domingo, 24 de fevereiro de 2002

Vozes perdidas 2


            Malcolm Cowley, ao falar para os escritores da Dinamarca, Rússia, Noruega, Holanda, Alemanha, Inglaterra, França, Portugal, Espanha, México, Costa Rica, Argentina e Cuba, que se reuniram em Madrid, para participar do II Congresso Internacional de Escritores Antifascistas em 1937, (cujos depoimentos foram reunidos por Manuel Aznar Soler e Luis Mario Schneider e publicados pela Editorial Laia, de Barcelona, em 1979, sob o título Ponencias, Documentos Y Testimonios), começa por dizer de suas expectativas com relação a esse encontro. Tinha trinta e nove anos e já havia publicado um livro de poemas, The Blue Juniata (1927) e Exile’s Return (1934), onde testemunha sobre escritores norte-americanos da década de 20. Mas, as questões que, então, o interessavam e sobre as quais pensava falar antes de partir de Nova Iorque, acreditando poder ofertar a sua contribuição, como poeta e como crítico – até que ponto o nacionalismo literário é elogiável ou perigoso, como se tem desenvolvido a literatura proletária, a função da crítica e as relações entre Literatura e sociedade – passaram a ser secundárias quando, nos dias que passa na Espanha, se dá conta que o único a ter sentido, diante do que presenciava, era a preocupação com a guerra antifascista.

Nesse mês de julho de 1937, era, ainda, o momento em que os republicanos espanhóis não tinham sido vencidos e reinava a esperança. E Malcolm Cowley acredita que a ajuda que pode oferecer é falar sobre a opinião pública dos Estados Unidos a respeito dessa guerra.Informados, apenas, por uma imprensa de direita e, assim, levados a simpatizar com um governo que se apresentava como democrático e vítima dos ataques dos latifundiários e dos militares, os norte-americanos não podiam ter uma idéia clara do que, realmente, estava a acontecer. A campanha jornalística contra os republicanos espanhóis, iniciada pelos vinte jornais de Randolph Hearst, era seguida pelos demais. Não apenas não possuíam informações imparciais do que se passava, como escreviam apenas o que era de seu interesse: assassinatos de religiosos, raptos de freiras, e o perfil de Franco a mostrá-lo como um verdadeiro cavalheiro cristão que buscava salvar a Espanha da anarquia.

Quando, porém, jornalistas foram enviados como correspondentes aos locais do conflito e tiveram seus textos publicados pelo Herald Tribune, pelo New York Times, pelo Chigago News, e pelo Nation, uma outra faceta do que ocorria na Espanha foi sendo mostrada. Assim, o massacre ocorrido em Badajoz, quando da tomada da cidade por Franco, noticiada in loco por Jay Allen, do Chigago Tribune, o violento ataque a Bilbao e os bombardeios a Guernica e Almeria, levaram à mudança de opinião que o grande esforço de alguns católicos, sobretudo daqueles liderados pelo Bispo de Nova Iorque não conseguiu impedir. E, como desde o início da guerra não era segredo para alguns intelectuais norte-americanos que não se tratava apenas de uma luta contra a tirania política, mas, também, contra a superstição e o analfabetismo, eles não se calaram, traduzindo poemas, escrevendo artigos, formando comitês de auxílio embora soubessem, contristados, não estar a fazer o suficiente para ajudar nessa luta que se decidia em terras distantes.

Na verdade, Malcolm Cowley ao se saber, como certos intelectuais norte-americanos que acompanhavam a guerra, impotente, diante dos fatos, será levado, somente, a vislumbrar o que é possível aos homens de letras: o uso da palavra. Então, pede aos espanhóis escritores e aos seus companheiros, que falem dessas lutas, contem de seus atos na frente de batalha, digam qual auxílio devem os norte-americanos enviar.

Os republicanos foram derrotados. E as palavras a eles dedicadas se perderam no tempo e na melancolia de uma lei imutável: contra a força não há argumento.

domingo, 17 de fevereiro de 2002

Vozes perdidas 1


            No mês de julho de 1937 se realizou, em Madrid, o II Congresso Internacional de Escritores Antifascistas que fez da Espanha republicana a capital intelectual do mundo. Um Congresso sem atas e as intervenções, então ocorridas, ficaram dispersas em um sem número de publicações. Em 1979, dois professores, o espanhol Manuel Aznar Soler e o argentino Luiz Mario Schneider reuniram o material que lhes foi possível localizar e o publicaram pela Editorial Laia de Barcelona. São pronunciamentos e testemunhos assinados por escritores, oriundos de muitos países, entre os quais André Malraux, Tristan Tzara, Ilya Ehrenburg, Louis Aragon, Bertolt Brecht, Heinrich Mann, Anna Seghers e os latino-americanos Pablo Neruda, Nicolas Guillén, César Vallejo. Suas palavras são pronunciadas sob o impacto da emoção que dominou cada um dos que ocorreram a Madrid para se opor à ameaça do fascismo e que presenciou, de muito perto, o espetáculo de uma guerra fratricida. E se houve aqueles que nos seus discursos se prenderam a princípios e os que pregaram a ação houve, também, os que expressaram os seus próprios dramas e os daqueles que representavam, em testemunhos que fazem ver que o mundo, desde então, pouco mudou.


            É o caso de Langston Hughes. Nascido em 1902, aos vinte e quatro anos publica seu primeiro livro de poemas, The weary blues. Mas foi a medalha de ouro do Prêmio Harmon, recebida pelo seu romance  Not without laughter,  que o fez decidir ser escritor. Embora lhe tenha sido negada por Washington a permissão de ir à Espanha, como representante da imprensa negra, ele, como negro e pobre, se atribuiu o direito de representar os negros e os pobres e, não somente de seu país, como dos demais, igualmente, oprimidos. Assim, ao se apresentar, diz ter vindo de um país chamado América, país democrático e rico para se expressar, especialmente, em nome dos negros e dos pobres como ele. Oprimidos pela cor da pele e pela pobreza a que estão condenados, há muito, ele diz, já conhecem o significado da palavra fascismo na prática de uma descriminação que se mostra, no seu país, em todas as nuanças e cuja síntese está na proibição de entrarem, os negros, em escolas, teatros, concertos, hotéis e restaurantes.

            Ainda era a década de trinta e Langston Hughes, em meio dessa assistência de escritores, levanta a voz para dizer que os negros da América estão cansados de um mundo no qual um grupo de pessoas pode dizer a outro: Vocês não têm direito à felicidade, nem à liberdade, nem à alegria de viver. Nesse mundo em que os negros são explorados e silenciados é crime se opor à opressão e Nicolás Guillén, Jacques Roumain, Angelo Herndon são disso a prova. E a tragédia da Espanha – mulheres e crianças assassinadas, bombardeios sobre a população civil – mostra o quanto são capazes os opressores para instituir e conservar o poder.

            Mas, tampouco é estranho a Langston Hughes que o racismo é explorado pelos fascistas para aterrorizar as massas trabalhadoras e impedir a sua união e, desprezando fronteiras, tanto serve a uns como a outros: nos Estados Unidos, é dito aos brancos que os negros são bestas ruins e perigosas; na Alemanha, os judeus são caluniados e na Itália, desprezados os etíopes. Daí a sua tese de que ao não existir o racismo, deixará de existir o capitalismo e, igualmente, desaparecerão as guerras e os fabricantes de armas.

            Uma tese que, ao se inscrever na sua sofrida experiência como cidadão, sem direitos, dos Estados Unidos – sem dúvida fruto de um inegável despotismo – e que, ao não considerar outras variáveis, se mostra como sonho de esperançosa ingenuidade. Certamente, também por isso, irrealizável.


             

domingo, 10 de fevereiro de 2002

Sutilezas do traduzir

            É um romance engenhoso onde recursos narrativos se sucedem, entrelaçando surpresas num relato de per si surpreendente: a vida de Eva Duarte Perón, a sua morte e o misterioso desaparecimento de seu cadáver embalsamado. Uma verdadeira história do Continente, naquilo que possui de elementos dignos da mais acabada Literatura fantástica. Santa Evita, publicado em 1995, pelo Grupo Editorial Planeta de Buenos Aires que, passados quatro anos, já estava na décima nona edição. Em 1997, foi traduzido para a Cia. Das Letras.

            É sempre auspicioso, embora assaz raro, que a produção latino-americana vença as fronteiras do Brasil, pois, quase sempre, para isso, é necessário que algo deveras insólito aconteça. Na verdade, é por demais sabido que uma obra do Continente, sem a chancela dos irradiadores de conhecimento a orientar as publicações nos países tidos como desprovidos de uma cultura que possa ser levado a sério, dificilmente encontra um editor. Talvez, no caso desse romance de Tomás Eloy Martinez tenha sido levado em consideração, o sucesso das repetidas edições argentinas. Um êxito que não deve, necessariamente, se reproduzir em outro universo, pois, para a grande maioria dos brasileiros, nesse caso, de eventuais leitores, Eva Duarte Perón é, hoje, e talvez tenha sempre sido, uma desconhecida. Para poucos, uma imagem esplendorosa, é certo, mas diluída no tempo.

            Na tarefa que se propôs Tomás Eloy Martinez, a de contar sua história, o tempo transcorrido entre o seu desaparecimento e o ato de escrever para salvá-la – “Contra a morte, o relato” – encheu-se de percalços. No terceiro capítulo, “Contar uma história”, esse buscar informações, esse refletir sobre o que deseja realizar – a tentativa de narrar Evita – num entrelaçamento de estratégias romanescas, por vezes sutis, a exigir, então, um real esmero do tradutor.

Embora a escrita de Santa Evita, salvo em uma ou outra expressão, não se afaste da linguagem padrão, neste terceiro capítulo, os desvios entre o original e a sua tradução são numerosos entre aqueles que o espírito da língua justifica ou os que se constituem eleições pessoais do tradutor ou, ainda, os que são perfeitamente dispensáveis ou aqueles que alteram significados. Na maioria, são pequenos deslizes e, na verdade, não demasiado prejudiciais. E somente a comparação cuidadosa do original com a sua tradução permite perceber as diferenças.

Entre os vários desvios relacionados aos vocábulos como os acréscimos, as substituições, as eliminações ocorridas ou não modificam, seriamente, o texto, ou lhe enfraquecem o sentido ou se apresentam como inexplicáveis ou curiosas.

 Assim, na seqüência Ele tinha trabalhado algumas semanas numa borracharia chamada Norma, na estrada entre Ramallo e Conesa é eliminada a expressão situada: Había trabajado unas pocas semanas em la gomeria Norma, situada en el camino de Ramallo a Conesa. Noutra, desaparece o advérbio: Entraban en escena durante pocas páginas y luego se retiraban del libro para siempre: Entravam em cena durante umas poucas páginas e retiravam-se do livro para sempre.

 Outras eliminações existem, no entanto, que embora não mudando o sentido, algo reduzem de seu significado, como no episódio em que Raimundo Masa deve carregar no ombro os seus filhos desmaiados. No texto português é abolido o advérbio de lugar. Igualmente, quando no original consta “Los mitólogos pescaron la idea al vuelo [...], a tradução Os mitólogos pescaram a idéia [...] ignora a expressão al vuelo que, em português poderia se transformar em “no ar”. Também reduz a ênfase da frase ao desconsiderar os pleonasmos que tornam um espaço de tempo maior (Tardé meses y meses para amansar el caos: Levei meses para amansar o caos) e outro que denota quantidade (descubría más y más indicios: descobria mais indícios).

            Há casos, porém, em que a eliminação, afastando o texto original daquele que foi traduzido, o afasta, também, da íntegra de seu significado. Raimundo Masa, na sua árdua e sofrida peregrinação, cujo sacrifício tinha por fim a restituição da saúde de Evita Perón, ao passar nos povoados, recebia uma cordial acolhida por parte do pároco, do farmacêutico e das damas da cidade que lhe ofereciam e a sua família tazas de chocolate y duchas calientes. São ofertas que na tradução passam a ser doces e xícaras de chocolate quente. Isto é, houve um acréscimo relacionado à comida e a eliminação de uma possibilidade de conforto: o chuveiro quente.

É, contudo, na segunda linha do capítulo que surge a eliminação mais expressiva: Si el malefício invocado por la viúda del Coronel era verdadero [...], aparece no texto em português como Se a maldição invocada pela viúva era verdadeira [...] . A eliminação da palavra Coronel  pode ser tida como um lapso inocente ou um descuido, no entanto, nada impede que seja entendida como uma opção do tradutor. Que não parece fácil explicar, mas que, sem dúvida, permite, no mínimo, ser considerada como algo de verdadeiramente curioso.

domingo, 3 de fevereiro de 2002

Palavras semeadas ao vento

            Se a leitura de Controle Populacional, como a de tantos outros textos que, igualmente, tem apontado e apontam num sentido crítico para tudo aquilo que torna possível a situação de vida calamitosa para grande parte dos brasileiros, levasse a uma ação para sanar tais desacertos, essas leituras deveriam ser obrigatória em todo o território nacional e por aqueles – do mais humilde servidor público ao Presidente da República, para só falar das hostes do Estado – que têm a ver com o destino dos brasileiros. Em edição do Autor, publicado em Santa Cruz do Sul, em 1999, é um livro que, no entanto, se destina a uns poucos. Porque ao não estar ao abrigo de uma casa editora, consequentemente, não usufrui das vantagens de distribuição; porque as informações nele contidas, embora presumivelmente de conhecimento público, talvez, não sejam de interesse, para alguns, estarem a ser semeadas aos quatro ventos; sobretudo porque há a necessidade de uma determinada e atenta visão de mundo para ler esse livro em todas as suas letras.

            Nestor José Kaercher é advogado em Santa Cruz do Sul, autor de vários livros que, na condição de seu próprio Editor, espalha a mãos cheias. Vinte e sete capítulos compõem Controle Populacional, partes de verdadeiro quebra-cabeça porque incompreensível para muitos,  porque inaceitável para outros cujas peças se justapõem para formar o mapa do Brasil: “Pouco alimento. Muita doença”, “Da mortalidade infantil”, “Alguns aspectos sanitários”, “A paternidade esquecida”, “Aborto e gravidez”, “O drama da fome”, entre outros. Fundamentam-se, principalmente, em dados e documentos oficiais e em matérias de revistas e jornais para falar do que, na realidade, não é segredo para ninguém, mas que, no entanto, parece ter sido, ao longo da história brasileira, uma questão de honra escamotear. Sobretudo, a fome padecida por uma grande parcela da população e da qual só é permitido tratar em determinados momentos: quando as boas consciências despertam para pregar, por exemplo, um Natal sem fome, arrecadando, então, toneladas de alimentos destinados a suprir, escandalosamente, uma carência cotidiana ao mesmo tempo que ignora, também escandalosamente, todas as demais: escola, saúde, moradia, vestuário, lazer. E, sobretudo, a dignidade que deve existir em cada ser humano e que é negada ao analfabeto, ao doente, ao que não possui teto, nem roupas, nem esse algo que os favorecidos economicamente acham que é supérfluo para os demais: o divertimento.

            Nestor José Kaercher, ao enumerar as degradantes mazelas que acompanham a trajetória do povo brasileiro, deixa evidente e seria impossível não o fazer, a hipocrisia da assim dita elite dominante que subestima essas carências, recorrendo a simulacros de soluções que se revelam, sem dúvida, esdrúxulas e sem o menor sentido, ou a medidas paliativas que somente levam a desastrosas reincidências. Lembrando Bertrand Russel na sua afirmação, em 1950, de que existiriam duas bombas capazes de liquidar com o mundo, a bomba atômica e a bomba populacional, expõe a tese que defende há mais de trinta anos: a necessidade de controlar o número de habitantes do país para que seja possível oferecer aos seus cidadãos as condições dignas de vida a que tem direito. Considerando que a relação entre população e produção de alimentos e o seu consumo é uma questão importante – e falar em suma importância ou transcendental importância é, sem dúvida, fazer uso de um lugar comum lingüístico – enumera alguns fatos que mostram a ausência de uma ação de fato eficiente na erradicação da fome. Pois, ainda que sem teorizar profundamente, é possível discernir, como o faz Nestor José Kaercher, alguns descaminhos que permitem a sua irremovível presença: são os grãos perdidos na colheita por falta de maquinário condizente ou no armazenamento impróprio a fazer com que safras de feijão, soja, milho apodreçam nos armazéns do governo ou sejam consumidas pelos ratos.É a água contaminada pelos venenos que combatem as pragas da lavoura ou pelo descuido das populações ribeirinhas a destruir parte de alimentos; são os desmatamentos e queimadas irresponsáveis; a mortalidade infantil, o cidadão enfraquecido pela subnutrição; são as seqüelas deixadas pela alimentação insuficiente a impedir o aprendizado e a profissionalização; é a desnutrição que diminui a resistência às enfermidades; a perfuração de poços em busca de água, encontrada, apenas em terras de particulares influentes; são as medidas deficientes no que se refere à produção agrícola; é a política salarial a permitir que uma parte dos trabalhadores brasileiros não receba salários ou esse salário mínimo que mal dá para o sustento de uma pessoa; é a ida das crianças à escola, onde, apenas supostamente, aprendem alguma coisa, em busca de uma refeição que não existe em casa.

            São erros, são vícios, por vezes, verdadeiros crimes que marcam e marcaram sempre as relações sociais dos brasileiros. No seu dizer coloquial, de fala mansa, em que vez por outra, irrompe uma justa indignação, Nestor José Kaercher deixa sempre evidente a esperança de que seja exorcizado o mal que os originam. Mas, sem casa, sem comida, sem instrução não existirá, jamais, nesses que estão à margem de tudo, o que quer que seja de discernimento para deixá-los perceber as distorções que os aprisionam. Para gáudio dos que, verdadeiramente, são donos do país.