domingo, 28 de julho de 2002

História de morte em dois atos. O segundo


            Essa mulher, marcada para morrer que, na primeira parte do conto, se delineia a partir das lembranças de seu marido, se mostra, nas linhas iniciais da segunda parte, que tem por título “O dormitório”, como o reverso de uma medalha. No bar, horas ou minutos antes, fora acertado entre o marido, hesitante, temeroso, e os matadores, a sua morte. No quarto onde deve se dar o crime, o marido, que chega, se prepara para cumprir o combinado: amá-la pela última vez e, da janela aberta para que ela respire o perfume das acácias mimosas e dos rododentros, certificar-se, pela brasa dos cigarros, brilhando na esquina, da presença dos cúmplices que assobiarão, para preveni-lo, antes de subir as escadas de sua casa. As dúvidas que sentira ao combinar o crime – se livrar da mulher doente há quinze anos e da pobreza ou desistir de realizar o plano – o tornam frágil e desvalido. As flores que leva para ela estão amarfanhadas e feias e ele, triste e ridículo e pobre, impelido ao carinho. Fala com timidez, seus lábios tremem e se sente mais miserável e mais triste, esquecido de tudo, afastado de Suárez, do restaurante, das conversas e das promessas. E tem sede e fome e desejo de lhe dizer o que nunca lhe tinha dito. Olha para ela com olhos melancólicos e ansiosos em resposta ao olhar investigador e frio, crítico e depreciativo com que foi recebido. E, cada um deles, irá marcar a trajetória dos que se presume ser: o que decide a morte do outro e o que dela será vítima. Uma trajetória feita dos sentimentos que procuram palavras, mas não alcançam o interlocutor. Permanecem, um e outro, na própria solidão até serem vencidos, ela pelo sono, ele por uma sonolência que prolonga os seus murmúrios de queixas e não o impedem de sentir o leve perfume que emanava do corpo dela, um perfume completamente sadio e limpo, sem doenças, sem ódios, sem crueldade; tampouco de perceber as próprias lágrimas. O que povoa o seu sono, o relato entrelaça, então, com a ação dos matadores. São interrogações (quando ela comprou os remédios? por que não a matei antes?), certezas (quinze anos de tosse, mil injeções de cânfora, milhões de cafiaspirinas), esperança (eles não vem, não tem coragem), confissões ( o amor que sente por ela e o ódio pelos remédios, pela sua própria pobreza, pelos trajes de festa que ela possuía em paga de seu adultério), emoções (desejo de chorar de arrependimento e tardia ternura). E não escuta o ranger da escada e da porta nem o ruído dos passos. Não percebe a luz da lanterna que varria o chão e subia pela colcha. Quando no sonho, rodeado das gravatas que dela recebera de presente, se dá conta que não era tão pobre e ri, acorda assustado e vê o matador e o revólver. Apenas tem tempo de cobrir a nudez da mulher e os três golpes bem dados, bem preparados o atingem de lado. Pensa que os matadores estavam fazendo o combinado, feri-lo para não levantar suspeitas e sente o cheiro do sangue. Quis se apegar no agressor para recomendar que fizesse tudo muito bem para não provocar desconfianças. Mas outro golpe o derrubou. Lampejos de lembranças de sua infância lhe vêm à mente e, também, os primeiros automóveis que chegavam para buscar sua mulher. Então, o matador constata que já está morto e que a mulher, despida, se agarrara na cortina e olhava para a cama com olhos imensos antes de fugir. O matador pôde vislumbrar, na luz da noite, “seu belo torso de mulher jovem e tentadora. Não parecia doente.

            O tema da morte é, sem dúvida, caro ao chileno Carlos Droguett o que, face à freqüência com que aparece nos seus textos, não deixou de intrigar os críticos e levar os seus entrevistadores aquestionar-lhe, muitas vezes, os motivos.

            Neste conto “Magallanes”, publicado na Antologia del cuento chileno (Barcelona, Ediciones Acervo, 1969), trata-se de um assassinato por encomenda. Estruturado em dois tempos, o da elaboração do plano e o da ação, entre eles se insere o diálogo de Magallanes e sua mulher a diminuir a agilidade narrativa. Em contrapartida, revelam-se fragmentos de vida e desnudam-se os sentimentos em seqüências que tornam o que parecia muito simples – o assassinato de uma jovem mulher doente, há quinze anos, visando o usufruto de seus bens – em algo cheio das nuanças que são tão próprias do sentir dos homens e que apenas os grandes conhecedores de almas podem decifrar. Regidos pelas paixões, Magallanes e sua mulher ignoram limites na obtenção de seus desejos, movendo-se num mundo lamentável de pobreza, de enfermidade, de mentiras que se mostra propício à violência que uma estrutura social desregrada pode originar.

            Porém, nessa visão melancólica do mundo que dá a conhecer, Carlos Droguett faz, no entanto, emergir a sedução da vida na fugaz visão da figura feminina que o destino ou o olhar concupiscente do matador poupou da morte.

domingo, 21 de julho de 2002

História de morte em dois atos. O primeiro


            O relato se faz em dois tempos e em dois espaços, introduzidos pelas palavras “O Bar” e “O dormitório”. Tem por título um nome próprio, Magallanes e foi publicado no segundo tomo da Antologia do conto chileno, em Barcelona, pela Editora Ediciones Acervo, em 1969. No bar, esse recinto onde, segundo as primeiras palavras do conto, havia muita fumaça, muito calor, muito ruído, Magallanes está a fazer um acerto: o assassinato de sua mulher. Dialoga com os matadores, queixando-se com tristeza, com pesar, quase com terror, sentindo-se trêmulo, cheio de dúvidas sobre a maneira com se dará a morte, se poderá ser numa outra noite, se irá tudo dar certo. Suárez, o de olhos amarelados que não pestanejam, a buscar detalhes, profissionalmente convicto de que é necessário perguntar muito quando é preciso fazer um trabalho perigoso. São perguntas cruéis – qual é a idade? desde quando está doente? onde?  a que horas? – e as respostas de Magallanes advém, concisas: 35, 38 anos, Está enferma há quinze anos, Segundo andar, há um longo corredor no fim da escada, qualquer hora, às dez e meia seria uma boa hora. Mas lhe trazem à mente, retalhos da vida compartilhada. O momento em que se conheceram numa festa de casamento e ela era gordinha e cheia de risos e tinha um lindo cabelo castanho; o seu gesto de tornar o rosto em direção da porta quando lhe escutava os passos, subindo a escada; ou essa dedicação de se levantar pálida e delgada, no escuro, para lhe perguntar, quando tossia, se estava doente; ou o esforço de alongar o braço para alcançar as pílulas e o copo de água; o tempo cheio de paixão e esperança, de maravilhosos projetos. Certo do que deseja – viagens, restaurantes elegantes, o limpo convés de um barco de luxo, uma noite completamente silenciosa naquele hotel construído na beira do mar sobre as rochas – os sentimentos, no entanto, se lhe embaralham. Quando diz aos matadores que ela lhe dá náuseas e especialmente pena, logo, confessa que ainda gosta um pouco dela. Na ânsia de viver, dos seus trinta anos, levado pelo miserável desejo de viver, negocia a vida da mulher, pelo preço de umas jóias e de algum dinheiro, desejando, porém, que os matadores demorem a chegar ou que não entrem na casa ou, se entrem, não cometam o assassinato. Ou querendo pedir que não mais façam o que fora tratado ou pensando na possibilidade de matar o matador em vez de ficar passivo e cúmplice.



            Como soe acontecer com os personagens de Carlos Droguett, Magallanes parece ser apenas esboçado na menção a seus belos dentes e às suas costas enfermiças, frágeis, dispostas sempre à pneumonia ou à tuberculose. Esboço que se amplia no diálogo mantido com Suárez, pois Jacinto, o outro matador, de cara tropical e brilhosa, mal enuncia uma frase (Serás feliz, desejamos tanto que o sejas...) na sua voz pastosa e úmida, arrastada. Nas palavras que diz, ele se desvenda, reafirmando a maestria do escritor chileno, nesse mistério de ser humano, cujas facetas hesitam entre o bem e o mal que tênues fronteiras separam. Indefeso, ele próprio, diante de quem se atribui direitos de vida e de morte sobre um seu semelhante, transpira, encolhe as pernas como se as escondesse, como se protegesse todo o seu ser para não deixá-lo à mercê de Suárez, embora possa sorrir com frieza e crueldade ao mencionar o correto assassinato que pretendiam. Suárez, que reconhece ter ele tido muita paciência nesses quinze anos, demasiados para os seus frágeis ombros, que o acusa de ser sentimental e sonhador, fala e ri com suavidade e finura na voz sarcástica e ingênua que se revela quase triste ao aventar que talvez ela se defenda, é um matador que se rege por princípios. A hombridade que exige coragem e um comportamento amoroso propiciado condignamente à mulher que irá morrer. Ordena mas tu a farás dormir, serás leal e bom. Vais amá-la e isto não te custará muito, será tua última noite e compreende: estás triste e é natural estar triste e a tua salvação, quanto mais triste e desgraçado pareças, melhor para todos nós. Considera por terminado os acertos, se encaminha para a porta do bar, deixando Magallanes a olhar para a mesa onde estavam os pratos e os copos e onde, no bojo de uma colher, uma colherada de luz brilhava triste.

domingo, 14 de julho de 2002

Retrato de Pedro


            Primeiro foi sua infância em Belmonte a escutar a lenda que explica o seu nome e a posse de tantas terras, a brincar em correrias pelo castelo ou em cercos imaginários à torre de Centum Cellas, um dos mais enigmáticos edifícios dessas paragens perto da Guarda, a cruzar pelas pedras, o rio Zêzere, de águas que rolavam doces no verão. Depois, ainda quase menino, o seu tempo de aprender, em Lisboa, os desejos de ação, colmados com o batismo de fogo no Marrocos e a sagração de cavaleiro da Ordem de Malta. E, com a ascenção de Dom Manuel ao trono de Portugal, ser escolhido para realizar a missão que consolidaria a presença portuguesa na Índia.

            Nau capitânia, Prêmio Casa de las Américas, 2001, relata a viagem feita sob o seu comando, desde a cerimônia que antecedeu o embarque nas treze naus até o seu término, no dia 21 de julho do ano seguinte. Walter Galvani, neste seu sétimo livro, publicado pela Record em 2000, obedecendo a fatos comprovados em documentos, declarações, citações, cartas e registros oficiais, como bem o diz ao historiar a sua própria navegação em busca da biografia de Pedro Álvares Cabral e, também, às intuições advindas das lacunas e sugestões, conteúdos tácitos ou implícitos daquilo que a história oficial muitas vezes disfarça, para delinear um retrato do descobridor que o humaniza, tanto quanto é possível, numa imagem que o tempo e a crônica de seu feito petrificaram.

            Assim, de Pedro Álvares Cabral, que parte de Lisboa no dia 9 de março de 1500 e navega dezesseis meses, serão relatados os percalces e as proezas, que não foram poucos nem pequenos, e, também, algo de sua idiossincrasia nessa outra aventura cheia de armadilhas do viver na corte tão perigosa como o tombadilho de seu navio, a enfrentar ventos e calmarias e a difícil arte de se relacionar com os homens. Porém, será na solidão das dúvidas e dos medos, na tristeza e nos desenganos que o acompanharão pelo resto de seus dias que ele se aproximará da fragilidade dos humanos, iluminados, às vezes, pela felicidade, mas à mercê dos fados, pois são eles que determinam a medida das infelicidades e das agruras. Delas, Pedro Álvares Cabral não foi poupado nessa marca em seu corpo, deixada pela febre sem cura, contraída na África a atormentá-lo a cada quatro ou cinco dias, provocando um desconforto – visão turvada, dor de cabeça, suor frio, febre e irritabilidade – que tenta ocultar dos demais, a querer fugir, fugir, encerrar-se, silenciar num canto como um animal ferido. No seu navio, não consegue ficar sozinho e não se permite queixas, mas, ao acometer-lhe a dor, nada mais ouvia com paciência, nem lhe prendia a atenção. Todavia, se algo o chamava à realidade, entendia que era preciso voltar ao convés, ser visto, transmitir confiança, ouvir o que tinham a dizer os subordinados, mostrar-se forte. Tampouco, da sucessão de desconsolos, ao ser esquecido pelo rei que nunca mais o chamou para lhe atribuir uma nova travessia, depois da recusa em partilhar do comando com outro capitão na viagem que se seguiria, confiada, então, a Vasco da Gama.

            Os anos foram passando e ele a viver entre a espera da palavra real e as lembranças do que vivera. Atormentado pelas dúvidas e pela incerteza quanto as suas decisões: se deveria ter procurado melhor o navio de Vasco de Ataíde que se perdera logo no início da viagem; se fora impaciente demais no castigo que determinara, em nome do rei, pela morte de cinqüenta e quatro portugueses em Calicute, bombardeando, durante quatro horas a cidade, esparramando destruição, reduzindo a pedaços e cacos retorcidos pessoas, cavalos, edifícios, até elefantes, levando vingança e morte.

            E, martirizado, se pergunta se o exílio a que está condenado na sua própria terra, ao ser privado da atenção do rei, não é um castigo merecido. Queixas a lhe alimentarem os dias que poderiam ser de sossego, vividos nas suas terras, junto com Isabel, sua mulher e os filhos: breves monólogos a se inserirem no relato e que o mostram cordato, arrependido num perfil que se completa nas seqüências narrativas quando dizem ter ele piedade dos degredados que deve deixar nas costas visitadas; quando aconselha os marinheiros a não cometerem hostilidades para com os naturais da terra, ao desembarcarem na nova terra; ao mandar pôr coxins sob a cabeça dos índios que pernoitaram no seu navio ; ao reunir os melhores homens a bordo para, diante dos mapas e portulanos, trocar idéias sob a luz das estrelas e das tochas numa simplicidade que não eludia a sua postura de príncipe.

Um Pedro Álvares Cabral que a linguagem escorreita, contida, de Walter Galvani recria para fazê-lo chegar novamente ao Brasil. Desta vez para ser descoberto.

domingo, 7 de julho de 2002

Ausência


Sem que eu me lembre disso, sem saber que a olhei com meus olhos, morreu minha mãe, dona Rosa Basoalto. Eu nasci no dia 12 de julho de 1904 e, um mês depois, em agosto, esgotada pela tuberculose, minha mãe já não existia. Pablo Neruda. Confesso que vivi.           

Em 1980, a Seix Barral de Barcelona, publicou El rio invisible, a poesia e a prosa dos primeiros anos de Pablo Neruda, livro que abriga a única fotografia de sua mãe, Rosa Basoalto de Reyes, morta dois meses e dois dias depois de seu nascimento. Entre os poemas que fazem parte desse livro, dois lhe são dedicados e, embora, possam ser ingênuos, segundo expressão de Volodia Teitelboim (Neruda, Editorial Sudamericana Chilena, 1996), trazem bem forte a presença do inconfundível lirismo que nunca deixará de marcar a sua poesia. Um dos poemas tem por título “Luna”: Cuando nací mi madre se moría / com una santidad de ánima en pena. / Era su cuerpo transparente. Ella tenia / bajo la carne un luminar de estrellas./ Ella murió. Y nací. Por eso llevo/ un invisible río entre las venas, / un invencible canto de crepúsculo / que me enciende la risa y me la hiela. No primeiro verso, como mais tarde e, tantas vezes, a sua história, a começar sob o signo trágico da orfandade. Nos três seguintes, o querer esboçar um perfil cuja visão lhe foi negada, o leva a uma idealização em que as expressões santidade, corpo transparente, luz de estrelas traduzem uma singeleza que o trágico signo – morrer/nascer – irá amenizar tanto quanto os versos  seguintes em que os recursos estilísticos anunciam o domínio da palavra que estará, sempre, a serviço de uma visão de mundo, submissa aos sentimentos e as paixões. Porque, se nos primeiros versos fala da imagem da mãe que ele próprio constrói a partir do nada, nos quatro últimos, irá dizer do seu sofrimento diante da ausência. Volta-se para si mesmo e se refere a esse rio invisível que lhe corre nas veias que, talvez, numa linguagem metafórica, signifique a imensidão de lágrimas a serem vertidas e a esse canto pleno da tristeza de um fim do dia. E o último verso do poema, como a síntese de um soneto na confissão barroca, contraditória, de um riso que se expande e que se gela: alegria possível de existir como passível de ser destruída.

            “Humildes versos para que descanse mi madre” traduz, na primeira palavra do título, a timidez do poeta, quiçá, a se achar indigno de seu tema. Inicia o seu verso com o vocativo, Madre mía, num desejo de diálogo que o destino determinou impossível: Madre mía, he llegado tarde para besarte / y para que com tus manos puras me bendijeras; / ya tu paso de luz iba extinguiéndose / y habías comenzado a volver a la tierra. / Pediste poco en este mundo, madre mía./ Talvez este puñado de violetas mojadas / está de más entre tus dulces manos / que no pidieron nada. Dirige-se a ela, no lamento impotente do gesto que não se realizou, dos bons augúrios que teria almejado receber. Sujeita-se à realidade do seu desaparecimento e, outra vez, busca o diálogo no vocativo madre mía que se repete, agora, penalizado com esse quase nada que a vida lhe deu, imaginando uma interlocutora que apenas existe na sua emoção.

            Muitos anos mais tarde, Pablo Neruda volta ao lugar em que nasceu em busca de alguma lembrança que de sua mãe tenha ficado, de alguma história que sobre ela alguém possa contar. Uma velha vizinha, que a havia conhecido, lhe revela uma ou outra coisa e diz que ela adorava poesia, que passava muitas horas a ler. E lhe oferece a fotografia que, pela primeira, vez revela ao poeta a imagem de sua mãe. Volodia Teitelboim que o acompanhava nessa volta às origens, testemunha: Ele olha comovido o pobre âmbito doméstico. Recorre a desmantelada e empoeirada casa provinciana onde nasceu. É uma chave enferrujada para penetrar nas suas origens.