domingo, 25 de agosto de 2002

Recurso narrativo

            As dimensões do país, as costumeiras limitações da distribuição de livros e periódicos e a precariedade dos serviços de biblioteca são incontornáveis empecilhos para avaliar a receptividade de uma obra e o material crítico a ela relacionado. Dentre outras, O Louco do Cati, uma das obras-primas do romance brasileiro, publicado pela Globo, de Porto Alegre, em 1942 e em novas edições, décadas depois, não recebeu muitas apreciações se forem levadas em conta as referências que acompanham as publicações dedicadas a Dyonélio Machado e a sua obra. No entanto, a simplicidade narrativa desse romance nos seus breves capítulos, a linearidade da trama e a concisão da linguagem traduzem uma impecável concepção de romance que se enriquece com não poucos recursos estilísticos e formais. A estrutura do diálogo, por exemplo. Ela não obedece ao usual e tampouco se prende a um esquema determinado, permitindo constatar, num aspecto da narrativa que parece não oferecer muitas variantes, a criatividade do romancista gaúcho. Uma criatividade que se origina desta imensa aptidão que ele possui para perceber o outro nas suas diferenças e na sua realidade; que o deixa atento às nuanças da expressão e aos modos como ela se faz e que está na origem das muitas formas que ele dá à comunicação entre os diferentes tipos que povoam o seu romance. Assim, algumas vezes, a voz do personagem é indicada pelo travessão, enunciando uma pergunta cuja resposta é dada pelo narrador e aparece no parágrafo seguinte (inclusive, se constituindo um parágrafo); também,  laconicamente, a usar uma única palavra, no caso, um verbo, que não acompanha o tempo daquele usado na interrogação: - Já veio a água? /Viera. Ou: -O amigo não é então de Porto Alegre? Era. Ou, numa afirmação, que é retomada pelo narrador no parágrafo seguinte, a expressar a sua própria opinião ou a do interlocutor ficcional: -O velho Clarimundo não é rico, mas pode pagar... / Podia. Em outras, acontece que a uma pergunta, a resposta só apareça implícita no texto narrativo que se lhe segue: -Mãe, como é o nome dele? /Havendo-se informado, as crianças abalaram. Também há o caso em que o personagem fala alguma coisa no ouvido de seu interlocutor e o que diz não consta do relato. Nem a resposta que recebe mas, então o que diz, -Não! Que idéia..., esclarece o que fora dito, cuja explicação aparece no parágrafo seguinte, nas palavras do narrador a exprimir aquelas  do interlocutor, antecedidas de dois pontos, mas não do travessão: De-certo ele não tinha nada que ver com o Cati. Ainda se haveria de saber... E, ainda, a seqüência narrativa Já havia saído do hotel. Não dissera pra onde, oferecendo uma informação que a voz do personagem, num diálogo tradicional de despedida  (Obrigado, até logo / Às ordens.) reafirma Além desses, há o caso da resposta, cuja pergunta não consta nem explícita, nem implicitamente e se segue a uma seqüência narrativa: -Ele tinha a sua diária paga até o meio dia - informava-lhe o outro, - Duas meias diárias: foi o que combinamos com o gerente. Deve ter deixado o hotel a essa hora. Ou, outro, em que o narrador se refere a um cômodo da casa onde o personagem seria alojado, frase que poderá ser atribuída ao narrador ou a quem o hospedava. No parágrafo seguinte, uma pergunta que deve ser do hospedeiro, mas que aparece sem o indicativo de diálogo: Um sótão, habitável. Lá é que o maluco ia se alojar. /Não ficava bem?, esclarece sobre esse cômodo em questão.


            Além desses exemplos, encontram-se aqueles em que aparece apenas a afirmação de um interlocutor indefinido, como na seqüência em que o narrador explica a maneira com que um dos personagens negocia na feira da cidade pequena e insere, como expressão de um feirante, a afirmativa, -Estou pedindo o preço que eu fiz lá na pedra. Como se tratasse de uma resposta que não responde a nenhuma interrrogação  e que tampouco recebe resposta. E, esse outro exemplo, em que um personagem formula a pergunta -Em que mês você esteve em São Paulo? e no parágrafo seguinte há uma explicação quanto à forma como a interrogação foi feita e ao fato de que tenha um transeunte pensado que lhe tivesse sido dirigida. Logo, o narrador explica: Depois de se informar, o coronel refletiu, calculou e chegou à conclusão [...], isto é, a resposta a sua pergunta não foi respondida e a sua conclusão tem a ver com os próprios deslocamentos, permanecendo sem resposta objetiva a pergunta que fizera. Finalmente, o diálogo entre o personagem e o garçom do café onde entrara. Não consta o pedido que foi feito, somente o que dele resultou: Vieram os bulezinhos. Num – o do leite – cabia só a quantidade de leite para uma média. Mas o do café não trazia a porção exata: havia sobrado um pouco. E ele quase meteu o nariz dentro para ver. – Tinha alguma coisa? /O garçom interpretara aquilo ao modo habitual./O outro levantou-lhe um olhar de incompreensão./ Mas o garçom insistia: - Alguma coisa no café?... (Alguma coisa que ele pudesse ir imediatamente mostrar ao copeiro...)/-Não... (A cabeça do maluco sem se dar conta do interesse do garçom negava docemente).

            Além dessa inventiva formal, cada um dos diálogos de O Louco do Cati se enriquece ao se constituir a expressão que desenha um perfil, quase sempre, feito de breves traços em oposição ao personagem central da narrativa que, na sua longa viagem, jamais pronuncia uma palavra.

domingo, 18 de agosto de 2002

Porfia



          Cantigas do tempo velho foi o seu primeiro livro, editado pela Globo de Porto Alegre em 1959. Apparício Silva Rillo tinha vinte e oito anos e surgia na Literatura do Rio Grande do Sul como uma das grandes vozes da tradição. Neto de estancieiro foi no Campo Experimental de Sermentes, perto de Caí, dirigido por seu pai, um engenheiro agrônomo, que ele se iniciou na vida campeira ao ter contato com os peões, encarregados das tarefas diárias. E o gosto pelos costumes da vida rural gaúcha o fez optar pela vida no interior, indo trabalhar em Nhu Porá, distrito de São Borja onde viveu cinco anos numa convivência com tropeiros, domadores, carreteiros, contrabandistas, jogadores profissionais que se constituíram o embrião de seu mundo poético e de não poucas páginas de prosa. Em 27 de fevereiro de 1982, publica no Suplemento Letras & Livros do Correio do Povo de Porto Alegre, o conto “História de rio” que tem como espaço o rio Uruguai. Inicia a narrativa no momento crítico da ação: Quando a balsa de lenha rebentou [...]. Um pouco antes, os dois tratados para a tarefa – levar a carga de lenha para São Borja – já tinham nadado para uma ilhota que mal aparecia entre as águas do rio. Ele, seu Vicentino, lenhador, costeiro de rio, gaiteiro de bailes machos não era homem que deixasse de cumprir o trabalho pelo qual já fora pago. Agüentou mais uns instantes na balsa carregada de toras e mal teve tempo de amarrar o salva-vidas de corticeira antes de, por sua vez, se atirar na água para lutar. Primeiro com as águas do rio que lhe exaurem as forças, sem vencê-lo.Tampouco, sem deixá-lo vencedor, mas ainda capaz de tentar salvar-se da cruzeira, arrancada das margens, pela enchente. Enroscara-se no seu braço que, procurando um descanso, se apoiara na touceira de vegetação, também, como ele a ser levada pelo rio. E a história que se fazia da coragem e do esforço de um homem de setenta anos, para se salvar das águas barrentas do rio, passa a ser também, a história do medo e da grande calma que a ele deve se sobrepor para evitar o ataque mortal da cobra.

Trata-se de um relato em que a ação é a passividade da espera antes do breve gesto que irá definir o fado. Sua força está nesse personagem valente em seu corpo magro, os nervos bem domados, ligeiro como um gato que pela primeira vez se vê diante da possibilidade da morte, a sentir seus nervos a tremer e sua calma e seu equilíbrio se perderem a revelar um ser humano na sua fraqueza e impotência. E sua beleza, neste contínuo encadear de achados estilísticos onde sobressaem as comparações que, juntamente com a coragem e a honradez a desenhar o personagem e com algum vocábulo – bagual, taura, colorado – típico rio-grandense, deixam ver no texto de Apparício Silva Rillo a presença da tradição própria da Literatura Gauchesca. Pois esse mundo tão perto da natureza – e o rio e o mato – emerge na concepção das vivências: as águas do rio bufam como touro de carne líquida; o coração do homem com medo dispara como potro mordido de morcego; a árvore arrancada pela força da água boiava como estranho bicho; a noite se fechava como baú de couro cru. E Vicentino, o velho taura ainda que mateiro é, na sua visão de mundo, igual aos gaúchos das lides campeiras, a guardar a honra da palavra dada, a enfrentar com serenidade os duros lances da vida. No entanto, ele não adquire contorno de herói diante do insólito inimigo e seu corpo se submete ao medo que sente. Momento em que a narrativa feita, até então, por um narrador de posse da ação e de seu personagem, para expressar a sua fragilidade, emprega uma segunda pessoa singular, talvez como expressão de sua consciência (ou como expressão solidária do narrador), numa seqüência lírica, logo abandonada, para que o relato objetivo e rápido, retome o seu lugar para um epílogo sem indulgência. Mas, a última frase do conto – Por que dormes, Vicentino, velho taura, aguapé de carnes pela flor da enchente?revela, no vocativo de elogio e carinho, na interrogação que recusa aceitar a morte e na metáfora a confundi-lo com a planta viva, pelo fazer literário de um verdadeiro mestre, a emoção que se mantivera contida.

domingo, 11 de agosto de 2002

O diálogo


            O conto está construído em duas partes, cada uma delas com o seu respectivo título. Na primeira, “O bar”, Magallanes combina com dois matadores, a soldo, Suárez e Jacinto, a morte de sua mulher. São bem explícitas as razões: a mulher está doente há quinze anos e se ele vender os seus bens, poderá viajar, vestir-se bem e freqüentar belos lugares. Ao dar tais explicações aqueles que devem executar o serviço, afloram-lhe à mente, algumas lembranças da convivência com ela que se mostra, então, comovente nas atenções que lhe dá. Na segunda parte, “O dormitório”, lugar em que se efetuará o assassinato, ele chega e a encontra acordada e, logo nas primeiras linhas, ela se mostra diferente daquela que lhe aparecera nas lembranças: no seu olhar havia a curiosidade, a frieza, a crítica e o desprezo que ele já conhecia. Desejou que visse as flores que trouxera, porém, em vez de prazer, elas provocaram certa melancolia, certa queixa longínqua, ao dizer que ele devia ter feito isso dez anos antes. E de reprimendas de um e de outro, de sentimentos expressos e escamoteados, se estabelece entre eles um diálogo, verdadeira obra-prima desse fazer literário que é tão peculiar em Carlos Droguett e que ele não poupa neste conto “Magallanes”, publicado em 1969 na Antologia del cuento chileno (Barcelona, Ediciones Acervo). Seus recursos – um narrar sinuoso em que o ritmo se dissolve, por vezes, nas recordações, em que o perfil de cada um se desenha pelo olhar do outro e pelos gestos de desencontro, em que o cambiante dos sentimentos vai se delineando no tom da voz e em que as razões que estão na origem do deteriorar dos sentimentos que, ora se revelam, ora se mascaram – não espelham apenas a alma de dois seres em conflito, mas, também, a perfeita evidência de que, humanos que são, jamais se mostrarão transparentes.


Imagens do bar onde estivera e de seus amigos passam pela cabeça de Magallanes e quando é encurralado pelo ódio que pode sentir pela mulher deseja que venham logo ou, ao pensar que, talvez, não cheguem denota uma esperança de que o combinado não ocorra. Também, fugazes momentos do passado distante (o enterro da mãe quando era muito pequeno e mal entendia o que se passava, a adolescência nos úmidos corredores do colégio) e os mais recentes (as pernas da mulher, entrevistas num dia de vento, a presença dos amantes que ela tivera, na sua casa). Quando começa a abrir um pacote de presente, ganho há muitos anos, se enternece e à beira de uma mesma lembrança. Ela também olha para ele com ternura, embora, nessa noite, possa vê-lo como é: com a roupa amassada, a barba descuidada, fios de cabelo branco, triste e gasto, doente de si mesmo, como ela diz, com raiva: teus sapatos com os saltos tortos, tuas calças ordinárias e enrugadas, teu casaco com as lapelas aureoladas de graxa, tuas mangas esfiapadas, tuas camisas sujas, ensebadas, tua gravata ignóbil e corrompida, teu hálito envelhecido e espantoso, teus olhos tristes, espantados e espantosos. Oh! Magallanes, tua cara cheia de feias sardas e teu cabelo cheio de feias cãs! Na verdade, ele não se percebe muito diferente: barbudo, sujo, horrivelmente pobre e gasto, com as pernas desfeitas em vinho, comidas ruins e fumaça de cigarro, com a miséria pregada no corpo. Sabe que não conseguiu vencer na vida, que é pobre e triste miserável, que a apunhalou, lentamente, durante anos. Ela, com sua bela boca de lábios pequenos e carnudos, seus olhos enormes, sonhadores, sensuais, abertos e tíbios, com olheiras estivais e passionais, ora é vista por ele, tersa e pálida, com esse aspecto cansado que as doenças lhe deram, ora bonita e tranqüila. Oscilando entre o amor e o ódio, se move em direção a ela em avanços e recuos: lhe ajeita o xale no corpo para protegê-la da friagem noturna, quer beijá-la com paixão, a acaricia distraidamente, beija os seus cabelos, desejando que os matadores cheguem logo e vai até a janela na expectativa de vê-los chegar.E entre o amor e o ódio, também ela oscila entre a repulsa que a faz recusar o seu beijo, a ter os lábios secos e as mãos desfeitas e frias, ou levantar-se da cama e ir até ele, preocupada ao pensar que ele esteja doente, ou sentir ternura e ansiar pelos seus beijos ou arrumar os cabelos com a sua faceirice inata e felina.

Contraditórios sentimentos que se expõem nas vozes – ele fala lentamente e repassando as palavras ou com voz firme ora com um pouco de desprezo ora triste com ameaçadora timidez, arrogante e orgulhosa, distante e velada, cansada e raivosa, arrastada, sonolenta, desabrida e desafiante; e ela, com voz queda e lenta, cândida e sensual, lúcida e desfeita, séria e triste, num sussurro – porque as palavras que dizem contém verdades a meias e se enredam nos anseios não cumpridos, nas ilusões e desejos perdidos, barreiras a mais para separá-los.

Cansada, ela adormeceu e, olhando a cortina que o vento da noite empurrava na direção deles, Magallanes também adormece. A última trégua final terminara e eles irão usufruir da liberdade que lhes chega junto com o matador e seu revólver. Para um a liberdade que acena para a vida; para o outro, a liberdade irremediável da morte.

domingo, 4 de agosto de 2002

A cidade do Poeta


   E quando põem abaixo, então, a velha casa em que nascemos?
                                                                             Mario Quintana


            Mario Quintana foi um citadino convicto. Nasceu no dia 30 de julho de 1906, em Alegrete, pequena cidade, enraizada nos campos gaúchos, onde passou seus primeiros anos. Em 1929, ele se radicou, definitivamente, em Porto Alegre e os sessenta e cinco anos que lá viveu lhe deram a posse da cidade muito antes que a Câmara de Vereadores lhe tivesse conferido o título de Cidadão Honorário.

            Em 20 de novembro de 1982, no “Letras e Livros”, do Correio do Povo de Porto Alegre, publica “Notas de minha cidade”, parte de seu Caderno H. Embora sob esse título tão preciso na sua idéia de indicar posse, os nove textos, que sob ele se agrupam, não se prendem a Porto Alegre como, por exemplo, no soneto XXI de seu primeiro livro de poemas A rua dos Cataventos em que se refere ao céu de Porto Alegre, dono dos mais belos crepúsculos do mundo ou no poema “O mapa”, parte de Apontamentos de História Sobrenatural, verdadeiro canto de amor pela cidade. Nessas notas, é, sobretudo, a idéia de morar e de viver na cidade em mutação. Dono de uma vivência, que lhe permite comparações, percebe as mudanças o que significa expressar perdas na melancolia de se submeter ao irremediável.

            O primeiro texto, feito de uma frase, sintaticamente, inacabada – Ah! Os ângulos contundentes das construções urbanas... – é um pequeno mundo de sugestão no monossílabo inicial a exclamar significados e nas reticências interrompendo um pensamento que irá, no entanto, se completar nos textos que seguem. Ou na lembrança de um personagem mágico das histórias infantis (vivia no País das Maravilhas ou na cidade de Oz, a precisão aí pouco importa), que morava num sapato. As reticências que se seguem a essa lembrança, sugerindo as mais diversas elucubrações, antecedem a constatação trocista, E nós que moramos em caixas de sapatos! em que a metáfora ao designar um modelo de morar, não é, certamente, das mais elogiosas. Sobretudo para quem se confessa, no texto que segue, um apreciador de casas antigas, de tetos altos. Dessas que o progresso (assim é chamado o fenômeno que tem como condição as transformações da vida social e consiste num aumento de significado e alcance da experiência humana) condena ao desaparecimento para, em seu lugar, erigir edifícios, o que vale dizer, ainda que poeta não o tenha mencionado, outras caixas de sapatos. Daí ele dizer, num poema dedicado a um amigo arquiteto, não gostar da arquitetura nova porque ela não faz casas velhas.... E, sempre a refletir sobre as mudanças arquitetônicas, acaba concluindo que elas estão na origem da instabilidade social e individual. Exemplo disso, ele diz, é o desaparecimento dos cafés onde, entre o cigarro e as conversas, o mundo era arrasado e o sonho, o ideário, a vida se renovavam. Com o café servido no balcão, tomado às pressas, não há tempo para assentar as idéias porque, para isso, é preciso primeiro sentar-se... Observação que, levemente risonha, envolve o seu dizer crítico sobre os novos tempos. Lamento que, por vezes, não se esconde. Assim, mais sofrida e tristonha, a penúltima nota remetendo à inquietude, à sensação de perda que advém ao passar numa rua conhecida e se dar conta de que falta algo: um simples lanço de muro que demoliram e que tijolo a tijolo, fazia parte de nossa construção interior, de nossa instabilidade, em suma. O que, para Mário Quintana, não é absolutamente algo de menor. Da cidade, que ao se transformar se perde, ele é o habitante testemunho a viver a sua realidade mutante e seus próprios sonhos.