O
poema foi gravado no cimento. Em seis blocos que estão dispostos na frente da
casa de Pablo Neruda, na rua Márquez de la Plata, 0192, La Chascona. Tem por
título “Pido silencio” e as estrofes, feitas de um número desigual de versos,
relacionam suas últimas vontades. Primeiro, se dirigindo a interlocutores, num
pedido ou numa ordem: Agora me deixem
quieto,/ Agora se acostumem sem mim.
Logo, explicando o que vai fazer: fechar os olhos e anunciar os seus desejos.
Eles são cinco: o amor sem fim, ver o outono, o inverno, o verão e os olhos de
Matilde. O primeiro desejo, algo definitivo que prescinde de palavras, cabe
numa estrofe de um só verso. O segundo, o terceiro e o quarto desejos remetem
às estações do ano no que elas contém de suas, talvez, antigas emoções: o viver
a renovação do ciclo da vida (como posso
ser sem que as folhas/ voem e voltem à terra),
a lembrança da chuva (meu único personagem
inesquecível foi a chuva é a primeira frase de suas memórias), o verão que
olhos infantis percebem redondo como a melancia. O quinto desejo é formulado,
outra vez, para um interlocutor, porém, desta vez, para um interlocutor
definido, não apenas pelo nome, Matilde, mas, também, pelo seu significado,
expresso no possessivo e no adjetivo que lhe seguem o nome: Minha, bem-amada. Um desejo de posse que
ele precisa explicar – não quer dormir sem os seus olhos, não quer existir sem
o seu olhar. Esse olhar de olhos cor de
lua, de olhos que voam e dão luz às coisas como janela aberta,
assim definido pelo poeta em versos de Cien sonetos de amor e, tão
valioso, que se dispõe, por ele, trocar a primavera. Como antes, no tempo dos
cem sonetos, quando tudo perdia sentido – os
livros,/ a amizade, os tesouros acumulados,/
a casa transparente [...] que eles construíram juntos – menos os seus
olhos. Igualmente, precisa explicar o porquê desse pedido de silêncio que não
se deve, diz, a sua morte próxima, pois o tempo que viveu o seduz tanto que
outro tanto ele almeja viver: Nunca me
senti tão sonoro/ Nunca tive tantos
beijos. E, se ocorre pensar ser um dia esquecido, deixa perpassar, nesses
versos, a certeza da eternidade, possível no ciclo da vida: [...] dentro de mim crescem cereais,/ primeiro os grãos que rompem/ a terra para
ver a luz. Sobretudo, fiel a si mesmo, se declara ser e continuar sendo,
quase a repetir o seu dizer num poema de El mar y las campanas sou e estou. E, outra vez, pede. Não
mais o silêncio, mas a solidão e a licença para nascer, em expressões que
buscam a vida ao almejar a solidão junto com o dia, o nascimento num tornar a
existir que as palavras cedo, luz, abelhas,
estrelas, semeadas nos seus versos,
conduzem com alegria. Surge, então, a palavra amigos, também um interlocutor, afetivamente próximo, para dizer
que o que deseja é quase nada e quase
tudo. Expressão que rende humilde os seus anseios e desfaz a afirmação
primeira, somente quero cinco coisas,/
cinco raízes preferidas, ao confessar que algo, ainda, ficou fora de ser
desejado ou obtido, nessa busca do ser humano, sempre a perseguir quimeras. E,
se mais ele não diz, encerrando-se no vago e indecifrável desse quase tudo,
como que se resigna à solidão ou a ela aspire ao determinar a esses amigos, a
quem se dirige, que se podem ir. Pedido que se entrelaça com os primeiros
versos em que pede silêncio e paz.
E
a paz lhe faltou nos seus últimos dias de vida. O estar doente, na cama, em
Isla Negra, não impediu que lhe revistassem a casa; agravando-se o seu estado,
na viagem para Santiago, a ambulância foi obrigada a parar para ser, também,
examinada. E no hospital, isolado no seu quarto que os amigos abandonavam cedo
para ter tempo de chegar em casa antes do toque de recolher que nesses dias
imperava, escutava o barulho dos helicópteros patrulhando a cidade. Sabia o que
estava acontecendo no país e das centenas e centenas de mortes que estavam a
ocorrer. Seu amigo Volodia Teitelboim, no livro Neruda, diz que ele
sentia cada uma dessas mortes e seu coração foi se destroçando e parou. Eram
dez e meia da noite do dia 23 de setembro de 1973.
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