domingo, 29 de setembro de 2002

Sob o céu

Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na chuva, os homens e suas iniqüidades.


          O capítulo segundo, “El segundo translado”, se inicia com Juan Núñez de Prado e seus capitães e mais os índios e as carretas, movendo-se em busca do novo lugar onde assentar a cidade. Em meio ao cansaço, ao sono e ao desalento, já haviam perdido, os capitães, a conta dos dias desse caminhar. Juan Núñez de Prado calcula que são três, quatro, sete dias e há um momento em que diz: caminhamos sob este céu negro e sem Deus, um céu implacável. Dele cai, sem parar, a chuva que os irá deter. Logo dirá um dos capelães: É a vontade do céu [..] esta chuva é presente do céu para que não façamos mais barbaridades e libertemos aqui mesmo a cidade que levamos como que roubada. É o enunciar do fado, que, no entanto, se tornará real, a partir da vontade dos homens: sob a chuva, irão descarregar a cidade das carretas, tornar a traçar-lhes as ruas e enraizar suas casas. Nessa tarefa empreendida, o céu não mais como vontade divina, mas como esse espaço indefinido, onde se movem os astros, estará presente ou na expressão do narrador que o define como imenso, gelado e hostil, escuro e iluminado, azul e tenso, quase escuro, enorme, mais aberto, mais próximo. Ou pelo olhar do personagem Juan Núñez de Prado, ou um ou outro de seus capelães. Eles o percebem negro, duro, escuro, desagradável, nublado, revolto e nublado, alto e distante, violeta, distante e frio, tenso e cálido, negro, indecifrável, implacável, alto e sereno, excessivamente limpo, cálido e cheio de fumaça, brilhando tranqüilo e puro. Num ou noutro caso, os adjetivos que o qualificam pouco falam de sua cor ou tonalidade (apenas azul, horrivelmente azul,  violeta, escuro, negro) ou de algo referente a seu aspecto (enorme, alto, sereno, limpo, distante, cheio de fumaça). São adjetivos que, mormente, lhe conferem características próprias dos humanos duro, desagradável, indecifrável, implacável, hostil, frio, distante, numa antropomorfização que se mostra, salvo na exceção dos adjetivos cálido e sereno, sobretudo hostil e sem adornos. Apenas duas breves referências à presença das nuvens ou a sua ausência (não havia nuvens no céu) e outra às estrelas que se amontoavam como pedregulhos sujos, ou à figura do corvo e de pássaros negros, diluída na imensidão. Como um elemento do cenário que, por vezes, se ilumina, em que atuam os homens de Juan Núñez de Prado, o céu não é somente receptor de seus olhares expectantes e dos sons que se desgarram desse universo – queixas, relinxos lastimosos dos cavalos, bramir do gado, palpitar dos sinos – mas, também, parte do drama, nesses diversos papéis que lhe são atribuídos. Quando alguém pergunta quando acabaria de ser o céu hostil e frio; quando outro percebe que pelo céu é rechaçado; quando imaginam que por ser duro  irá deter o ódio dos agressores. Papéis que se adensam ao se inscreverem na incerteza dos homens. A cidade não fora, ainda concluída e já queriam levá-la adiante, para outras paragens.

          Diz o capitão Guevara: tenho horror dos cerros e das rochas, sinto que nós e a cidade estamos ficando afogados entre eles, nos falta o ar, o céu está muito alto e distante [...]. Palavras que exacerbam as razões de Juan Núñez de Prado nas suas angústias pessoais e no que ele decide ser a vontade do rei: não quer espanhóis sedentários, mas aventureiros, infelizes e sem raízes. E responde: [...] agora somente sei que devemos ir, levar a cidade, o quanto pudermos, alguns edifícios radiosos, as melhores ruas, este sol, esse céu, talvez uns gritos de desespero nos façam falta para não nos sentirmos tão abandonados. Porém, diante dos que resistem à mudança e querem se fixar e são presos, maltratados, executados, Antonio Griego, soldado ou capitão, por sua vez, decide: nós não carregaremos as fontes nem o céu, o céu fica aqui com eles.

            Como dispunham da terra e de tudo o que ela continha, os conquistadores que vieram pra se apossar do Continente, talvez, acreditassem serem, também, donos do céu, podendo, assim, deixá-lo para trás ou levá-lo para onde bem lhes aprouvesse.

domingo, 22 de setembro de 2002

O poema no muro

            O poema foi gravado no cimento. Em seis blocos que estão dispostos na frente da casa de Pablo Neruda, na rua Márquez de la Plata, 0192, La Chascona. Tem por título “Pido silencio” e as estrofes, feitas de um número desigual de versos, relacionam suas últimas vontades. Primeiro, se dirigindo a interlocutores, num pedido ou numa ordem: Agora me deixem quieto,/ Agora se acostumem sem mim. Logo, explicando o que vai fazer: fechar os olhos e anunciar os seus desejos. Eles são cinco: o amor sem fim, ver o outono, o inverno, o verão e os olhos de Matilde. O primeiro desejo, algo definitivo que prescinde de palavras, cabe numa estrofe de um só verso. O segundo, o terceiro e o quarto desejos remetem às estações do ano no que elas contém de suas, talvez, antigas emoções: o viver a renovação do ciclo da vida (como posso ser sem que as folhas/ voem e voltem à terra), a lembrança da chuva (meu único personagem inesquecível foi a chuva é a primeira frase de suas memórias), o verão que olhos infantis percebem redondo como a melancia. O quinto desejo é formulado, outra vez, para um interlocutor, porém, desta vez, para um interlocutor definido, não apenas pelo nome, Matilde, mas, também, pelo seu significado, expresso no possessivo e no adjetivo que lhe seguem o nome: Minha, bem-amada. Um desejo de posse que ele precisa explicar – não quer dormir sem os seus olhos, não quer existir sem o seu olhar. Esse olhar de olhos cor de lua, de olhos que voam e dão luz às coisas como janela aberta, assim definido pelo poeta em versos de Cien sonetos de amor e, tão valioso, que se dispõe, por ele, trocar a primavera. Como antes, no tempo dos cem sonetos, quando tudo perdia sentido – os livros,/ a amizade, os tesouros acumulados,/ a casa transparente [...] que eles construíram juntos – menos os seus olhos. Igualmente, precisa explicar o porquê desse pedido de silêncio que não se deve, diz, a sua morte próxima, pois o tempo que viveu o seduz tanto que outro tanto ele almeja viver: Nunca me senti tão sonoro/ Nunca tive tantos beijos. E, se ocorre pensar ser um dia esquecido, deixa perpassar, nesses versos, a certeza da eternidade, possível no ciclo da vida: [...] dentro de mim crescem cereais,/ primeiro os grãos que rompem/ a terra para ver a luz. Sobretudo, fiel a si mesmo, se declara ser e continuar sendo, quase a repetir o seu dizer num poema de El mar y las campanas sou e estou. E, outra vez, pede. Não mais o silêncio, mas a solidão e a licença para nascer, em expressões que buscam a vida ao almejar a solidão junto com o dia, o nascimento num tornar a existir que as palavras cedo, luz, abelhas, estrelas, semeadas nos seus versos, conduzem com alegria. Surge, então, a palavra amigos, também um interlocutor, afetivamente próximo, para dizer que o que deseja é quase nada e quase tudo. Expressão que rende humilde os seus anseios e desfaz a afirmação primeira, somente quero cinco coisas,/ cinco raízes preferidas, ao confessar que algo, ainda, ficou fora de ser desejado ou obtido, nessa busca do ser humano, sempre a perseguir quimeras. E, se mais ele não diz, encerrando-se no vago e indecifrável desse quase tudo, como que se resigna à solidão ou a ela aspire ao determinar a esses amigos, a quem se dirige, que se podem ir. Pedido que se entrelaça com os primeiros versos em que pede silêncio e paz.

            E a paz lhe faltou nos seus últimos dias de vida. O estar doente, na cama, em Isla Negra, não impediu que lhe revistassem a casa; agravando-se o seu estado, na viagem para Santiago, a ambulância foi obrigada a parar para ser, também, examinada. E no hospital, isolado no seu quarto que os amigos abandonavam cedo para ter tempo de chegar em casa antes do toque de recolher que nesses dias imperava, escutava o barulho dos helicópteros patrulhando a cidade. Sabia o que estava acontecendo no país e das centenas e centenas de mortes que estavam a ocorrer. Seu amigo Volodia Teitelboim, no livro Neruda, diz que ele sentia cada uma dessas mortes e seu coração foi se destroçando e parou. Eram dez e meia da noite do dia 23 de setembro de 1973.

domingo, 15 de setembro de 2002

A casa do Poeta



1973 [..] 11 de setembro: um golpe militar derruba o governo da Unidade Popular; morte do Presidente Salvador Allende. 23 de setembro: morre Pablo Neruda em Santiago do Chile. A opinião pública internacional tem conhecimento, com profundo estupor, de que suas casas de Valparaíso e de Santiago, onde é velado o cadáver, foram saqueadas e destruídas depois do golpe, pelos fascistas chilenos. “Cronologia de Pablo Neruda” em Confieso que vivi.


            Foi escrito em dias de agonia, diz Volodia Teitelboim (Neruda, Editorial Sudamericana, 1996) quando Matilde Urutia já estava sendo consumida pela doença. Durante um ano e meio, o livro foi surgindo, com dificuldade, pois conforme relata José Miguel Varas (Nerudario, Planeta, 1999), embora Matilde Urrutia, contando com o poeta Gustavo Becerra para ajudá-la, rememorasse com invejável memória e a se expressar com fluência, seu rigor levava à verificação de datas, de fatos, de nomes. Em novembro de 1986, com  o título Mi vida junto a Pablo Neruda, o livro foi publicado pela Seix Barral de Barcelona. Em janeiro do ano anterior, morrera Matilde Urrutia.   Sobrevivera doze anos ao Poeta, marcada por duras e cruéis experiências  vividas e pelo que presenciou nesse trágico mundo instaurado no Chile em 11 de setembro de 1973. E o que ocorria não foi suficiente para  fazê-la partir nem para  se negar, quando solicitada mundo afora, a dar depoimentos sobre o que ocorria a seu redor ou participar em atos políticos contra a ditadura. De uma forma ou de outra, ela, como tantos outros, começou a resistir ainda que, segundo suas palavras, sentindo-se encurralados entre dois medos: o medo de calar e o medo de ser castigada por rechaçar a injustiça. E se o seu livro de memórias, principalmente, é um testemunho sobre a história de amor que viveu com Pablo Neruda, as primeiras seqüências remetem à fatídica data para os chilenos: Tranqüilo amanheceu este dia 11 de setembro de 1973. Um feixe de luz alegre me golpeou o rosto quando abri as janelas. Tranqüilo chegava o mar, tranqüilo estava o céu e um ar tranqüilo balançava as flores do jardim. Enganoso prenúncio para o que pouco depois iria ser conhecido e narrado nos dois primeiros capítulos: a morte e o insólito funeral do poeta. Um registro, sem dúvida terrível, não somente, por dizer do sofrimento físico e moral que marcou os últimos dias de Pablo Neruda, mas também, por se constituir a crônica da covardia e da indignidade dos seus compatriotas que não respeitaram nele um homem gravemente enfermo e tampouco a sua morte. Esses compatriotas que o poeta acreditava serem inimigos da violência, apegados às leis, detestando os derramamentos de sangue e que se mostravam de uma inaudita selvageria.

Muitos foram os que relataram o enterro de Pablo Neruda, impressionante não apenas pela perda que representou a sua morte, mas pela manifestação popular dos que enfrentaram soldados para render-lhe a última homenagem.

Matilde Urrutia também o faz e a partir de seu sofrimento e de sua dor ao ver destruída e saqueada a casa de Santiago, “La Chascona”, em que vivera com Pablo Neruda e onde haviam acumulado verdadeiros tesouros como as peças únicas de cerâmica, feitas especialmente para ele pelas artesãs do sul do país ou a coleção de figuras pálidas e cheias de brilho de um artista polonês, que, em pedaços, se espalhavam pelo chão. Como as peças do grande relógio jaziam pelo jardim assim como, no jardim, jogada, estava a cadeira onde o poeta se sentava para escrever seus versos. Desaparecidos, os quadros naifs do México, da Colômbia, de Samarkand, de Bujara, de Coronel, de Talcahuano e os vidros da casa, todos, quebrados. E as portas, todas, arrancadas. E as flores e as plantas que ao longo dos anos ela havia cultivado, destruídas, todas.   

Ainda nesse ano de 1973, quando escrevia suas memórias, no capítulo “Cristales rotos”, Pablo Neruda constatava: É verdade que o mundo não se limpa da guerra, não se lava do sangue, não se corrige do ódio. É verdade.

domingo, 8 de setembro de 2002

Estátua !




Nos idos tempos do século passado, havia uma brincadeira infantil em que uma das crianças dizia “Estátua!” e aquela que recebia a ordem, qualquer que fosse o gesto que estivesse a ser feito no momento ou a posição em que se encontrasse, deveria permanecer estática até que uma nova ordem a livrasse da imobilidade. Hoje, muitos adultos se lembram de assim ter brincado, porém não são capazes de dizer qual era a palavra que os desobrigava.

            Um Poder Maior, brincando com o Brasil, disse “Estátua!” há muitos anos atrás e se esqueceu, completamente, de falar depois a palavra salvadora. Isto é o que ocorre pensar ao reler Ode à censura, de Walmir Ayala, publicada no “Letras & Livros” do Correio do Povo de Porto Alegre, em 22 de maio de 1982. Um poema cujo título congrega duas palavras que pareceriam longe de poder combinar: composição poética de caráter lírico e crítica, condenação, reprovação ou exame de qualquer texto artístico ou informativo feito por censor a fim de autorizar sua publicação, exibição ou divulgação. Desencontro que já anuncia os outros que serão enumerados.


            São dez estrofes que desobedecem, quanto à simetria do número de versos e quanto ao tom, à estrutura tradicional da ode. Os seus três ou quatro ou cinco versos de cada estrofe não dizem das glórias divinas, não fazem o elogio das façanhas de homens célebres ou generosas reflexões sobre temas de consciência, não exaltam os prazeres do amor, do vinho, da música e da dança, mas expressam um sentimento de indignação. O primeiro verso se inicia com um verbo no Imperativo e na primeira pessoa do plural –Censuremos – a exprimir um desejo ou uma ordem ou um anseio que deve ou deveria ser de todos. Coerente com o significado do verbo, condenar, reprovar... seu objeto é a pornografia, palavra que na terceira conotação do Novo dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, significa devassidão, libidinagem. No entanto, os adjuntos adnominais, que lhe completam o sentido, correspondem àqueles usados, sobretudo, na linguagem político social da época, à pobreza e à ausência da ética constitucional. A pobreza, naquilo que impede possuir um mínimo de cidadania: a fome, o desemprego, o acesso negado à educação e à saúde, à segurança. A ausência de ética, exatamente nos fatos que permitem que tais descalabros sejam possíveis: a indústria da educação, os aumentos do pão e do leite, a irrealidade dos salários, as mortes cinicamente adiadas da previdência social. Fatos que se originam das instituições (propaganda mentirosa, violência policial, torturas, lentidão da justiça, símbolo do leão, as mortes devidas à falta de atendimento, pseudo moralismo, demagogia) ou de situações institucionalizadas (corrupção oficial, linchamentos, olho vesgo da justiça, medo, propinas visando benefícios). Assim enumerados, pareceriam parte de um relatório qualquer, entre tantos outros, a visar a procurada moralização e os bons costumes, imprescindíveis ao bem viver social. São, porém, palavras de um poeta e na sua ode que se poderia chamar  ode da  indignação, as sequências, regidas pela síntese, pela absoluta clareza, pela simplicidade de expressão tem como um recurso estilístico maior, o emprego do pleonasmo. O que está presente em algumas estrofes: na quinta onde a palavra justiça aparece três vezes e ainda no primeiro verso da estrofe seguinte. E na terceira, em que a expressão irrealidade dos salários se repete, embora haja grande diferença de significado, dada pelos adjuntos adnominais que os acompanham, entre uma expressão e outra: A pornografia da irrealidade dos salários do povo e da irrealidade dos salários dos que decidem o mesquinho salário do povo. Todavia o que deveras se repete é o vocábulo pornografia a iniciar cada uma das estrofes, exceção feita da primeira e da última que privilegiam o verbo censurar, conclamando ao repúdio das pornografias, estas que nos aviltam, contrapostas à outra que diante delas se mostra inofensiva, a ingênua pornografia que pelos olhos ou pela imaginação/montam suas máquinas monótonas/no espaço supérfluo do nosso sonho.

            Na verdade, a voz do poeta não alcançou multidões e todas as mazelas que o escandalizaram no país da década de oitenta (ou de todas as décadas), se mantiveram inalteradas e inalteráveis.

Porque a palavra da libertação é tão desconhecida quanto, a não ser para alguns, o desejo de enunciá-la.

domingo, 1 de setembro de 2002

A ordem

            São quatro sob o céu de verão, já no cair da tarde: o sargento Picucho, comandante do Piquete, Chico Romildo, Pedro Canhoto e Zé Bigode. Tinham as armas muito mal escondidas sob os ponchos – quem não iria desconfiar do uso do poncho em pleno mês de dezembro – e deviam chegar no lugar do pouso, ainda no começo da noite, cumprindo o que determinara o capitão Jacinto Ribas. Pois se ele mandava, assim tinha que ser mesmo que ardessem de sede, enfraquecessem de fome, as goelas doendo, os olhos vermelhos, cantis vazios desde o meio dia. Ali esperariam os demais companheiros até partir ao encontro da Coluna, para outra vez lutar pela Causa. A Causa que no conto “O molho pardo” de Manoel Braga Gastal (publicado no Letras e Livros do Correio do Povo de Porto Alegre, em 3 de abril de 1982) não é esclarecida. No entanto, os que a defendem o fazem com muita coragem. Seus feitos são relembrados pelo sargento Picucho, no cavalgar a passito, as rédeas soltas e não são poucos, nem pequenos, porém muito em acorde com o jeito do capitão a quem seguem. Um capitão valente que prefere lutar com menos gente do que os inimigos, explicando: Não sei peleá com muita gente atrapaiando. Não consigo me mexê. E que distribui cem balas a seus soldados porque no seu entender Quem precisa de mais de cem tiros é porque não sabe peleá. Macho nem percisa de tanto.

            Entre o tempo que dura, do entardecer de calor de sol ardendo em que o cansaço os tornava calados, como se cada um andasse solito por aquelas imensidões de campo, até o começo da noite, quando chegando ao destino teriam a sombra da figueira, a água da fonte, a carne no fogo, o relato vai precisando um universo: o dos campos da fronteira com seus tipos humanos, suas ações de combate, sua parca visão de mundo, seu culto à coragem, sua fiel adesão mais a um chefe do que aos princípios por ele defendidos. Breves seqüências a definir o essencial de cada um, a informar como encaram os encontros com o inimigo, esses milicos bem montados, com os fuzis novos brilhando no sol  mas que precisam de um vaqueano do lugar para lhes orientar o rumo.

Inesperado, o sentimento de Picucho em relação a um dos homens que comanda, o Zé Bigode. Seu verdadeiro nome ninguém sabe e seu passado ninguém conhece embora constasse que tinha sido sangrador numa charqueada antes de ser soldado. O que decerto lhe norteava a convicção de que nenhum prisioneiro deve ficar para contar a história: O mió mesmo era botá gravata vermeia neles. E foi assim, que num descuido do capitão, degolou três e só não foi mandado embora porque era de muita percisão na tropa. Mas o sargento Picucho não pôde olhar para ele durante muito tempo, tampouco esquecer os gritos dos homens, os seus olhos esbugalhados e nem a visão do sangue, escorrendo da garganta.  Quando os quatro  chegaram onde deviam pousar, as galinhas já estavam dormindo  nos troncos da imensa arvore. Uma cabrita e seu filhote andavam por perto, os úberes da bicha fartos de leite[...]. Depois de o ó de casa!, e de tomar muita água, perguntaram o que havia para comer. A resposta foi que poderia ser feita uma galinha ao molho pardo: É só pegar duas bichinhas que estão aí dormindo. Gosta de molho pardo, sargento? A gente degola, já, já, umas duas franguinhas. A fome dos recém chegados é sofreada  nesse diminutivo que designa as pequenas possíveis vítimas.  O sargento Picucho engoliu em seco..., Romildo fez cara de nojo e Pedro Canhoto esfregou o estômago. Só o velho sangrador de gado se dispunha, avidamente a aceitar a oferta. Era o único voto pelo molho de sangue da galinha. O sargento Picucho disse por fim: - Inté que não temo muita fome, dona Vicentina. Aperferimos leite de cabrita, recém tiradinho. Zé Bigode ia reagir, mas foi contido: -A janta é leite de cabrita, seu Zé. E isto é uma orde.