Manuela, brasa e água...
Dos versos de
Pablo Neruda
No seu livro Neruda,
publicado na Espanha em 1984 e reeditado na Argentina, Cuba e Chile, Volodia
Teitelboim, além das detalhadas referências às circunstâncias biográficas do
poeta com que, na condição de íntimo amigo, conviveu durante quarenta anos,
comenta, muitas vezes, os seus poemas. Ou revelando-lhe os motivos, o momento
de sua gênese ou em análises que demonstram o estudioso da obra nerudiana nos
abundantes artigos e ensaios que lhe dedicou.
No
capítulo 132, “Uma heroína esquecida”, se refere à viagem de Pablo Neruda a
bordo do Itália, em janeiro de 1958, mencionando breves linhas de uma carta
que o poeta, nessa ocasião, lhe escreveu e em que diz estar a escrever
conferências e um longo poema sobre Manuelita Sáez, a amada de Simão Bolívar.
No porto de Paita, pequeno povoado da costa peruana, breve escala do navio, ele
desembarca e procura pelo seu túmulo. Ninguém sabe dela, ou do lugar em que
repousa. Essa busca vã e o querer redimi-la do olvido são expresso em “A
insepulta de Paita”, parte de seu livro Cantos cerimoniales, publicado
em 1961, pela Losada de Buenos Aires.
O
poema é feito de um Prólogo e de vinte e duas estrofes de estruturas diversas
quanto ao número de versos (a décima, por exemplo tem apenas três; a vigésima
segunda, cinqüenta e quatro) e quanto à forma (ora narrativo, ora descritivo,
ora confessional). O seu começo é como se fora uma narrativa da viagem que se
inicia em Valparaíso e se faz num Pacífico, duro
caminho de punhais. Na segunda estrofe, presente esse espaço, Paita, que
abriga a mulher morta e o desejo do poeta de tocar a terra que a esconde. Pelas
suas palavras, desenha-se o povoado nas balaustradas velhas, nas sacadas
azuis; eleva-se o seu cheiro de perfume
audaz; ostentam-se as frutas, vislumbram-se as índias sentadas sob o zumbir
das moscas e o dia nublado. Nem o menino, nem o homem, nem o ancião interrogados,
respondem onde havia falecido Manuelita, onde tinha sido a sua casa, onde finalmente,
repousava.E, nem os montes, o manancial, o rio e o mar, também interrogados, nada lhe respondem. Mas, o poeta, se
não encontra o lugar em que Manuelita Sáez se abriga (tu que não tens um túmulo),
a faz renascer num desenho que lhe traça o corpo de delgados pés espanhóis, de pequena
mão morena, de cadeiras claras de
cântaro de cabelos negros e seios de magnólia. E lhe retrata a alma: libertadora enamorada, suprema flor empunhada pela ternura e a
dureza, guerrilheira, libertadora, contrabandista pura, idolatrada
desrespeitosa. E lhe define o destino de sepultada em plena vida, insepulta
bravia, corola destroçada pela areia
e pelo vento, forma calada pelo pó de Paita. Paita que ele torna a
descrever, incrustada na costa, com seus cais podres, suas escadas quebradas,
seus fardos de algodão, suas casas abandonadas, seus paredões rotos onde alguma bouganville/ lança na luz o jato/ de
seu sangue vermelho. Paita, povoada de silêncio, De todo o silêncio do mundo
e escolhida por Manuela Sáez como lugar de seu exílio. E o poeta não compreende
e quer saber e pergunta e torna a perguntar o porquê da escolha dessa terra
miserável, dessa luz desamparada, dessa sombra sem estrelas, desse lugar onde
morrer. Tampouco obtém respostas, tampouco encontra a lápide de Manuelita Sáez:
Manuelita insepulta, /desfeita nas
atrozes, duras /soledades.
E
seu barco se afasta de Paita que ficou
perdida nas suas areias, para o esquecimento.
Nas vinte
e duas estrofes que lhes dedica, os versos que falam do mar navegado, de
paisagens desoladoras, das frutas do mercado de Paita, de exílios e de escolhas
de amores perdidos, de imagens fugazes. Falam do anseio do poeta em decifrar
esse enigma em que se transformou Manuela Sáez nos dias de exílio e que a
escondem do mundo. Por isso, desembarca em Paita e lhe persegue a figura
ausente. A perplexidade diante do vazio, a evocação apaixonada da figura
feminina e o anseio de que seus ossos tenham nome se entrelaçam no sentir do
poeta e fazem de sua romaria, nesse povoado perdido uma cerimônia que o seu
canto imortalizou.


