domingo, 15 de setembro de 2002

A casa do Poeta



1973 [..] 11 de setembro: um golpe militar derruba o governo da Unidade Popular; morte do Presidente Salvador Allende. 23 de setembro: morre Pablo Neruda em Santiago do Chile. A opinião pública internacional tem conhecimento, com profundo estupor, de que suas casas de Valparaíso e de Santiago, onde é velado o cadáver, foram saqueadas e destruídas depois do golpe, pelos fascistas chilenos. “Cronologia de Pablo Neruda” em Confieso que vivi.


            Foi escrito em dias de agonia, diz Volodia Teitelboim (Neruda, Editorial Sudamericana, 1996) quando Matilde Urutia já estava sendo consumida pela doença. Durante um ano e meio, o livro foi surgindo, com dificuldade, pois conforme relata José Miguel Varas (Nerudario, Planeta, 1999), embora Matilde Urrutia, contando com o poeta Gustavo Becerra para ajudá-la, rememorasse com invejável memória e a se expressar com fluência, seu rigor levava à verificação de datas, de fatos, de nomes. Em novembro de 1986, com  o título Mi vida junto a Pablo Neruda, o livro foi publicado pela Seix Barral de Barcelona. Em janeiro do ano anterior, morrera Matilde Urrutia.   Sobrevivera doze anos ao Poeta, marcada por duras e cruéis experiências  vividas e pelo que presenciou nesse trágico mundo instaurado no Chile em 11 de setembro de 1973. E o que ocorria não foi suficiente para  fazê-la partir nem para  se negar, quando solicitada mundo afora, a dar depoimentos sobre o que ocorria a seu redor ou participar em atos políticos contra a ditadura. De uma forma ou de outra, ela, como tantos outros, começou a resistir ainda que, segundo suas palavras, sentindo-se encurralados entre dois medos: o medo de calar e o medo de ser castigada por rechaçar a injustiça. E se o seu livro de memórias, principalmente, é um testemunho sobre a história de amor que viveu com Pablo Neruda, as primeiras seqüências remetem à fatídica data para os chilenos: Tranqüilo amanheceu este dia 11 de setembro de 1973. Um feixe de luz alegre me golpeou o rosto quando abri as janelas. Tranqüilo chegava o mar, tranqüilo estava o céu e um ar tranqüilo balançava as flores do jardim. Enganoso prenúncio para o que pouco depois iria ser conhecido e narrado nos dois primeiros capítulos: a morte e o insólito funeral do poeta. Um registro, sem dúvida terrível, não somente, por dizer do sofrimento físico e moral que marcou os últimos dias de Pablo Neruda, mas também, por se constituir a crônica da covardia e da indignidade dos seus compatriotas que não respeitaram nele um homem gravemente enfermo e tampouco a sua morte. Esses compatriotas que o poeta acreditava serem inimigos da violência, apegados às leis, detestando os derramamentos de sangue e que se mostravam de uma inaudita selvageria.

Muitos foram os que relataram o enterro de Pablo Neruda, impressionante não apenas pela perda que representou a sua morte, mas pela manifestação popular dos que enfrentaram soldados para render-lhe a última homenagem.

Matilde Urrutia também o faz e a partir de seu sofrimento e de sua dor ao ver destruída e saqueada a casa de Santiago, “La Chascona”, em que vivera com Pablo Neruda e onde haviam acumulado verdadeiros tesouros como as peças únicas de cerâmica, feitas especialmente para ele pelas artesãs do sul do país ou a coleção de figuras pálidas e cheias de brilho de um artista polonês, que, em pedaços, se espalhavam pelo chão. Como as peças do grande relógio jaziam pelo jardim assim como, no jardim, jogada, estava a cadeira onde o poeta se sentava para escrever seus versos. Desaparecidos, os quadros naifs do México, da Colômbia, de Samarkand, de Bujara, de Coronel, de Talcahuano e os vidros da casa, todos, quebrados. E as portas, todas, arrancadas. E as flores e as plantas que ao longo dos anos ela havia cultivado, destruídas, todas.   

Ainda nesse ano de 1973, quando escrevia suas memórias, no capítulo “Cristales rotos”, Pablo Neruda constatava: É verdade que o mundo não se limpa da guerra, não se lava do sangue, não se corrige do ódio. É verdade.

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