domingo, 30 de junho de 2002

Os clandestinos. 2 Canto General


            O mundo dos negócios explica, hoje, que a produção de um filme possa ter dois ou três países como financiadores e que a edição de um livro possa ocorrer, simultaneamente, em dois, três ou mais países numa política editorial que, poucas vezes, leva em conta a qualidade e sim, antes de mais nada, o lucro.

No entanto, foi em 1950 que se deu, no dizer de Emir Rodriguez Monegal (El viajero inmóvil, Buenos Aires, Losada, 1966) um lançamento editorial latino-americano de tal importância como poucos livros o tiveram: no dia 3 de abril, resultado de uma subscrição, assinada pelas personalidades mais destacadas do mundo hispânico, na cidade do México, veio à luz o Canto General numa edição ilustrada por Diego Rivera e David Alfaro Siqueiros. Logo aparece outra, em fac-símile que, posta a venda, foi um êxito notável. Três anos antes, em abril de 1947, haviam sido realizadas no Chile eleições municipais cujos resultados mostraram uma expressiva presença do Partido Comunista, partido que dera apoio a González Videla para elegê-lo Presidente. Ele, então, havia dito: Não haverá força humana nem divina que possa me separar do Partido Comunista. Mas, com o resultado, que não previra, a contrariarem seus novos acordos, não podia aceitar, diz Volodia Teitelboim no seu livro Neruda (Santiago, Editorial Sudamericana Chilena,1996) que os comunistas viessem a se constituir, através das urnas, um grande partido. Na verdade, é sabido que já havia negociado com os norte-americanos do presidente Harry Truman os destinos dos comunistas. Logo, passou a perseguir Pablo Neruda que o ajudara na campanha, como Chefe do Comitê Nacional de Propaganda, quando então,  testemunhara as suas promessas de reformas sociais. Dominado pelo humilhante sentimento de ter sido atraiçoado, o Poeta escreve “Carta íntima para milhões de homens”, publicado pelo jornal El Nacional de Caracas.

            González Videla, com o argumento de que a publicação dessa carta no estrangeiro é um abuso de quem usufrui da imunidade parlamentar, pede a destituição de Pablo Neruda de seu cargo de Senador da República. Apesar da licença para se ausentar do país que lhe concede Arturo Alessandri, Presidente do Senado, no dia 3 de fevereiro ele é destituído de suas funções o que o torna um cidadão comum, passível de ser preso. Efetivamente, dois dias depois, o Tribunal de Justiça ordena a sua detenção. A partir desse momento ele deve se esconder para evitar a prisão e passa a viver na clandestinidade, ajudado por amigos e por correligionários e, às vezes, por pessoas que nem conhece. A síntese desse peregrinar é dada por Volodia Teitelboim: uma lei da clandestinidade prescreve que não se pode permanecer muito tempo numa casa. Teve que mudar. Foi de casa em casa, todas humildes, nelas todos guardavam o segredo. [..].) Ele entrava de repente sem conhecer ninguém e era recebido como irmão. E de esconderijo em esconderijo, Pablo Neruda vai escrevendo os poemas do Canto General. Mais tarde, ele irá contar: foi escrito na sua maior parte em dias de perseguição e dificuldades. Eu não estava na prisão mas era difícil escrever sem ter comunicação com ninguém. Dezenove dias depois de tê-lo terminado, cruza, a cavalo, a Cordilheira dos Antes, rumo à fronteira da Argentina, levando seu manuscrito sob um rótulo falso. Atrás de si, expondo-se às perseguições policiais, ficaram aqueles que deveriam realizar a tarefa de publicar o Canto General, no Chile. Eram tempos em que a polícia estava à caça da propaganda clandestina. Tinha a lista de todas as imprensas e podia descobrir a origem de uma publicação através da tipografia usada, relata Volodia Teitelboim. Mas não foi essa uma razão suficiente para impedir a edição, apresentada como se tivesse sido feita no México, de cinco mil exemplares.

            Um deles, chegará às mãos de Pablo Neruda, em Paris, onde chegara fugitivo, também a viver escondido. Ao lhe ser concedida a permissão para uma permanência legal no país, ele pôde se apresentar no Congresso Mundial de Partidários da Paz que se realizava com a presença dos mais prestigiados intelectuais da época. No dia 25 de abril de 1949, quando do seu encerramento, lê, dessa edição chilena clandestina, “Um canto para Bolívar”.

            Para o poeta e para os poemas do Canto General acabavam-se os dias de clandestinidade.

domingo, 23 de junho de 2002

Os clandestinos.1 Los versos del capitán


Pablo Neruda como todo poeta lírico gosta de retratar-se em sua poesia, retocando apenas alguns perfis e embaralhando, ironicamente, muitos dados objetivos. Mas, a dupla ação de indiscretos admiradores e curiosíssimos  inimigos o forçaram a confessar-se ou  a mascarar-se mais de uma vez, provocando, assim, novos problemas a todas as análises críticas de sua poesia e sua vida. Emir Rodriguez Monegal. 

Disse uma vez Mejia Baca, um editor peruano que amava o seu ofício, ser lamentável que num tempo em que os homens chegaram à Lua, o itinerário de um livro, saído de uma cidade do Pacífico, levasse meses para chegar à outra, situado no Atlântico. Um caminho tão intricado como o do livro de qualquer país do Continente para chegar a outro, pois, em relação ao comércio livreiro, as fronteiras se revelam muito difíceis: se não existem informações quanto ao que foi editado, tampouco, na velha tradição do subdesenvolvimento de deixar a correspondência sem resposta, raramente os pedidos são atendidos. Situação que certamente se agrava, quando se trata do Brasil. Ao se submeter às apreciações críticas do Hemisfério Norte que lhe orientam as traduções, são bem poucos os autores latino-americanos publicados e a Literatura dos países da América Latina continua sendo desconhecida do leitor brasileiro. Mesmo de um Prêmio Nobel, como Pablo Neruda, poucos foram os títulos e poucas as obras sobre ele ou sobre a sua poesia que atraíram a atenção das editoras.

            Volodia Teitelboim que, em 1984, publica, segundo a sua editora, a Sudamericana Chilena, a mais completa, amena e compenetrada biografia de Pablo Neruda, relaciona uma infinidade de estudiosos da obra do poeta, cujos trabalhos não chegaram ao Brasil. Assim, estudar Pablo Neruda sem condições de conhecer o que sobre ele e sobre a sua obra já foi dito, pode levar à interpretações equivocadas ou a desnecessárias repetições. Um risco inevitável que, se enfrentado, se justificará como tentativa de povoar o vazio que envolve a sua figura e a sua obra no Brasil. Figura e obra que, muito mais que em outros poetas, não permite sejam dissociadas, porque seus poemas têm ou uma razão ou um momento ou uma história,  geralmente, muito precisos que, embora, não possibilitem tudo esclarecer, conduzem a uma aproximação maior dos seus sentidos poéticos. Longo, provocador e instigante o caminho percorrido por Los versos del capitán, no dizer de seu autor, entre os seus livros, um dos mais controvertidos. Foi publicado, pela primeira vez, no ano de 1952, em Nápoles, numa edição clandestina, em belo papel e impresso em tipos Bodoni e com ilustrações do pintor Paolo Ricci, em cinqüenta exemplares que se constituem, hoje, uma raridade bibliográfica. No ano seguinte, sai pela Losada de Buenos Aires que, ainda o publicou, anônimo, outras vezes. E, somente, em 1963 é que o livro foi reconhecido, como seu, por Pablo Neruda que, todavia, no Prólogo, então acrescentado, não revelou a causa que o levara a publicá-lo anteriormente sem o seu nome. Causa esta que apenas será conhecida quando suas memórias, Confieso que he vivido, vem à luz, em 1974: A verdade é que não quis, durante muito tempo que esses poemas ferissem a Delia, de quem me separava. Delia del Carril, passageira suavíssima, fio de aço e mel que prendeu minhas mãos nos anos sonoros, foi para mim durante dezoito anos uma exemplar companheira. Este livro, de paixão brusca e ardente, ia ser como uma pedra lançada sobre a sua terna estrutura. Foram essas e não outras as razões profundas, pessoais, respeitáveis do meu anonimato. Bem mais tarde, alguns detalhes serão contados pelos amigos, cuja convivência com o poeta permitiu fossem conhecidos. Mencionado, brevemente, por Volodia Teitelboim, o seu temor e dos que rodeavam Pablo Neruda, diante dos pretensiosos descobridores eruditos desentranhadores de estilo assaz indiscretos que proclamavam a viva voz diante da mulher por quem o livro tinha sido publicado sem o nome do pai que ele era o autor desse livro que anunciava o amor por outra mulher. E lembra um entardecer em Goiânia, perto do lugar onde será erguida Brasília, em que o poeta discute com o seu interlocutor que se vangloria de saber que era ele,Neruda, e não outro, o autor do livro anônimo, enquanto Delia del Carril, embora dissimulando um ar ausente, era a imagem da mulher sozinha e prostrada. Pablo Neruda não queria abandoná-la ao se ligar a Matilde Urrutia e durante sete anos viveu, então, uma vida dupla, compartilhando o teto conjugal com Delia e o leito com Matilde. Somente a vingança de uma empregada, que atendia as duas senhoras em Isla Negra, onde o poeta levava ora uma ora outra,  provocou o desenlace: a separação de Delia del Carril, em 1955. Pablo Neruda passou a viver, às claras, com Matilde Urrutia, a musa dessa escrita sem censura em que, diz Volodia Teitelboim, o poeta escondia o rosto para, ingenuamente, deixar a descoberto a alma.

            Uma alma tão cheia de veemência que, em cada um dos poemas de Los versos del capitán se expandia, fazendo emergir a identidade que o poeta queria esconder, tanto quanto desejava dizer ao mundo do amor que sentia por Matilde Urrutia.

domingo, 16 de junho de 2002

Os esquecidos


Numa carta a sua mãe, escrita na prisão de Turim, no dia 24 de agosto de 1931, Antonio Gramsci dizia: Fui um combatente que não teve sorte na luta imediata e os combatentes não podem nem devem ser lastimados quando lutaram não por obrigação mas porque quiseram, conscientemente. Estas palavras aparecem em epígrafe no romance Barão de Mesquita, 425: a fábrica do medo de Alcir Henrique da Costa, publicado em 1981, pela Editora Brasil Debates e, certamente, lhe completam o sentido. Um sentido que nasce da necessidade de expressar, como bem o definiu Ferreira Gullar na apresentação que faz ao livro, a experiência dolorosa de toda uma geração de jovens militantes que no testemunho ou na ficção irá registrar as suas ações e os seus valores, as situações limites com as quais se defrontaram. No relato de Alcir Henrique da Costa, a ação – assaltar uma delegacia com o objetivo principal de se apossar de documentos de identidade – de um grupo de militantes fracassa e eles vão sendo capturados pela polícia e submetidos aos conhecidos tratamentos da máquina repressora. No cenário da prisão e no confronto entre o indivíduo indefeso e o que, protegido pela lei, se atribui o direito de torturá-lo é que se passa a maior parte da ação, interrompida, por vezes, pelos breves relatos em que as discussões teóricas explicam as razões da luta e o momento das prisões anunciam o que virá depois. Baseada em fatos reais, a narrativa se faz a partir da coragem de alguns e da fraqueza de outros diante dos golpes físicos e morais a que são submetidos. Primeiro, o ritual conhecido de todos os presos: o grito ao cabo de guarda, a chave no cadeado, a tramela, a porta rangendo, depois o ruídos do ar condicionado na sala roxa, os gritos roucos e sem saliva do torturado. Depois, o ritual, aplicado a cada um em variações de verdadeiro horror que o relato não elude. Cuidadosa ficção no alternar do tempo, no ritmo narrativo preso ao essencial, na verossimilhança dos perfis que se mostra escorreita, sem enfeites. E que traz ao mundo dos homens a imagem de uns (que necessitam da maldade racional e dela fazem uso) e de outros (que buscam maneiras de erradicá-la).

            No seu enfileirar de barbárie e selvageria que a desfaçatez e a prepotência quiseram negar terem existido nos porões de um regime que, além de intolerante para com seus opositores, muito pouco realizou por todos os demais cidadãos, Barão de Mesquita, 425: a fábrica do medo se inicia e termina com dois momentos luminosos de confiança e de solidariedade: o primeiro capítulo do romance em que o padre questiona o seu acompanhante sobre a decisão de voltar para o Nordeste e continuar na militância, oferecendo-lhe ajuda. E o último, quando se reencontram poucas horas depois, se despedem, e o padre o ajuda com um pouco de dinheiro e o vê partir, convicto. Só então, se revela o seu nome, Miquimba, e ele surge como semente auspiciosa que levará avante a luta.

            No ano em que foi publicado o romance de Alcir Henrique da Costa, mal se desvaneciam as sombras ditatoriais no Continente e talvez muitos acreditassem em novos tempos. E até mesmo, quem sabe, fosse possível conseguir não lastimar os caídos e pensar que o combate contra os persistentes caminhos da opressão, e em quantas frentes ela se exerce ,fosse, ainda, viável. Daí a presença de uma esperança – é preciso dizer, convencer, mudar – na figura de Miquimba para quem as palavras que ouviu tiveram sentido. Na sua passagem de praça do exército a militante está presente uma esperança. Na verdade, muito tênue e que não é suficiente para impedir que acabe por reinar, soberana, a grande melancolia diante da certeza de que, nada vingou desses desejos utópicos de justiça social numa sociedade renhidamente dividida em classes e que o sofrimento dos maltratados e o sacrifício dos que morreram, foi, definitivamente, em vão.

domingo, 9 de junho de 2002

Manuela Sáenz 3


  ...a que lhe afia as espadas e com um olhar o deixa nu e o perdoa .Eduardo Galeano


            Victor W. Von Hagen publica, em 1953, no México, Las cuatro estaciones de Manuela, uma biografia, fruto de longas buscas em arquivos de vários países e que segundo o autor, apenas menciona o que foi, minuciosamente investigado. Assim, a certidão de batismo, com data de 29 de dezembro de 1797 onde consta que Manuela nascida dois dias antes, é uma criatura espúria, cujos pais não são nomeados. Na verdade, era filha de um nobre espanhol e de uma equatoriana, herdando de um o desejo de autoridade e de glória e do outro, o carinho pela terra onde nasceu. Revelou-se, desde muito cedo, uma transgressora. Aos quinze anos, vestia roupa de homem, fumava e domava cavalos. Aos dezesseis, a encerraram num convento de onde fugiu no ano seguinte. Aos vinte anos, a casaram com um respeitável e rico médico inglês o que a tornou respeitável e admirada e, sobretudo, envolvida por uma aura de inveja. Quando Simon Bolívar, em 1822, entra em Quito, cavalgando à frente de seu exército, é recebido com flores, jogadas, entre música e fogos de artifício, das sacadas, pelas mulheres, entre as quais, pela beleza, sobressaía Manuela Sáenz. Simon Bolívar, diz Eduardo Galeano, levanta a cabeça e lhe crava os olhos, lenta lança. À noite, num baile que celebrava a vitória na batalha de Pichincha contra os espanhóis, acontece, entre eles, o encontro. Dançam sem temer o escândalo e se unem para uma longa história de paixão. Ela o acompanha, luta por ele e o defende. Seja sufocando um motim na praça de Quito, seja organizando oficinas para a confecção de uniformes do novo exército, seja convertendo suas escravas em espiãs, membros dos quadros de informantes secretos de Bolívar. Notícias, dados e dizeres, queixas, murmurações coletivas  lhe eram relatados para que, informada tanto dos mexericos como de planos e projetos de conspirações políticas, pudesse transmitir a Simon Bolívar o que, eventualmente, lhe pudesse ser útil.

            Foi-lhe conferida a Orden del Sol, atribuíram-lhe funções no Estado Maior de Bolívar, outorgou-se a si mesma o grau de Coronela e passou à História como”Libertadora do Libertador”. Mas os fados se lhe mostraram funestos. Após a morte de Simon Bolívar, lhe foi negada a permissão para entrar no seu país; a pensão vitalícia que lhe foi concedida pelo Congresso do Peru como possuidora de Orden del Sol, nunca lhe chegou às mãos, negada pelas autoridades de Lima. Em Paita, um povoado triste do norte do Peru, viveu pobre, um pouco do comércio de velas, outro pouco do comércio de réstias de alho no mercado ou vendendo, para os marinheiros, pequenas figuras de animais feitas de doce. Ao morrer, atacada pela enfermidade que dizimou boa parte da população da pequena cidade, foi enterrada – diz Marta de Paris, no capítulo que lhe dedica no seu livro Amantes, Cautivas e Guerreras – como todas as vítimas numa fossa comum ao pé dos faróis cinzentos do porto de Paita.

domingo, 2 de junho de 2002

Manuela Sáenz .2

Era astuta, indômita, de uma graça irresistível e tinha um sentido do poder e uma tenacidade a toda prova. Da prosa de Gabriel García Márquez. 

            Na “Sucinta cronologia de Simón Bolívar” com a qual se encerra o livro de Gabriel García Márquez, El general en su labirinto (Bogotá, Editora La oveja negra, 1989) em que, por data, são enumerados os principais momentos, os principais feitos do Libertador, a de 16 de junho de 1822 assinala o seu primeiro encontro com Manuelita Sáenz. Ela fumava cachimbo de marinheiro, se perfumava com água de verbena que era loção de militares, se vestia de homem e andava entre os soldados, mas a sua voz afônica continuava boa para as penumbras do amor. Foi, entre muitas – Simon Bolívar reconhece umas trinta e cinco, fora as eventuais passageiras de uma noite – a mais célebre de suas amantes e a que mais próxima lhe ficou. No dia 25 de setembro de 1828, em Bogotá, salvou a sua vida de um atentado o que lhe valeu, dado por ele, o cognome de “Libertadora do Libertador”. Senhora foi da proeza de manter seus amores por oito anos. No livro que, embora rotulado de romance por Gabriel García Márquez,  segue os passos de Simon Bolívar na sua rude e acidentada trajetória por regiões do noroeste do Continente, buscando-lhe a  libertação da Espanha com uma impecável preocupação da verdade e da verossimilhança, a presença de Manuela Sáenz, ainda que em breves seqüências, disseminadas nas suas duzentas e sessenta e sete páginas, é constante. Determinada e sem pensar na sua honra de mulher casada, se impôs ao general. Mas esse seu desejo de submetê-lo provocou nele a ânsia de se liberar: Foi um amor de fugas perpétuas. Logo depois de conhecê-la em Quito, ele viaja para Guayaquil. De volta a Quito e para seus braços, parte para terminar a liberação do Peru onde quatro meses depois ela vai encontrá-lo. Em Lima, entra e sai da casa presidencial a seu bel prazer e com honras militares. Para tê-la perto o general a nomeara curadora de seus arquivos, porém nem sempre permitia que seguisse junto com o Estado Maior. Assim, ao empreender a conquista dos territórios peruanos que ainda estavam em poder dos espanhóis, não a levou e ela foi-lhe ao encalço no lombo de mula e com as escravas e um punhado de soldados, percorreu trezentas léguas pelos Andes, carregada com seus baús e com os cofres dos arquivos. Levou tempo para descobrir que, estando longe, ele se consolava com os amores de ocasião que ia encontrando o que não lhe sufocou o desejo de continuar a segui-lo. Mesmo que antes de partir para o Alto Peru ele tenha proposto uma separação definitiva para logo, não querer que ela parta com o marido para a Inglaterra. E, uma vez mais, Manuela lhe segue os passos quando ele vai às pressas para Santa Fé de Bogotá onde lhe exigiam a presença: foi uma mudança de ciganos com os baús errantes numa dúzia de mulas, suas escravas imortais e onze gatos, seis cães, três micos educados na arte das obscenidades palacianas, um urso amestrado para enfiar agulhas e as gaiolas de papagaios e de araras [...]. Cinco anos se tinham passado desde o primeiro encontro e Manuela Sáenz percebeu que ele estava tão decrépito e em dúvida como se tivessem se passado cinqüenta e que se movia sem rumo nas trevas da solidão. Não teve mais ânimo para segui-lo, mas encetou uma guerra, a sua própria guerra, para que ele pudesse regressar a Bogotá. Entrava nos quartéis com o uniforme de coronel, participava das festas dos soldados com suas escravas distribuía folhetos que elogiavam o general e apagava os dizeres escritos com carvão nas paredes que o desprestigiavam. Mas o general, na sua viagem para o norte, cada vez mais se afastava de Bogotá e, cada vez mais, perdia suas forças exauridas pela tuberculose. Repousava em Santa Marta, definhando dia a dia, quando, na segunda semana de dezembro de 1830, o coronel Luis Peru de Lacroix passou para visitá-lo e o encontra, completamente prostrado. Escreve a Manuela Sáenz sobre o estado em que o encontra nesse caminho para a morte. Ela empreende sem demora a viagem para vê-lo. Porém mal saía de Bogotá quando recebeu a notícia que, diz Gabriel García Márquez, a apagou do mundo. Abandonou-se às suas próprias sombras e somente teve cuidado em esconder o cofre com os papéis do general. Os novos donos do poder confiscaram seus bens e a desterraram. Submissa a sua sorte, errou, com a sua tristeza, até se fixar em Paita onde morreu, vítima de uma epidemia, aos cinqüenta e nove anos. Seu cadáver, assim como seus pertences, entre eles as cartas de Simon Bolívar, foram queimados.