto Alegre: Seus sonetos subjugam o leitor pela bizarrice de certos temas, pela densidade de pensamento, pela capacidade de usar a métrica e a rima sem os formalismos tradicionais, sem sílabas contadas na ponta dos dedos, numa cadência de vibratibilidade subjetiva e com uma força de transmissão contagiante como jamais acontecera em língua portuguesa nesta forma poética.

              Um soneto. Mas, um soneto em tercetos, com versos heptassílabos, sem rimas, que se permite a exceção de um verso de três sílabas. Confidencial como acontece, tão amiúde, ser o poema de Mário Quintana. “O auto-retrato”, com outros cinco, foi publicado no “Do Caderno H”, de 19 de dezembro de 1981, (“Letras & Livros” do Correio do Povo de Porto Alegre). Com eles, guarda a semelhança de um dizer que se expressa na primeira pessoa, feita, sobretudo, de possessivos e de pronomes oblíquos. E do assunto beirando o fantástico – um anjo depenado a tremer de frio, o Conde Drácula, o Grande Mágico, Frankenstein, Alma Penada – e das dúvidas em que se enreda o Poeta: Quem foi que me prendeu por dentro / De uma gota d’água?, ... e me encontrei num mundo incerto e / louco, Deve haver tanta coisa desabada / Lá dentro...Mas não sei....

            Simples, prosaicos, os dois primeiros versos de “O auto-retrato”, anunciando algo sem segredo: No retrato que me faço/ traço a traço. Nos que seguem, porém, já um fugir do real ao se reproduzir como uma nuvem, uma árvore, coisas que não mais existem ou que, ainda, irão existir. E a palavra lida, expressa logo no início do primeiro terceto, e o verbo busco entrelaçam e mudam o desejo de alcançar algo maior – se encontrar – que, simplesmente, o representar-se, diluído em outros seres, se constitui, apenas, um itinerário. Busca feita de incerteza, de uma dúvida que se apresenta explícita – que restará? e que, de algum modo, retoma o desengano que, também habita esses outros poemas e que é feito de um pouco de troça, expresso no fantasioso em que se matiza a realidade (e o anjo e o Conde Drácula, a bela Helena e a chama, semelhante a um gato, que lhe lambe a perna de pau), na repetição inglória de nada entender e, outra vez, dormir, e na ironia a se reconhecer um belo monstro ingênuo e sem memória.

            Nos dois últimos versos do soneto, a resposta, evidentemente, plena de significados na sua aparente singeleza como soem ser os desenhos infantis (encerram universos e sonhos) e na sugestiva afirmação do verso final em que tanto o termo corrigido, como o termo louco irrompem, surpreendendo. Como se a par do luminoso dos versos precedentes, houvesse, de repente, um outro universo regido por leis distintas, significando que, na busca de si mesmo, o Poeta atinge o desconhecido ou a sábia riqueza da loucura. O que, também pode significar um refúgio.

O auto-retrato

No  retrato que me faço- traço a traço –
As vezes me pinto nuvem.
As vezes me pinto árvore...

As vezes me pinto coisas
De que nem há mais lembrança
Mas que um dia existirão.

E desta lida, em que busco
- pouco a pouco-
Minha eterna semelhança,

No final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco.

domingo, 20 de julho de 2003

Pelos andaimes 2

     

            Havia um homem que trabalhava no alto de um andaime, pois era carpinteiro e trabalhando estava essa manhã quando sentiu uns violentos desejos de beber. Ramón Neira, personagem de El compadre, de Carlos Droguett, publicado pela Joaquín Moritz, do México, em 1967. Já no segundo parágrafo do romance, consta o que ele imagina irá acontecer um dia: cair, voando sobre a multidão. E o romancista chileno lhe segue os passos, indo pelas ruas, no ônibus, a cumprir o cotidiano itinerário quando termina o dia, chegando em casa onde a mãe  espiava o horizonte escurecido para ver se ele já vinha, tossindo com o cigarro entre os dentes. Lavando-se na torneira do pátio ou dormindo sob esse horrível teto de zinco, tão negro e sufocante, que era uma linha de fogo no verão. Sonhando. Divagando. Segue-lhe, também, os passos quando entra na igreja para propor a São Judas Tadeu que seja o padrinho de seu filho, já com oito anos e sem batizar. Embora a narrativa se apresente cheia de zonas de sombra, um recurso certamente caro a Carlos Droguett, ela não é cerceada pelo tempo ou pelos silêncios do personagem, pois é senhora de seu pensar, de seu sentir e de seus sonhos. O relato se faz desse presente, compreendido entre o momento em que o carpinteiro sente um violento desejo de beber e de sua última conversa com o santo, depois de um interregno em que passou um dia dormindo e outro bebendo no bar. Nele se inserem cenas fugazes do que acontece ao seu redor, alguns momentos de seu passado, seus monólogos diante da imagem de São Judas Tadeu. Pedaços de vida que seus olhos registram (os dois gringos conversando na calçada, a jovem mulher que reza na igreja, a criança, doente, chorando dentro de seu feio carrinho), ou que ouve (o diálogo dos carroceiros na madrugada, o dos homens na igreja, a confissão da velha, falando aos gritos). Lembranças que lhe afloram e dão conta de seu passado: a morte, o velório e o enterro do pai; a morte, o velório e o enterro de Alessandri, presidente do Chile, para ele o velhinho negro; seus amores com Yolanda, com quem se casa; o acidente que sofreu, caindo do andaime. Lembranças que retornam aos poucos, mesclando-se às divagações e aos sonhos, construindo a sua história de trabalhador pobre cuja vida transcorre nos andaimes. E se é no andaime que ele se sente seguro (Aí em cima estava bem, era feliz, era o amo, entre o vento e os ruídos distantes[...]) e onde vive suas horas mais felizes, é dele que pensa – e com lucidez e até imaginando estar doente por isso – um dia cair para a morte. Conjetura que lhe vem repetidas vezes à mente e se constitui um leit-motiv do relato. Ora a partir do fato concreto, o de ter caído, ora a partir do que ele presume poderá acontecer.

            Trabalhava na construção de um hotel sobre as rochas, na cordilheira. Era inverno, havia neve e ele sentia muito frio e a tosse não o soltava. As tábuas do andaime quebraram (noutro momento diz que resvalara nas tábuas olhando distraído os que patinavam no meio dos pinheiros) e ele escutou o companheiro gritar colega, irmão, não se mate. Um pouco antes tinha começado a lhe dizer algo e antes de receber a resposta já estava com o pé no vazio. Lembra que vinha caindo lento como a neve, como nela ficou enterrado, como o doutor o tratou e já enuncia as suas desconfianças em relação à mulher. Que estão presentes – justificadas ou oriundas de sua imaginação, turvada pela bebida – muitas outras vezes. Ele se pergunta por que o amor de Yolanda já não mais existe e sabe que sempre que desce do andaime já está bêbado e briguento e a deixa com medo. Daí conclui que, se cair do andaime, será uma boa solução para ela, acreditando – ainda que ela demonstre medo de que tal aconteça, ainda que lhe peça para não cair – que é o que deseja, o que há muito tem desejado.

            Por vezes, imagina que, ao cair, as pessoas, gritando, se afastarão, assustadas; que irá voar sobre a multidão antes de cair; que chegará ao céu, gritando com escândalo para entrar onde está fresco e não faz vento. Outras vezes, admite ter medo porque é preciso ter muito medo para não soltar as mãos e começar a flutuar para baixo, leve e rápido compreendendo que vai morrer arrebentado mas não sentindo dor nem angústia[...]. Também, não deixa de compreender quando recebe uma taça de champanhe do recém-casado, no hotel, que, se ficar bêbado, poderá cair do andaime, mas, se beber, olhando com receio a neve que o sol iluminava, não terá tanto frio lá fora. Como também entende que se tivesse dinheiro não teria caído do andaime porque o dinheiro ajuda a conservar o equilíbrio. Sobretudo, acaba por se submeter a seu destino: prometera ao santo da igreja que não mais iria beber, porém, finalmente, acaba por lhe dizer soluçando: estou tão sozinho, tão completamente sozinho e o vinho é tudo o que me resta e se o deixo, qualquer dia vou cair do andaime.
            Mais do que um recurso narrativo, a constante ameaça de uma queda possível e provável, que pode acontecer aos trabalhadores dos andaimes, se enriquece de significados líricos – amor, ciúme, desengano, medo, solidão – e dos que fazem pensar na fragilidade das vidas operárias que para subsistir se expõem ao sol, aos ventos, às quedas.

domingo, 13 de julho de 2003

Pelos andaimes 1


            A estrutura é circular. O texto, breve, de breves frases que ora austeras e objetivas tem a fria expressão de um relatório, ora plenas de lirismo se aproximam de um inesperado poético: “O Capacete Amarelo”, conto de Nilson Luiz May, publicado no “Caderno de sábado” do Correio do Povo de Porto Alegre, em 7 de julho de 1980. Uma narrativa em que o diálogo é quase um monólogo, em que o personagem é apresentado pelos escassos dados constantes na sua carteira de trabalho e mais adiante pelas suas qualidades, em que a ação se inscreve no mais comezinho.
            Duas frases curtas introduzem o relato: O cartaz anunciava: /Temos vaga p/servente.Logo, a voz do capataz, imperativa, desrespeitosa no trato com o candidato à vaga oferecida cuja identidade – Sebastião Rodrigues, vinte e seis anos, casado, pai de dois filhos, analfabeto, assim como os três contratos anteriores de trabalho – consta no documento que apresenta. E, voz taxativa, ao determinar a hora em que ele deve se apresentar ao trabalho, no dia seguinte e o que deve fazer: pegar o capacete amarelo e toca pro serviço.  O parágrafo seguinte, avaro, diz apenas: Sebastião se apresentando. No seguinte, as ordens de preparar a massa para o reboco fino e, junto com três baldes de água, levar para os homens lá em cima. Segue-se outro, em que se enumeram suas virtudes, bom homem. Obediente, trabalhador, honesto, cumpridor de seus deveres. Deveres que, há sete dias, ele cumpre nesse subir os quatorze andares, levando baldes cheios de massa e voltando com eles vazios pela caçamba-guincho, elevador improvisado, feito de tábuas frágeis e mal postas e quase sem proteção dos lados que, no seu contínuo subir e descer com a carga pesada, já mal agüenta. Há uma exclamação, -Cuidado servente!, seguida de considerações entre parênteses, (De capacete amarelo, o servente. A mão de obra é abundante. Perde-se um, admite-se outro. capacete amarelo sobrando: muita oferta, pouca procura.) antes do parágrafo, igualmente avaro, Sebastião lutando. Antecede os que dizem de sua luta e de seu fracasso num texto que se quer em prosa mas que pelos seus recursos estilísticos, simples e sábios no emprego de pleonasmos e  gerúndios e pelo seu lirismo, se constitui um poema: As pernas soltas, as pernas frouxas, as pernas bambas, as pernas fracas do servente. Os braços firmes, os braços presos, os braços segurando a vida numa tábua podre. As mãos grandes, as mãos calejadas, as mãos suadas, as mãos doídas, as mãos cansadas./ As mãos afrouxando, as mãos se soltando, as mãos escorregando. O corpo frágil, leve, voando. O corpo liberto, o espaço aumentando, a terra chamando a terra chegando e aconchegando. Na luta, primeiro, a menção à impotência das pernas (bambas, frouxas, fracas);  logo, à força dos braços que, além de definidos pelos adjetivos firmes e presos, se completa na seqüência os braços segurando a vida numa tábua podre onde é intensificado o sem valor e o maior valor presentes  na oposição tábua podre/vida e a crueldade desse trágico destino que se mostra ainda mais forte quando os adjetivos qualificam mãos (grandes, calejadas, suadas, doídas, cansadas), oferecendo toda uma história de vida a passar pelo trabalho duro que as tornam doídas e cansadas, vida que se acaba no derradeiro e inútil esforço em que, igualmente, doídas e cansadas, serão vencidas pelo que é determinado por leis que regem o viver social. Derrota que irá constar  no parágrafo seguinte quando as mãos se afrouxam, se soltam e escorregam porque não mais agüentam o peso do corpo. Que, então, frágil, leve e liberto, voa. E no verbo voar, o eufemismo também presente na menção ao espaço que aumenta entre o corpo e a caçamba-guincho e ao outro espaço que se aproxima: a terra chamando e que será o aconchego. Nota de um espaço que remete ao tempo : aquele em que dura a resistência para não cair e o tempo transcorrido entre o momento em que as mãos se soltam e o corpo vai chegando ao chão. O que é eludido pelos gerúndios que prolongam a ação (a terra chegando, a terra chamando) e pelo emprego do verbo aconchegar, sugerindo repouso e paz e ternura que, finalmente, lhe serão dados por essa mesma terra que o irá receber. 

            Na verdade, o tempo que já passou, aquele em que Sebastião Rodrigues foi contratado, os sete dias em que trabalha no edifício em construção, se anulam diante desse tempo fatal e desse pequeno espaço a subir e a descer que lhe é concedido como se anulam no anonimato os humanos que, distantes e impotentes, foram testemunho (ou não) de seus últimos momentos: o observador que olha de baixo para cima e constata a fragilidade do guindaste-guincho, a voz que recomenda cuidado, e a criança que, de seu mundo lúdico, percebe o capacete amarelo voando. Permanece a morte vil e sem sentido de um ser humano, cuja vida, diante da poderosa entidade de quatorze andares, pouco significa e cuja morte não impede a continuidade do já estabelecido. E as duas últimas frases do conto, E o cartaz anunciando: TEMOS VAGA PARA SERVENTE., repetem as primeiras, a compor o círculo, um entre tantos, que aprisiona os homens.

            Autor de obras e numerosos artigos científicos e que já assinou, também, dezenas de artigos de análise literária, além de contos e crônicas, do romance Terra da boa Esperança (Tchê, 1989) e de Inquéritos em preto-e-branco (Mercado Aberto, 1995) e Céus de Pindorama (WS, 2000), o médico Nilson Luiz May, ao delinear o operário, preso na engrenagem de um trabalho feito de riscos e que se repete à exaustão e é remunerado de um quase nada, se mostra, na construção da narrativa, um real conhecedor do fazer literário que se agiganta quando lhe sela o destino na poética síntese de seu vôo para a morte.


domingo, 6 de julho de 2003

Antigamente


Apparício Silva Rillo nasceu em Porto Alegre e com pouco mais de vinte anos, abandonando os estudos, foi trabalhar num empório comercial dos arredores de São Borja e, depois, na cidade, que não mais iria deixar. Em 1959, publicou seu primeiro livro de versos, Cantigas do tempo velho, ao qual se sucederiam Doze mil rapaduras e outros poemas (1984) e Poço de balde (1991), além dos livros de contos, de causos gauchescos e dos que se reportam às corridas de cancha reta e ao jogo do osso, expressão de seu trabalho como pesquisador das tradições e do folclore do Rio Grande do Sul. Em 1980, publica, no “Caderno de Sábado” do Correio do Povo de Porto Alegre, um poema dedicado a sua terra de adoção: “São Borja, 1920”. São seis estrofes com número díspar de versos (entre oito e dez), sempre introduzidos pelo refrão, grafado em caixa alta, naqueles tempos, sim, naqueles tempos e uma última, construída em dois tempos: oito versos aos quais se acrescentam mais quatro e o refrão que finaliza o poema. Um poema – e o título já o indica – a cantar um passado no qual cabem as casas e seus moradores e a vida, transcorrendo tranqüila. Desenhadas e com suas telhas portuguesas, balcões, sacadas, porões e sótãos, com as portas altas e alto o pé direito das suas salas, as casas se suavizam nas cores que ostentam – azuis claros, ocre, branco e amarelo – e se antropomorfizam nos adjetivos que as fazem cálidas, solenes, sob o abrigo das telhas maternais, com suas acolhedoras latrinas de madeira, sua água armazenada em barril barrigudo. E se enchem de vida com seus jasmineiros sobre o muro, suas laranjeiras, galos e cachorros no quintal. Vida que se estende, soberana, nas pessoas que as habitam: os homens, usando barba, indo ao clube, ajudando as obras da igreja; as mulheres, fazendo filhos, bordados, velas de sebo e sabão, rosquinhas e tachadas de doce, rezando na igreja, plantando flores e temperos. Então, o esboço do quadro se amplia na igreja e no poder. O padre, cumprindo suas funções em latim e, conviva, na mesa do prefeito; os homens mais convictos nas armas que nos santos e os coronéis de galões ganhos nas batalhas.

E o afetivo que torna tudo luminoso -  a latrina acolhedora, disfarçada entre as plantas, a água no barril e uma concha para a sede, as casas, por vezes, sem reboco, a batina manchada do padre, os velórios, a morte, o ritual de reprodução do gado – se aprofunda na última estrofe. Inscrita na primeira pessoa do plural, engloba toda a gente que descende desses homens e dessas mulheres para assumir o passado, que o poeta toma, também, como seu, cristalizado nas casas, estâncias e sesmarias e se enriquecendo com o som da terra (no caso o berro dos bois), com o significado dos retratos que pendem das paredes. Sobretudo, se cristaliza com os valores herdados – a barba dos avós como um selo no queixo – e com a carga de afeto, prazerosa, do doce das avós na memória da boca.

            Universo já ido a entrelaçar vidas e um jugo ao qual Apparício Silva Rillo se submete no poetar espontâneo que não precisa de rimas, nem de ritmos e se alimenta do inspirado uso de um verbo (janelas que espiavam), de um advérbio (morriam discretamente), de um adjunto (receitas de panela farta), cujos sentidos se completam nesse cultuar do espaço (da sombra verde para o sol das ruas) e das gentes (que ficavam nos retratos, que sabiam receitas). Mas se o refrão afirma e reafirma o que foi – Naqueles tempos, sim, naqueles tempos – o poeta traz de volta, com a sua voz inspirada, plena de emoção, a realidade que imagina.