Nos idos
tempos do século passado, havia uma brincadeira infantil em que uma das
crianças dizia “Estátua!” e aquela que recebia a ordem, qualquer que fosse o
gesto que estivesse a ser feito no momento ou a posição em que se encontrasse,
deveria permanecer estática até que uma nova ordem a livrasse da imobilidade.
Hoje, muitos adultos se lembram de assim ter brincado, porém não são capazes de
dizer qual era a palavra que os desobrigava.

Um
Poder Maior, brincando com o Brasil, disse “Estátua!” há muitos anos atrás e se
esqueceu, completamente, de falar depois a palavra salvadora. Isto é o que
ocorre pensar ao reler Ode à censura, de Walmir Ayala, publicada no
“Letras & Livros” do Correio do Povo de Porto Alegre, em 22 de maio
de 1982. Um poema cujo título congrega duas palavras que pareceriam longe de
poder combinar: composição poética de
caráter lírico e crítica, condenação,
reprovação ou exame de qualquer texto artístico ou informativo feito por censor a fim
de autorizar sua publicação, exibição ou divulgação. Desencontro que já
anuncia os outros que serão enumerados.
São
dez estrofes que desobedecem, quanto à simetria do número de versos e quanto ao
tom, à estrutura tradicional da ode. Os seus três ou quatro ou cinco
versos de cada estrofe não dizem das glórias divinas, não fazem o elogio das
façanhas de homens célebres ou generosas reflexões sobre temas de consciência,
não exaltam os prazeres do amor, do vinho, da música e da dança, mas expressam
um sentimento de indignação. O primeiro verso se inicia com um verbo no
Imperativo e na primeira pessoa do plural –Censuremos – a exprimir um
desejo ou uma ordem ou um anseio que deve ou deveria ser de todos. Coerente com
o significado do verbo, condenar,
reprovar... seu objeto é a
pornografia, palavra que na terceira conotação do Novo dicionário da
Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, significa devassidão, libidinagem. No entanto, os
adjuntos adnominais, que lhe completam o sentido, correspondem àqueles usados,
sobretudo, na linguagem político social da época, à pobreza e à ausência da
ética constitucional. A pobreza, naquilo que impede possuir um mínimo de
cidadania: a fome, o desemprego, o acesso negado à educação e à saúde, à
segurança. A ausência de ética, exatamente nos fatos que permitem que tais
descalabros sejam possíveis: a indústria
da educação, os aumentos do pão e do
leite, a irrealidade dos salários, as mortes cinicamente adiadas da previdência social. Fatos que se
originam das instituições (propaganda mentirosa, violência policial, torturas,
lentidão da justiça, símbolo do leão, as mortes devidas à falta de atendimento,
pseudo moralismo, demagogia) ou de situações institucionalizadas (corrupção
oficial, linchamentos, olho vesgo da justiça, medo, propinas visando
benefícios). Assim enumerados, pareceriam parte de um relatório qualquer, entre
tantos outros, a visar a procurada moralização e os bons costumes,
imprescindíveis ao bem viver social. São, porém, palavras de um poeta e na sua
ode que se poderia chamar ode da indignação, as sequências, regidas pela
síntese, pela absoluta clareza, pela simplicidade de expressão tem como um
recurso estilístico maior, o emprego do pleonasmo. O que está presente em
algumas estrofes: na quinta onde a palavra justiça aparece três vezes e
ainda no primeiro verso da estrofe seguinte. E na terceira, em que a expressão irrealidade dos salários se repete,
embora haja grande diferença de significado, dada pelos adjuntos adnominais que
os acompanham, entre uma expressão e outra: A
pornografia da irrealidade dos salários
do povo e da irrealidade dos salários dos que decidem o mesquinho salário do
povo. Todavia o que deveras se repete é o vocábulo pornografia a iniciar cada uma das estrofes, exceção feita da
primeira e da última que privilegiam o verbo censurar, conclamando ao repúdio
das pornografias, estas que nos aviltam,
contrapostas à outra que diante delas se mostra inofensiva, a ingênua pornografia que pelos olhos ou pela
imaginação/montam suas máquinas monótonas/no espaço supérfluo do nosso sonho.
Na
verdade, a voz do poeta não alcançou multidões e todas as mazelas que o
escandalizaram no país da década de oitenta (ou de todas as décadas), se
mantiveram inalteradas e inalteráveis.
Porque a
palavra da libertação é tão desconhecida quanto, a não ser para alguns, o
desejo de enunciá-la.

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