domingo, 29 de dezembro de 2002

Os Sertões

           O terceiro capítulo, “O Homem”, da segunda parte de Os Sertões se inicia com a sua frase mais conhecida e mais citada: O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Introdução ao longo texto em que Euclides da Cunha o define a partir da sua aparência física, de suas ações e de uma visão de mundo, estreitamente relacionada à paisagem que o rodeia e lhe determina o modo de ser e as condições de vida. E, no intuito de completar-lhe o tipo, recorre, considerando-o a sua antítese, à figura do gaúcho. Um gaúcho que, antes de mais nada, ele explicita  ser do sul e ao qual dará um perfil que estará em acorde com aquele que, literariamente, lhe tem sido feito, ao longo dos anos, e não somente no Brasil, como na Argentina e no Uruguai. Nada irá dizer sobre o seu aspecto físico – na verdade, o gaúcho quase sempre é descrito por suas idiosincrasias – quando, ao contrário, não poupa o sertanejo de seus adjetivos desmerecedores. Como soe acontecer nos textos que tratam do gaúcho e como o fez com o sertanejo, não o dissocia de seu meio: plainos sem fim, natureza carinhosa que o encanta, natureza deslumbrante que o aviventa, o meio que lhe irá moldar o caráter, definir os afazeres, influenciar-lhe o vestir. A vida, que no dizer de Euclydes da Cunha, lhe decorre farta e variada, não lhe dá tristezas e nela o trabalho significa uma diversão. O rodeio, uma festa diária, realizada nas mangueiras – marcando o gado, curando-lhe as bicheiras, apartando os que irão para a charqueada, escolhendo os que serão domados – ou em pleno campo, perseguindo o gado esquivo, em meio ao alarido e à alacridade de uma diversão tumultuosa. Na luta é valente, inimitável, lançando-se aos embates com a despreocupação soberana pela vida. Sua vestimenta, versus a do vaqueiro, toda de couro, como uma armadura, é um traje de festa que se completa no arreiamento complicado e espetaculoso, fazendo com que bem lhe assentem os qualificativos de vitorioso, jovial e forte.


            Abundantes e laudatórios, esses adjetivos que o definem tanto quanto os vocábulos sul rio- grandenses, remetem às asserções de Wilson Martins, no artigo publicado em 1952, na Anhembi (número 24), de São Paulo, “O estilo de Euclides da Cunha”, sobre as constantes marcas estilísticas de Os Sertões: a adjetivação e o exacerbado gosto pelo léxico opulento de nossa língua. A adjetivação sobre a qual se funda, no dizer do articulista, o estilo de Euclides da Cunha, presença constante junto aos substantivos e no seu acúmulo, pois ele não recua de os amontoar, uns atrás dos outros [...]. E o uso persistente e predileto das palavras raras, termos técnicos, palavras arcaicas ou de uso pouco comum, modismos do velho português e também da linguagem puramente oral dos grupos isolados do interior.

            No entanto, os adjetivos usados por Euclides da Cunha para definir o gaúcho como tipo social – aventureiro, jovial (pleonástico), diserto, valente (pleonástico), fanfarrão, despreocupado, vitorioso, inimitável – em nada diferem daqueles que estão presentes nos textos ensaísticos ou ficcionais que procuram explicá-lo ou fazem dele um personagem de contos e romances, tema de poemas. Assim, os trabalhos em que se lança – galope fechado, corcovear raivoso, parar rodeio, encalçar os bois esquivos, fazer tombar o touro alçado, marcar e apartar o gado; assim, sua vestimenta: pala, bombachas, esporas de prata, lenço de seda, encarnado, sombreiro, guaiaca e botas russilhonas. Tampouco diferem os termos específicos utilizados, cujo registro se encontra no Vocabulário sul rio-grandense, da Editora Globo de Porto Alegre e no Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul, de Zeno e Rui Cardoso: chilenas, coxilhas, mangueira, peleador, poncho, redomão, sanga, tambeiros. Entre eles, na edição de Os Sertões (1946, da Francisco Alves), baguaes, bombachas, entreveros, estância, guaiacas, parar rodeio, pealador, pingo, russilhonas, como o próprio termo gaúcho, aparecem em itálico. Curioso, porém, o emprego de certos termos: disparada, por exemplo, indicando corridas de cavaleiro; com esse sentido, porém, não possui registro nos dicionários citados onde consta como dispersão de animais ou da tropa; o adjetivo inseparável, qualificando pala, uma prenda de vestir, semelhante ao poncho, mas que, sendo de tecido mais leve, não abriga dos rigores do inverno; chimarrão amargo, pois o uso corrente é chimarrão (o que se prepara sem açúcar), também chamado de mate-amargo e que, na sua expressão, resultou num pleonasmo; e, essa outra em que generaliza assado com couro como sendo um alimento do cotidiano. Igualmente curioso, dizer que o cavalo sócio inseparável dessa existência algo romanesca é quase objeto de luxo, expressão que dificilmente caberá num texto sobre o gaúcho ficcional ou não. Porque ser quase objeto de luxo está longe de oferecer a verdadeira dimensão do que une o gaúcho ao seu cavalo.

            Ou seja, o uso que faz dos adjetivos e dos termos específicos para traçar o perfil do gaúcho, permite observar que Euclides da Cunha apenas compartilha dos que já existem em outras páginas – e elas são numerosas – sobre o gaúcho. Se a paisagem do Rio Grande do Sul e o gaúcho não fizeram parte de sua vivência – como ocorreu com outras paisagens e outros tipos humanos do Brasil – é um motivo a mais para considerar que um e outro se lhe tornaram conhecidos através de textos. E nos quais a figura do gaúcho se mostra, e assim o percebeu Euclides da Cunha, muitas vezes, verdadeiramente, cativante. No entanto, quando o seu objetivo primeiro era falar sobre o sertanejo, que leituras e razões o teriam levado a sucumbir à sedução dessa figura mítica rio-grandense, da qual somente se louvam as virtudes, e incorporá-la, a seu modo e com o seu talento, ao universo de Os Sertões, não recusando, para isso, em se adentrar em trilhas já há tanto e por muitos percorridas?

 

 

domingo, 22 de dezembro de 2002

So o sol quadrado 4

            Miguel Cara de Angel era o homem de confiança do presidente. Um presidente cuja figura tem sido bem conhecida num Continente em que tudo pode ser acomodado para atender os interesses de alguns. E onde as palavras, mais do que seus reais significados, muitas vezes, nada mais são do que os eufemismos necessários para esconder inconfessáveis realidades. E Miguel Cara de Angel fazia parte da coorte de submetidos que, obedecendo, cegamente, ao senhor presidente faziam do país um território do medo, da injustiça e da opressão, e isto lhe  valia os privilégios de praxe.  Porém, teve a desdita de se apaixonar pela filha de um homem, condenado, arbitrariamente, como tantos outros, à morte e com ela se casar. Razão considerada suficiente para cair em desgraça. A história de seu amor e de seu destino é a linha narrativa a conduzir o romance El señor presidente do guatemalteco Miguel Angel Astúrias, Prêmio Nobel, 1966 (Losada, Buenos Aires, 1948), um dos mais terríveis libelos já escritos contra um ditador. Dividido em três partes, sob um signo do tempo, “21, 22 y 23 de abril”, “24, 25, 26 y 27 de abril” e “Semanas, meses, años” que, na verdade, resulta atemporal, pois o que relata não é apanágio de uma história ou de um lugar, mas pode sê-lo de muitos e de diferentes épocas. Na trama, um coronel é morto por um mendigo que a maldade humana deixara fora de si. O presidente aproveita para atribuir a culpa de sua morte a um dos generais, mas não lhe convém pô-lo na cadeia e urde uma trama para matá-lo dentro da lei, induzindo-o, através de um de seus sequazes, à fuga. Quem irá elaborar o plano e executá-lo será Miguel Cara de Angel. E tudo sairia a contento não fosse o amor que irá sentir por Camila, a filha de sua vítima. No desejo de ajudá-la, em meio do desespero ao se saber órfã e desamparada, acaba enfrentando o amo ao se casar com ela. O castigo não se fará tardar.Vai ser, oficialmente, enviado em missão aos Estados Unidos, mas no porto, prestes a embarcar, é detido. Um homem, alto, pálido, meio louro, como ele, se apossa de seu passaporte, de seus documentos, de seu dinheiro e de sua aliança e parte no seu lugar. A golpes, o transladam para um vagão imundo que o levará de volta à capital onde sua mulher espera a carta com notícias. E, para ela, são horas que se sucedem, dias, semanas, meses, anos na busca desesperada, no silêncio como resposta. Num calabouço, em algum lugar da cidade, Miguel Cara de Angel vai perdendo a vida: Duas horas de luz, vinte e duas horas de escuridão completa, uma lata de caldo e outra de excrementos, sede no verão, no inverno o dilúvio, esta era a vida nos cárceres subterrâneos.  Síntese de uma sucessão de horrores que povoam o penúltimo capítulo do romance em páginas onde a crueldade do ser humano para com o seu semelhante parece atingir o paroxismo. E não apenas no intento da destruição física de quem não foi julgado, nem sentenciado a não ser pela vontade do presidente na sua busca de vingança. Mas, também, de sua alma, ao fazê-lo acreditar que a mulher amada, ao ver-se no abandono, se tornara amante do homem que o estava destruindo e com a falsa história que lhe mandara contar, lhe desferira o golpe final.

            No “Epílogo”, uma procissão de presos, um louco a proclamar loucuras e o estudante que vai para casa onde encontra a mãe presa a seu rosário. Suplica pela paz entre os príncipes cristãos, pelos que sofrem perseguição da justiça, pelos inimigos da fé católica, pelas necessidades sem remédio da Santa Igreja. E pelas benditas almas do Santo Purgatório.      

domingo, 15 de dezembro de 2002

So o céu quadrado 3

            La canción de nosotros, de Eduardo Galeano, escrita entre 1973 e 1974, como romance, foi prêmio Casa de las Américas, em 1975. Construído em duas linhas narrativas, “El regreso” e “Andares de Ganapán” que se alternam com breves textos, “La ciudad”, “La máquina”, e “El Santo Oficio de la Inquisición”. “La ciudad”, se refere à cidade de Montevidéu, no tempo do terror vivido sob a ditadura que imperou no Uruguai nas décadas de setenta e oitenta; “La máquina”, à cenas de tortura, ao ensejo da existência do delator, ao cadáver jogado nos baldios, à felicidades truncadas; “El Santo Oficio de la Inquisición”, uma transcrição de documentos do Tribunal, em Lima. Uma das linhas narrativas, “El regreso”, nos seus sete capítulos, relata a experiência de Mariano, jornalista que foi preso por indagar o paradeiro de um amigo desaparecido. O relato se faz, inicialmente, pelas palavras de um narrador onisciente que lhe segue os passos, nas primeiras horas da manhã, até o café onde irá se encontrar com a mulher que abandonou três anos antes sem explicar as razões e motivo de seu regresso. A ela, irá dizer as palavras que o perseguem, relatando a sua última noite de trabalho no jornal quando o pedido de um amigo, que a greve fracassada obrigara a se esconder, o leva até o seu apartamento onde são surpreendidos pela polícia. Consegue fugir e perambula muitos dias pela cidade, dormindo nos ônibus, a desconfiar de todos e, no intento de salvá-lo, procura amigos e advogados que, no entanto, já pouco podem fazer. E houve o dia em que acaba sendo apanhado. Suas palavras, ao narrar essa trajetória, iniciada com o suplício que lhe impuseram de permanecer de pé, com as pernas abertas e as mãos amarradas atrás das costas, durante noites e dias e que segue com os interrogatórios sob tortura, com o tempo passado incomunicável, com o rosto sempre coberto pelo capuz e com a fuga, registram as atrocidades a que foi submetido e a consciência da escassa vida que lhe restava.

            Interrogado, o sofrimento físico se alia ao moral, ao medo desse momento em que tudo irá recomeçar e a fronteira das dores se dilui porque elas “se sobrepõem e se anulam umas às outras” para voltar todas juntas no interregno entre uma sessão e outra. Sobretudo, ao medo da tentação de se salvar, entregando um dado, apenas um, ou de se cortar os pulsos com os vidros da janela ou de se atirar por ela abaixo. E estar nu diante dos que estão vestidos; nada poder ver com o capuz a tapar-lhe o rosto diante do olhar do outro; ter as mãos e os pés atados, diante dos que estão livres; sentir-se doente e fraco, diante dos que estão saudáveis é um tormento a mais. Ao qual se acresce o ser mantido com o rosto enfiado no capuz numa cela onde é impossível permanecer de pé sem ter que dobrar o pescoço, ouvir gritos a qualquer hora e num isolamento de incontáveis dias sem luz. Rotina quebrada, um dia quando tiraram os prisioneiros das celas e lhes permitiram tirar o capuz, anunciando duas horas de recreio em que poderiam se mover, não, porém, se comunicar uns com os outros. No primeiro momento, ninguém teve coragem e permaneceram quietos. Logo, os que ainda tinham força, se movimentaram, embora as condições físicas não permitissem que fosse por muito tempo. Outros nem isso conseguiam. De volta à cela, o capuz foi dispensado e o horizonte de Mariano se ampliou: Podia ver o mundo por um buraquinho. O mundo era um corredor, mas isso ajudava. Pouco, pois sabia que nas próximas torturas iria sucumbir e a idéia de fuga passou a dominá-lo. E imaginar e tornar a imaginar como realizar tal proeza, como um único preparativo a seu alcance, o correr na cela, no mesmo lugar. O que de fato lhe valeu ao se lançar muro abaixo e correr, alvo das balas e dos cães treinados até se atirar no arroio sujo, continuando a fugir na água, entre braçadas e o mergulhar a cabeça na água podre. Apenas ao amanhecer saiu do arroio, já sem poder caminhar, as mãos feridas pelos vidros do muro. Deixou-se cair sobre o capim. Ainda, vai contar como um antigo operário metalúrgico sem emprego, o achou¸ levando-o para o seu rancho e lhe vendou as mãos com trapos e o agasalhou por uma semana. E como foi embora sem se despedir e caminhou muito para atingir as margens do rio e cruzar a fronteira num barco de contrabandistas.

No último capítulo do livro, dá-se o reencontro de Mariano com Ganapán, o homem que o socorreu e cuja história constitui “Andares de Ganapán”, assim como a de Mariano, feita de sete capítulos: Mariano voltou ao caminho da fuga. Está querendo rumar, pela margem do arroio, para a casa do homem que o recolheu. O relato volta, pois, a ser feito pelo narrador onisciente que vai acompanhar outra vez Mariano, agora às aforas da cidade, entre a fila de ranchos entortados por muitos vendavais e tormentas. Ele não sabe o nome de quem o ajudou que, por sua vez, ignora o seu. Mas, se abraçam no reencontro e partilham da comida pobre, sem tempero, porque no armazém não fiaram o azeite, nem os tomates, nem a cebolinha verde. Mariano explica ter voltado para agradecer e também... A expressão se interrompe e as curtas seqüências que seguem apenas lhes completam a idéia. Que, no entanto, desabrocha na ultima frase: As duas sombras gigantes, se aproximam na parede de lata, sugerindo uma nova e oportuna conspiração.

Porque ainda era, no Continente, o tempo da esperança no poder da luta e das conquistas.

domingo, 8 de dezembro de 2002

Sob o sol quadrado. 2


            Norberto, no armazém onde ele chegou para comprar cigarros, lhe pagou os fósforos e depois o incorporou ao grupo na viagem curta, divertida até o mar. Os outros acharam que era meio louco, mas para Norberto isso não tinha importância. Assim, quando decidiu não retornar a Porto Alegre, conforme o combinado, mas continuar a viagem mais para o norte, o levou junto. Em Torres, comprou passagens de ônibus para Araranguá. Chegaram noite fechada, avistando primeiro o rio, depois a cidade, marcada por uma fileiras de carvãozinhos mal acesos. E o ônibus não chegou a parar, já aconteceu a interpelação, indagando por Norberto, na voz dura e precipitada de um dos três homens que tomaram posição perto do veículo. Foi o começo de uma outra viagem: aquela decidida pelas autoridades, ao considerá-los agitadores, e, aleatoriamente, presos de importância. Será narrada na segunda parte do romance O Louco do Cati,  de Dyonélio Machado (Porto Alegre, Editora Globo, 1942), que tem por título “No escuro”, síntese sugestiva para os dezesseis capítulos que dão conta da prisão de Norberto e seu companheiro, da sua  transferência de Florianópolis para o Rio de Janeiro a bordo de um navio e da permanência na casa de detenção.  Como nas mãos das autoridades locais que os detiveram em Araranguá seriam sem proveito, os despacharam, no mesmo ônibus que haviam chegado, para Florianópolis. Lá foram encarcerados: porta fechada com grades e um soldados de baioneta calada  montando guarda. Logo, a cela, junto com outros presos e a mudança, num tintureiro, para o navio rumo à capital. Novamente o tintureiro e a chegada ao destino, sendo designados a um cubículo, cujo número, “quatorze”, dará nome ao capítulo. Juntamente com os cinco seguintes que irão lhes registrar o cotidiano de presidiários. Um cotidiano definido pelas relações que se estabelecem entre os que devem compartilhar um espaço exíguo, um longo tempo sem proveito e pelos seus pobres e tristes rituais.

            Num primeiro momento, a acolhida a Norberto e ao seu companheiro pelos que lá estavam
na boa vontade em dividir a comida, que não era muita, na satisfação pela existência das duas esteiras que haviam servido a outros dois presos, transferidos dias antes, no empréstimo dos travesseiros, na disposição em fazer um café, no interesse em desejar saber de onde vinham, em prestar as informações sobre as normas, em ceder roupas, em conseguir-lhes os serviços de mesa: a colher e a caneca de alumínio que servia como chicrinha de cafezinho, taça de café grande, copo pra água e prato fundo de sopa. Depois, no tempo que passa, os rituais, comandando os homens na distribuição dos alimentos, nos cuidados com a higiene, na hora do lazer.

            O café da manhã, isto é, o bromureto, mistura anafrodisíaca, era servido numa vasilha de lata, espécie de regador de jardim, sem o ralo, cujo bico era introduzido pelas grades para despejá-lo nas canecas e que era acompanhado de pão, um para cada preso. O almoço, levado em caixões-bandejas, lenta operação que, não raro, terminava no meio da tarde, chegando, por vezes,  após a  sobremesa, a laranja dos asilos e das penitenciárias. Também a higiene, ocorria em dois tempos: a coletiva, quando era feita a limpeza da cela e a individual, no chuveiro improvisado. Inicialmente, o combate ao percevejo, feito com uma tocha de papel de jornal que percorria os lastros e os varões das camas e os buracos das paredes que eram, tapados com sabão. Logo, a limpeza da  “louça”, da pia, do water closet. Por fim, a lavagem do chão. Para o banho, improvisada uma pequena cerca. No chão, um buraco, perto da parede ia alcançar o cano de esgoto da pia. Na torneira, em cima, adaptava-se um  “cano” feito com meia dúzia de latas vazias de doce de coco, embutidas umas nas outras. A altura em que o cano deveria ficar, era regulada por um cordel que se fixava num prego na parede e que partia de sua extremidade livre. – Abria-se a torneira. A água era recolhida por aquilo. O sujeito baixava-se um pouco e recebia-a  nas costas. Não muito, porque a água tinha hora para chegar  e chegava num fiozinho. Como o meteórico sol dos encarcerados, essa hora em que podiam caminhar, exercitar-se, fazer ginástica, conversar e que se extinguia tão breve, no retorno aos cubículos, poços sem luz.

            No último capítulo dessa segunda parte, Norberto que não se descuidara, tirando proveito das oportunidades de se comunicar com o exterior, consegue sua liberdade e, então, também a de seu companheiro. Para trás deixa o cubículo quatorze, retornando  à sua vida de sempre e inicia a necessária e imprescindível tarefa de conseguir meios de voltar ao sul. A cadeia não mais será mencionada, como se tivesse sido, apenas, um episódio à parte e sem importância. E a narrativa de O Louco do Cati, como a vida, segue o seu curso, espelhando nos capítulos seguintes, um mundo, talvez, ou certamente, utópico nessa força solidária que o move. Sem dúvida, a mesma que orienta a escrita de Dyonélio Machado. Uma escrita que não foi contaminada pelo horror da perda de liberdade, dos maus tratos, da injustiça sofrida, embora quarenta anos passados de sua experiência na cadeia – Dyonélio Machado esteve preso de 1935 a 1937, por delito de opinião – ele dissesse: Eu tenho duas vidas. Uma antes e outra depois da prisão.

            Nas últimas linhas de O Louco do Cati há um sol dourado que tudo ilumina.

domingo, 1 de dezembro de 2002

Sob o sol quadrado. 1


            No dia 2 de abril de 1964, a casa de Mário Lago foi invadida por doze homens, portando metralhadoras e bombas de gás lacrimogêneo, que o buscavam para lhe dar voz de prisão. E para a prisão, como tantos outros, trancafiados por razões as mais obscuras, bizarras e inacreditáveis, ele foi. E sobreviveu, o que mais tarde – a repressão instituindo a tortura e a prática do desaparecimento – nem sempre foi possível para os ditos inimigos do sistema. Uma aventura, com todos os seus riscos imagináveis, que ele houve por bem narrar na convicção de que toda experiências deve ser passada adiante e sob o título de Reminiscências do sol quadrado, foi publicada, em 1979, pela Avenir Editora, do Rio de Janeiro. Na verdade, se o leitor assim quiser, um pequeno manual de humor, entremeado das crueldades devidas à ignorância e ao arbítrio que, no entanto, não bastaram para esmaecer a grande confiança de Mário Lago nos seus semelhantes. Assim, o livro se inicia com o episódio de sua prisão, em circunstâncias, no mínimo jocosas e termina com a lembrança de um episódio, marcado pela solidariedade.

            Vindo à luz depois de quinze anos dos fatos terem ocorrido mostrou que, na verdade, o passar do tempo não faz esquecer nem o medo, nem a angústia vividos pelos que são presos aleatoriamente. Tampouco, o ridículo da repressão cujos executores de ordens muito poucas vezes sabem o que estão fazendo. Não compreendi, até hoje, por que tanto aparato para me prenderem. O fato é que, após meia hora de perequeteio pela casa, um tira resolveu pedir reforços, como se tivessem cercado uma fortaleza disposta a resistir até o último homem, narra Mário Lago numa seqüência que, seja pelos seus termos, seja pela comparação não isenta da troça, está na medida certa dessa ação disparatada e truculenta. Disparate e truculência que irão guiar as sucessivas e injustas prisões que passaram a ocorrer.

            Levado para o Dops, transferido para a Ilha das Flores e depois para a prisão Fernandes Viana, ele foi encontrando conhecidos e esses outros que também nada deviam, nem tinham consciência das razões do que lhes estava a acontecer. Um exemplo extremo é o de José Emídio de Jesús, um dos casos mais característicos da bestialidade vivida naqueles dias, segundo expressão de Mário Lago que o descreve como preto a doer a vista, pouco menos que débil mental, nem o próprio nome sabia dizer direito. Vivia de biscates e foi preso por uma patrulha do exército, na Estação Engenheiro Pedreira, quando não conseguiu explicar o que estava fazendo ali. Ficou na cadeia cinqüenta dias porque ele, com seu andar vacilante, com suas palavras que mal se entendiam, com seu riso que era mais um arreganhar de gengivas, que dentes já não tinha há muito tempo, talvez fosse, na opinião daqueles que o prenderam o líder dos camponeses, o homem que conduziria a reforma agrária, e que só podia estar na gare da estação à espera dos companheiros com que ia internar-se no mato e iniciar a guerrilha rural. Um episódio exemplar, para, entre outras coisas, definir uma das formas de relação entre as classes, no país. Junto com outros, quem sabe engraçados, talvez dê sentido, como lembrou Mário Lago, às extraordinárias palavras de Brigitte Bardot que ele percebe cheias de ironia: Adorable votre révolution. 

            E o livro termina não com o momento de sua liberdade: na década de setenta, ela, ainda, era uma esperança, mas com aquele em que sua filha é levada presa para a Ilha das Flores e sozinha em sua cela, inquieta sobre o que poderia lhe acontecer, escuta, cantada por muitos, a marcha rancho de Chico Buarque Quem é você?/ Me responda que eu quero saber. A lucidez se lhe sobrepôs à emoção e ela começou a cantar os primeiros compassos de Ai que saudades da Amélia. Uma voz, que ela não sabia de onde vinha, passou a informação E’ a filha do branco.

            Mário Lago apenas acrescenta – O resto agora era fácil, ela sentia que não estava sozinha – numa soberba profissão de fé na força e na felicidade de estar entre os seus. Apesar de tudo.