domingo, 25 de maio de 2003

A invenção na morte 2


            A primeira frase, O homem e seu machado acabavam de limpar a quinta rua do bananal, contém os três elementos que irão compor a narrativa. Breve, concisa, despojada a seguir o que preconizava – ainda que o seu ideário estético fosse posterior ao momento de criação literária, como o notou o crítico José Enrique Etcheverry Stirling – Horacio Quiroga, um dos mestres do gênero. “El hombre muerto” obedece, também, às regras das três unidades da tragédia grega que o teatro clássico francês adotou: num só lugar, a um só tempo, um só fato aconteça.

            A narrativa começa com o homem, o personagem, que assim é identificado, olhando, satisfeito, para o trabalho que estivera fazendo e que pouco lhe falta para concluir. Então, atravessa a cerca para descansar sobre o capim. Porém, ao levantar o arame farpado, escorrega e o machado que tinha na mão, se lhe encrava no ventre. Deitado, tenta movimentar, em vão, a cabeça, conseguindo ver só o cabo da ferramenta e a metade de sua folha. Calculando a extensão e a trajetória do machado dentro de seu corpo, adquiriu fria, matemática e inexorável a certeza de que havia chegado ao término de sua existência. É esse pouco tempo que lhe resta que irá se constituir o relato. Feito do cenário: o bananal com suas largas folhas nuas ao sol, o teto vermelho da casa, lá longe, à esquerda o mato, o capim curto, o pedregulho vulcânico, os ninhos de formigas. Cenário que se completa com o sol a pino, um sol de fogo, origem da luz excessiva, com as sombras amareladas, com o ar brilhante e solitário. Feito do fato: um simples resvalar sobre o pedaço de casca da cerca é suficiente para ceifar a vida do homem. Caído, ferido de morte, ele tem consciência de que fria, fatal e iniludivelmente vai morrer. Mas, como que se esquece e ainda pensa que deve trocar os moirões da cerca, numa espécie de esperança diante da irrealidade que significa estar sendo arrancado da vida, quando a vida, ao seu redor, continua a mesma, exatamente como sempre; e diante do inverossímil desse dia tão igual aos outros na ida ao trabalho, na presença de seu cavalo, ali perto, naquilo que vê (a paisagem a seu redor), no que percebe (o menino que passa assobiando), no que espera (a vinda da sua mulher com os dois filhos a buscá-lo para o almoço). Feito do tempo: um passado para dizer de sua história: os cinco meses consecutivos em que fez o potreiro, os dez anos de trabalho no mato, os meios-dias em que voltava, cansado, para casa. E um presente bem marcado pelas expressões onze e meia, um quarto para o meio dia, meio dia, dois segundos, dois minutos, vinte minutos, o tempo em que ele está morrendo. E principalmente, marcado pelo advérbio, na última linha do relato em que a sequência já descansou, se liga às expressões está morrendo, muito cansado e ao título do conto. Precedendo-a, o parágrafo anterior em que ele acredita dispor de sua mente, acredita poder abandonar o corpo e ver o que ele construiu, a paisagem de sempre e, mais longe, o bananal e o potreiro e perto de um moirão descascado, lançado sobre o lado direito e as pernas encolhidas, exatamente como todos os dias, pode ver a si mesmo, como um pequeno vulto assoleado sobre o capim – descansando, porque está muito cansado.... A seguir, o relato se detém no cavalo e lhe acompanha o olhar para o homem deitado, e o receio que tem de avançar pelo bananal. Receio que as vozes, já próximas, fazem desaparecer, decidindo-o a passar entre o moirão e o homem deitado que já descansou.

            É o epílogo do conto a confirmar, eufemisticamente, o anunciado nesse poder vagar fora de si mesmo como um prolongamento da existência que lhe fora grata, quando construía o mundo a sua volta (fazendo do mato um potreiro, plantando o pasto, levantando as cercas e fundando uma família), mas cujo fim já fora, e sem retorno, selado.

Amparado no tema da morte, reconhecidamente, da predileção de Horacio Quiroga, “El hombre muerto”, na austera habilidade de seus recursos formais e na sutileza com que anuncia a aproximação do trágico desfecho, se mostra um momento perfeito da Literatura do Continente. Que se universaliza nesse personagem sem nome, consignado pelo fado irreparável ao qual se submete, também sem remissão, cada ser humano.

domingo, 18 de maio de 2003

A invenção na morte 1


            La Amortajada foi publicado em 1938, quando Maria Luiza Bombal tinha 28 anos. Breve romance, como aquele que o antecedeu, em 1935, La última niebla e La historia de Maria Griselda, de 1946 e mais alguns contos é toda a sua produção literária da qual, Alone, crítico chileno seu compatriota, diz ter bastado para que os mais rigorosos a estudem não sem assombro. La Amortajada é, sem dúvida, um instigante texto ficcional. Embora o título da obra “A amortalhada”, algo já esteja a anunciar, certamente surpreende esse entrelaçar da verossimilhança com a irrealidade, essa abolição de fronteiras entre os momentos vividos entre os vivos e aquele vivido na morte.
            O relato da La Amortajada se inicia com a voz de um narrador tradicional, provido de todo o poder a lhe permitir conhecer os sentimentos da mulher que está sendo velada e vê e percebe o que se passa. Um narrador que irá lhe ceder a voz para que relembre, a partir da chegada do homem que amou e a quem pertenceu, a sua primeira paixão. Está ali, de pé, olhando para ela, numa presença que anula, de repente, os longos anos baldios, as horas, os dias, que o destino interpôs entre eles dois, lento, escuro, voraz. Ela lhe dirige a palavra que ele não escuta, refazendo o percurso da história que viveram quando crianças e adolescentes e amorosos e que, abandonada, viveu sozinha. O narrador onisciente, conhecedor de seus sentimentos do passado e dos que ela descobre, estando morta, retoma o relato. E o torna a retomar, muitas vezes, para dizer da presença de seu pai levando a momentos do passado distante quando lhe perguntava se, todavia, lembrava da mãe morta; e da irmã; e do filho que destrói no fogo da vela o retrato da mulher amada para não ter que dividir a sua imagem; de Fernando, o amigo de quem é confidente e objeto de amor; da presença do marido e, por fim, do padre que a conhecera de pequena e lhe faz a oração de adeus. E sempre lhe concede a palavra que ela dirige à irmã, ao marido, à filha para completar, sinuosamente, um relato que se tece entre o momento em que, no entardecer, entreabriu os olhos e aquele em que se percebe sozinha, podendo, por fim descansar, morrer. E no sábio arquitetar do tempo entre os seus passados e o exíguo presente, prolongando o que resta, ainda, para a amortalhada: entender e descobrir e abandonar-se aos desígnios do ritual da morte.

            Quando o homem que a iniciara no amor e a abandonara, ao olhar para ela, morta, revela no mesmo rápido pestanejar que fazia em criança em momentos de emoção, o que ela ignorava: que no coração e nos sentidos daquele homem ela tinha fincado raízes; que jamais, ainda que amiúde acreditasse, estivera inteiramente só; que jamais, ainda que amiúde o pensasse fora realmente esquecida. E se pergunta: É preciso morrer para saber?

            E irá, ainda, saber o que somente é dado a conhecer aos que já não existem. Assim, o que sofreu o filho com os retratos da mulher (não entrega ela um pouco de sua beleza em cada retrato? Não existe em cada um deles uma possibilidade de comunicação, efígies por onde ela se evade apesar de sua vigilância. Igualmente, compreende que a Fernando, que muito a amou e sem esperança, bastou olhar para ela uns instantes para entender que já não era a mulher desejada, mas uma estátua de cera. Quando o caixão é levado e passa pelos lugares conhecidos – onde se enrodilhava para tomar sol, o rosto inclinado contra o último degrau da escada, cujas pedras espalhavam, se molhadas, o cheiro particular que exalam os quadro negros logo depois que as tarefas foram apagadas com a esponja – descobre o quanto as coisas podem significar. Percebe, pela primeira vez, que a folhagem dos choupos tem ondulação e reflexos de água agitada e se enternece ao constatar que os troncos dos eucaliptos perdem a casca, o que nunca ela havia notado, deixando ver uma nudez azul e leitosa. Um mundo novo se lhe revela a provocar desejos. O de apertar, fazer ranger sob o pé, as agulhas de pinheiros, esparramadas no chão; o de ser abandonada, a céu aberto, no coração dos pântanos para escutar até o amanhecer o canto que as rãs fabricam de água e lua, na garganta e ouvir o crepitar aveludado das mil borbulhas do limo. E, aguçando o ouvido, perceber ainda o silvo sinistro com que, na estrada distante, se lamentam os fios elétricos; e distinguir, antes da aurora, os primeiros adejos dos flamengos entre os canaviais.

Como sucedeu desde o momento em que entreabriu os olhos e, morta, se viu rodeada por todos e depois, quando a levantam do leito com infinitas precauções a acomodam na longa caixa de madeira; e durante o trajeto, percorrendo a casa, o jardim, o bosque no cortejo que a leva para enterrar, esteve sempre livre para olhar e para sentir da cripta, quebrado já o convívio com os humanos, está pronta para a vida em que irá renascer. Sente, nascidas de seu corpo uma infinidade de raízes afundar-se, se espalhar na terra como uma poderosa teia de aranha pela qual subia, tremendo até ela, a constante palpitação do universo.

Inesperada, nas últimas linhas do romance, a presença do narrador, agora na assunção de uma primeira pessoa, para jurar que a amortalhada, sozinha, podia, por fim, descansar, morrer. Como se, apenas então, precisasse de um apoio para dizer do inacreditável que, poético e insólito, povoa o seu relato

domingo, 11 de maio de 2003

No tempo dos advérbios


            Escrevera versos satíricos e prosas líricas ou sonetos de amores fictícios, publicados em periódicos de estudantes e uns poemas que jamais lhe pareceram, verdadeiramente, seus. Depois, os primeiros contos, quando ainda era estudante de direito num curso que mal freqüentava. O suficiente para fazê-lo tomar consciência de como escrevia e se dar conta de que os advérbios de modo terminados em mente são um vício empobrecedor. Gabriel García Márquez, no seu livro de memórias Vivir para contarla (Sudamericana, 2002), lembra que, então, passou a eliminá-los cada vez que surgiam e que essa obsessão o levava a encontrar formas mais ricas e expressivas e acrescentando que, há muito tempo, nos seus livros, não aparece nenhum advérbio terminado em mente. O que não aconteceu nos seus primeiros textos. Nas críticas de cinema que fez em 1954 e 1955, para El Espectador de Bogotá, eles, ainda, estão presentes, assim como no seu primeiro romance La Hojarasca, publicado em maio de 1955. Segundo Dasso Saldívar, na sua biografia de Gabriel Garcia Márquez, El viaje a la semilla (Alfaguara, 1997), o primeiro comentário sobre cinema que escreveu foi publicado no dia 27 de fevereiro de 1954. Está entre outros textos a ele atribuídos, compilados por Jacques Gilard e fazem parte do livro Entre Cachacos (Bruguera, 1982) junto com os demais publicados no El Espectador, durante os dezoito meses em que ali trabalhou. Foram mais de trinta notas para a coluna “Estrenos de la semana”, escritas no rápido ritmo que a redação do jornal exigia, a impossibilitar a busca de formas inusuais, a restringir os recursos estilísticos a um ou outro pleonasmo, a uma ou outra silepse, a um ou outro inesperado adjetivo e a permitir a abundância – bem uns sessenta – dos advérbios em mente. Poucas vezes, se apresentam repetidos ( absolutamente, especialmente, honestamente). Na sua maioria são formados de adjetivos prosaicos: ativamente, claramente, completamente, essencialmente, indefinidamente, fortemente. Mas, entre eles, sobressaem os que denotam a emoção provocada pelo filme: o desenlace dolorosamente autêntico de On the waterfront, o momento espantosamente melodramático de The Barefoot Comtessa, o longo e belo monólogo de saxofone magistralmente interpretado, de Cronaca de un amore.

            E nesse ano de 1955 foi publicado La Hojarasca, cuja redação datava de muitos anos antes. Segundo Dasso Saldívar, o escrevera em Cartagena onde era responsável pela coluna “Punto y Aparte” de El Universal e onde tentava fazer o curso de Direito para contentar o seu pai. Mais tarde, em Barranquilla, nos começos de 1950 o reescrevera, após muitas revisões. Mas, era, ainda no tempo dos advérbios. Também cerca de sessenta deles, aparecem nas cento e trinta páginas do romance, na sua edição da Sudamericana, de 1973. Muitos, são aqueles comuns que apenas reforçam o sentido de um verbo (calou instantaneamente, acreditava realmente, foi diretamente) e de um adjetivo (completamente diabólica, deliberadamente ilógico, inteiramente transtornada a expressão). Ou os que indicam tempo (repentinamente, subitamente) e modo (simplesmente, solidamente). Inclusive, se repetem duas ou mais vezes: completamente, diretamente, inteiramente, intempestivamente,  precisamente, realmente, repentinamente, subitamente, suficientemente, violentamente. Ou (o que ocorre uma só vez), estão presentes numa única frase: “Sei que vem diretamente na minha direção e trato de girar rapidamente sobre meus calcanhares, apoiado na bengala, mas me falha a perna doente e vou para a frente, certo de que vou cair e quebrar a cara contra a beira do ataúde, quando tropeço com seu braço e me aferro solidamente nele e ouço sua voz de pacífica estupidez, dizendo: Não se preocupe coronel. Eu lhe asseguro que nada irá acontecer. Porém, em meio a esse corriqueiro e profuso emprego do advérbio em mente, acontecem, também, os que não apenas valorizam a palavra que modificam, mas compõem seqüências que se constituem verdadeiros achados estilísticos. Seja quando esboçam personagens, seja quando os situam no efêmero de determinados momentos. Assim, o novo pároco ao chegar a Macondo é visto pelos que o esperavam como alguém pasmosamente magro, de rosto seco e estirado e escarranchado na mula, a batina levantada até os joelhos e protegido do sol por um guarda-chuva descolorido e maltratado. Ou o doutor estrangeiro sob o céu noite tropical a permanecer silencioso como entregue por inteiro ao passar daquela noite monstruosamente viva e a passar na rua cada vez mais aprimorado no vestir como um noivo aflitamente arrumado, envolvido na aura dos loções baratas. Assim, a madrasta a costurar

 a comprida cauda do vestido de noiva da enteada parecia à luz ofuscante daquele setembro intoleravelmente claro e sonoro, como se estivesse submersa até os ombros numa nuvem desse mesmo setembro. Ou os homens que esperam, no ambiente fechado da casa, a hora de levar o morto para enterrar que, diante da claridade que irrompe quando a porta é aberta, se fazem brutalmente visíveis, como relâmpagos do meio dia [...].
            Na verdade, talvez tenha tido Gabriel García Márquez alguma razão ao considerar empobrecedora a presença dos advérbios em mente no seu texto. Entretanto, magos da escrita como um Eça de Queirós, um Carlos Droguett deles não se privaram e o uso que fizeram não lhes depreciou o texto. Como não depreciou o de Gabriel García Márquez e nem tampouco o impediu de achar na combinação de palavras a expressividade e beleza que apenas os mestres da escrita sabem ter.

domingo, 4 de maio de 2003

Gabriel García Márquez, crítico de cinema 4

            O filme mais parecido ao inferno é o título que introduz a nota sobre Hiroshima, que apareceu, em março de 1955, no jornal El Espectador de Bogotá (recolhido no livro Entre Cachacos, numa compilação feita por Jacques Gilard e publicado pela Bruguera, em 1982). Seu diretor, Kaneto Shindo, é considerado por Jean Fulard (Dictionnaire du cinema, Robert Laffont, 1982) como um cineasta de dois rostos – o neo-realista da vida cotidiana de agricultores pobres, em A ilha nua e o fantástico/sensual de Onibaba – cujo primeiro sucesso internacional foi devido As crianças de Hiroshima, de 1952. Gabriel García Márquez inicia seu comentário sobre o filme dizendo que as crianças de Hiroshima tinham ido para o campo caçar borboletas, num dia rotineiro em que, de súbito, se ouviu a vibração de um B-24 e logo a explosão e um terrível relâmpago. Um minuto depois, a cidade de Hiroshima se transformava num inferno. Mas, diz Gabriel García Márquez, é com simplicidade e discrição que Kaneto Shindo narra o que aconteceu e o faz com tal maestria com tal crueza e com tão apaixonado sentido da solidariedade que pode levar a crer não se tratar de uma reconstrução da catástrofe e sim de um documentário. No entanto, o que poderia ter sido uma nauseabunda sucessão de imagens repugnantes, a sensibilidade e o mágico sentido plástico dos realizadores mostram como um imenso poema de dor e de morte o que jamais havia sido visto: os escombros humanos que se movem sem direção, que fogem do nada para parte nenhuma, agonizando, apodrecendo vivos no meio de uma atmosfera que não é de pânico nem de dor. Sobretudo, o espanto, o terror, o desconcerto e a inocência das crianças. Uma obra grandiosa, monumental, diz Gabriel García Márquez, o mais convincente libelo contra a guerra e particularmente contra as guerras atômicas do futuro. Contrapondo a sua assertiva, ele menciona a do The New York Times, edição de 16 de janeiro. Sem dúvida curiosa, se não fosse extremamente clara nas suas pretendidas ocultas intenções: que o filme pode ser considerado uma dramatização do princípio da horrorosa idade das guerras atômicas, uma visão neo-realista do que aconteceu em Hiroshima, onde foi filmado, que nela participaram mais de cem mil pessoas e que foi financiada pelos mais humildes servidores públicos do Japão, uma vez que os grandes produtores dos Estados Unidos lhe negaram o patrocínio.

            Poucos meses antes, em setembro de 1954, numa nota referente ao cinema japonês que está entre as inúmeras outras publicadas na coluna “Dia a Dia” e a ele atribuídas, Gabriel García Márquez comenta o ter sido concedido a Akira Kurosawa e a Kenji Mizoguchi o Leão de Prata de Veneza. E observa que os cronistas europeus têm se referido com freqüência a Los niños de Hiroshima, filme que, por seu forte argumento contra a política de guerra norte-americana determinou a criação de uma barreira de interesses oposta à exibição desse filme na América. No parágrafo anterior comenta que os empresários do cinema poderiam, tendo em vista os fabulosos ganhos com o mau cinema, se dispor a correr riscos, de vez em quando, e oferecer filmes de qualidade. Conclui dizendo não acreditar que a censura política tenha algo que objetar a outros filmes japoneses que estão triunfando na Europa e que as desventuradas colônias da América Índia não temos o privilégio de conhecer.

            Não ter mencionado o título de Akira Kurosawa, que recebeu o Leão de Prata, tampouco Teinosuké Kinugasa, diretor de As portas do inferno (Palma de Ouro de Cannes, em 1954) – quando se refere ao insólito entusiasmo com que a crítica de Londres assinala a assombrosa utilização da cor, desse primeiro filme japonês em tecnicolor, exibido na Europa – e, sobretudo, considerar que a censura política não deve ter o que objetar aos filmes japoneses, em vez de rejeitar drasticamente a censura, pode levar a crer que esse texto, de setembro de 1954, que lhe é atribuído, não seja realmente dele. Porque, ainda que abstraindo as ausências de informação mencionadas, essa tolerância em relação à censura política não parece coerente com o perfil que hoje delineia Gabriel García Márquez, embora, na época em que escrevia para El Espectador, estivesse alheio às terríveis tensões políticas que se instalavam na Colômbia como o confessa nas suas memórias. Porém a referência ao cinema comercial versus cinema de qualidade, um dos tópicos que lhe orientou a crítica de cinema e o emprego de uma silepse, figura já anteriormente usada, apontam como sendo de sua autoria, também essas linhas. Como as que se lhe seguem no comentário “A la fama por las líneas blancas” em que trata da censura cinematográfica nos Estados Unidos, baseada num código inflexível a determinar que jamais o mal deve prevalecer sobre o bem, que o requisito indispensável para o personagem é a retidão moral e que o desenlace dos dramas devem estar em acorde com a felicidade burguesa. E para não perturbar essa felicidade, nem turvar-lhe a imagem, aceita, sem restrições, pelo mundo afora, resulta imprescindível para os Estados Unidos esconder – e assim, tolamente, procura dificultar a exibição do filme – o seu ato bélico contra uma população civil em que morreram centenas de pessoas e outras tantas ficaram marcadas para sempre. Mas, resulta impossível negar Hiroshima, depois dos minutos de silêncio que se seguiram à explosão da bomba atômica, lançada sobre ela no dia 6 de agosto de 1945 com o argumento supremo – no século XVII La Fontaine já constatava que a razão do mais forte é sempre a melhor – de assim dar fim à Segunda Guerra Mundial.