domingo, 10 de fevereiro de 2002

Sutilezas do traduzir

            É um romance engenhoso onde recursos narrativos se sucedem, entrelaçando surpresas num relato de per si surpreendente: a vida de Eva Duarte Perón, a sua morte e o misterioso desaparecimento de seu cadáver embalsamado. Uma verdadeira história do Continente, naquilo que possui de elementos dignos da mais acabada Literatura fantástica. Santa Evita, publicado em 1995, pelo Grupo Editorial Planeta de Buenos Aires que, passados quatro anos, já estava na décima nona edição. Em 1997, foi traduzido para a Cia. Das Letras.

            É sempre auspicioso, embora assaz raro, que a produção latino-americana vença as fronteiras do Brasil, pois, quase sempre, para isso, é necessário que algo deveras insólito aconteça. Na verdade, é por demais sabido que uma obra do Continente, sem a chancela dos irradiadores de conhecimento a orientar as publicações nos países tidos como desprovidos de uma cultura que possa ser levado a sério, dificilmente encontra um editor. Talvez, no caso desse romance de Tomás Eloy Martinez tenha sido levado em consideração, o sucesso das repetidas edições argentinas. Um êxito que não deve, necessariamente, se reproduzir em outro universo, pois, para a grande maioria dos brasileiros, nesse caso, de eventuais leitores, Eva Duarte Perón é, hoje, e talvez tenha sempre sido, uma desconhecida. Para poucos, uma imagem esplendorosa, é certo, mas diluída no tempo.

            Na tarefa que se propôs Tomás Eloy Martinez, a de contar sua história, o tempo transcorrido entre o seu desaparecimento e o ato de escrever para salvá-la – “Contra a morte, o relato” – encheu-se de percalços. No terceiro capítulo, “Contar uma história”, esse buscar informações, esse refletir sobre o que deseja realizar – a tentativa de narrar Evita – num entrelaçamento de estratégias romanescas, por vezes sutis, a exigir, então, um real esmero do tradutor.

Embora a escrita de Santa Evita, salvo em uma ou outra expressão, não se afaste da linguagem padrão, neste terceiro capítulo, os desvios entre o original e a sua tradução são numerosos entre aqueles que o espírito da língua justifica ou os que se constituem eleições pessoais do tradutor ou, ainda, os que são perfeitamente dispensáveis ou aqueles que alteram significados. Na maioria, são pequenos deslizes e, na verdade, não demasiado prejudiciais. E somente a comparação cuidadosa do original com a sua tradução permite perceber as diferenças.

Entre os vários desvios relacionados aos vocábulos como os acréscimos, as substituições, as eliminações ocorridas ou não modificam, seriamente, o texto, ou lhe enfraquecem o sentido ou se apresentam como inexplicáveis ou curiosas.

 Assim, na seqüência Ele tinha trabalhado algumas semanas numa borracharia chamada Norma, na estrada entre Ramallo e Conesa é eliminada a expressão situada: Había trabajado unas pocas semanas em la gomeria Norma, situada en el camino de Ramallo a Conesa. Noutra, desaparece o advérbio: Entraban en escena durante pocas páginas y luego se retiraban del libro para siempre: Entravam em cena durante umas poucas páginas e retiravam-se do livro para sempre.

 Outras eliminações existem, no entanto, que embora não mudando o sentido, algo reduzem de seu significado, como no episódio em que Raimundo Masa deve carregar no ombro os seus filhos desmaiados. No texto português é abolido o advérbio de lugar. Igualmente, quando no original consta “Los mitólogos pescaron la idea al vuelo [...], a tradução Os mitólogos pescaram a idéia [...] ignora a expressão al vuelo que, em português poderia se transformar em “no ar”. Também reduz a ênfase da frase ao desconsiderar os pleonasmos que tornam um espaço de tempo maior (Tardé meses y meses para amansar el caos: Levei meses para amansar o caos) e outro que denota quantidade (descubría más y más indicios: descobria mais indícios).

            Há casos, porém, em que a eliminação, afastando o texto original daquele que foi traduzido, o afasta, também, da íntegra de seu significado. Raimundo Masa, na sua árdua e sofrida peregrinação, cujo sacrifício tinha por fim a restituição da saúde de Evita Perón, ao passar nos povoados, recebia uma cordial acolhida por parte do pároco, do farmacêutico e das damas da cidade que lhe ofereciam e a sua família tazas de chocolate y duchas calientes. São ofertas que na tradução passam a ser doces e xícaras de chocolate quente. Isto é, houve um acréscimo relacionado à comida e a eliminação de uma possibilidade de conforto: o chuveiro quente.

É, contudo, na segunda linha do capítulo que surge a eliminação mais expressiva: Si el malefício invocado por la viúda del Coronel era verdadero [...], aparece no texto em português como Se a maldição invocada pela viúva era verdadeira [...] . A eliminação da palavra Coronel  pode ser tida como um lapso inocente ou um descuido, no entanto, nada impede que seja entendida como uma opção do tradutor. Que não parece fácil explicar, mas que, sem dúvida, permite, no mínimo, ser considerada como algo de verdadeiramente curioso.

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