domingo, 16 de junho de 2002

Os esquecidos


Numa carta a sua mãe, escrita na prisão de Turim, no dia 24 de agosto de 1931, Antonio Gramsci dizia: Fui um combatente que não teve sorte na luta imediata e os combatentes não podem nem devem ser lastimados quando lutaram não por obrigação mas porque quiseram, conscientemente. Estas palavras aparecem em epígrafe no romance Barão de Mesquita, 425: a fábrica do medo de Alcir Henrique da Costa, publicado em 1981, pela Editora Brasil Debates e, certamente, lhe completam o sentido. Um sentido que nasce da necessidade de expressar, como bem o definiu Ferreira Gullar na apresentação que faz ao livro, a experiência dolorosa de toda uma geração de jovens militantes que no testemunho ou na ficção irá registrar as suas ações e os seus valores, as situações limites com as quais se defrontaram. No relato de Alcir Henrique da Costa, a ação – assaltar uma delegacia com o objetivo principal de se apossar de documentos de identidade – de um grupo de militantes fracassa e eles vão sendo capturados pela polícia e submetidos aos conhecidos tratamentos da máquina repressora. No cenário da prisão e no confronto entre o indivíduo indefeso e o que, protegido pela lei, se atribui o direito de torturá-lo é que se passa a maior parte da ação, interrompida, por vezes, pelos breves relatos em que as discussões teóricas explicam as razões da luta e o momento das prisões anunciam o que virá depois. Baseada em fatos reais, a narrativa se faz a partir da coragem de alguns e da fraqueza de outros diante dos golpes físicos e morais a que são submetidos. Primeiro, o ritual conhecido de todos os presos: o grito ao cabo de guarda, a chave no cadeado, a tramela, a porta rangendo, depois o ruídos do ar condicionado na sala roxa, os gritos roucos e sem saliva do torturado. Depois, o ritual, aplicado a cada um em variações de verdadeiro horror que o relato não elude. Cuidadosa ficção no alternar do tempo, no ritmo narrativo preso ao essencial, na verossimilhança dos perfis que se mostra escorreita, sem enfeites. E que traz ao mundo dos homens a imagem de uns (que necessitam da maldade racional e dela fazem uso) e de outros (que buscam maneiras de erradicá-la).

            No seu enfileirar de barbárie e selvageria que a desfaçatez e a prepotência quiseram negar terem existido nos porões de um regime que, além de intolerante para com seus opositores, muito pouco realizou por todos os demais cidadãos, Barão de Mesquita, 425: a fábrica do medo se inicia e termina com dois momentos luminosos de confiança e de solidariedade: o primeiro capítulo do romance em que o padre questiona o seu acompanhante sobre a decisão de voltar para o Nordeste e continuar na militância, oferecendo-lhe ajuda. E o último, quando se reencontram poucas horas depois, se despedem, e o padre o ajuda com um pouco de dinheiro e o vê partir, convicto. Só então, se revela o seu nome, Miquimba, e ele surge como semente auspiciosa que levará avante a luta.

            No ano em que foi publicado o romance de Alcir Henrique da Costa, mal se desvaneciam as sombras ditatoriais no Continente e talvez muitos acreditassem em novos tempos. E até mesmo, quem sabe, fosse possível conseguir não lastimar os caídos e pensar que o combate contra os persistentes caminhos da opressão, e em quantas frentes ela se exerce ,fosse, ainda, viável. Daí a presença de uma esperança – é preciso dizer, convencer, mudar – na figura de Miquimba para quem as palavras que ouviu tiveram sentido. Na sua passagem de praça do exército a militante está presente uma esperança. Na verdade, muito tênue e que não é suficiente para impedir que acabe por reinar, soberana, a grande melancolia diante da certeza de que, nada vingou desses desejos utópicos de justiça social numa sociedade renhidamente dividida em classes e que o sofrimento dos maltratados e o sacrifício dos que morreram, foi, definitivamente, em vão.

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