domingo, 30 de dezembro de 2001

Curioso silêncio


Ao apresentar O florete e a máscara, Zahidé Lupinacci Muzart observa que, salvo exceções, as dissertações de mestrado têm ficado inéditas e que, felizmente, não é esse o caso do brilhante trabalho de pesquisa de Valéria Andrade Souto-Maior. No entanto, o que talvez seja efetivamente para lamentar é que uma boa parte das pesquisas, realizadas com o objetivo de atender as exigências da carreira universitária, resultam em textos de discutível qualidade e, sobretudo, distantes de temas que seriam de real proveito para o país. Daí ser, O Florete e a máscara (Florianópolis, Editora Mulheres, 2001), sem dúvida, um trabalho digno de nota. Pela seriedade demonstrada na busca de um material – como soe acontecer sempre no Brasil – de difícil acesso, pela sagacidade na análise do corpus escolhido, O voto feminino, peça teatral escrita por Josefina Álvares de Azevedo, em 1891, e por oferecer, a partir dos resultados alcançados, inúmeras vertentes de estudo sobre a dramaturgia brasileira escrita por mulheres.

            O florete e a máscara, além do Prólogo, “Para Repensar a Dramaturgia Feminina Brasileira do Século XIX” em que Valéria Andrade Souto-Maior expõe o seu plano de trabalho, inserido no propósito de recuperação da história silenciada da produção literária feminina brasileira e as dificuldades – tão conhecidas e tão previstas – em obter informações bibliográficas e os textos junto às Instituições que se perdem, quase sempre, em incontornáveis meandros burocráticos, se compõe de três capítulos. No primeiro, “Ato I, O Peso de um nome, uma obra de Peso”, a Autora fornece os dados que lhe foi possível conseguir sobre a biografia de Josefina Álvares de Azevedo, na verdade, parcos e incertos, pois, conforme consta, enquanto não for encontrado o seu registro de batismo não haverá certeza quanto ao local de seu nascimento e a sua filiação; como, também, permanecem ignorados o seu estado civil, os estudos que fez e o local e data de sua morte. Assim, o que sobre ela é conhecido não vai além de sua atuação como defensora ativa e incansável dos direitos das mulheres no Brasil. Tudo o que fez, tudo o que escreveu e publicou – artigos, poesia, teatro, esboços biográficos, traduções – foi, primordialmente, em função desse ideal maior o que norteou todos os passos de sua trajetória: a emancipação social da mulher.

            O segundo capítulo, “Ato II, O Voto Feminino em Cena”, fará a análise de O voto feminino, comédia em um ato, o único texto de dramaturgia de Josefina Álvares de Azevedo, na qual ela reivindica para as mulheres um lugar na sociedade que não seja apenas o subalterno, preconizado até então. No Rio de Janeiro da época é onde se passa a ação, que se inicia com uma questão banal, a minúscula diferença numa conta de armazém, da qual se origina uma discussão em torno dos deveres e direitos da mulher. Valéria Andrade Souto-Maior examina minuciosamente a linha de ação dramática, os personagens, que retratam certos tipos e hábitos da sociedade fluminense de seu tempo, a linguagem de tom coloquial, corretamente adequado à realidade cotidiana e com as variantes próprias da expressão de distintos tipos sociais, o oportuno uso de peças musicais, do gosto da época, a completarem o perfil dos personagens e o conflito que se configura como o de um grupo contra outro grupo: o dos homens que não admitem a emancipação feminina, temerosos de perderem seus amplos poderes fora e dentro de casa e o das mulheres a se julgarem aptas para exercer atividades que, até então, lhe eram  vedadas. Também, examina as notas da imprensa que a peça, antes mesmo de ser levada ao palco, originou. E a sua estréia, com o teatro cheio, apesar da chuva, que embora tenha sido aplaudida, não ocasionou uma segunda apresentação. Evidência de que as qualidades da peça e o prestígio de quem a escreveu – Josefina Álvares de Azevedo foi fundadora, diretora e redatora de um dos mais combativos e avançados jornais feministas surgidos na segunda metade do século XIX, A Famílianão foram suficientes para diluir ou anular as reações negativas daqueles que, presos aos arraigados preconceitos então vigentes na sociedade daquele final de século, não podiam aceitar o sucesso feminino ou a audácia em expressar o que na época deveria ser calado.

            Valéria Andrade Souto-Maior diz do silêncio que passou a reinar em torno de O voto Feminino e que ainda hoje perdura como seu maior castigo e do próprio silêncio de Josefina Álvares de Azevedo, no campo da dramaturgia a se configurar como um instigante enigma a ser decifrado.

Haja visto o quanto a obra de Josefina Álvares de Azevedo e das outras mulheres brasileiras escritoras ficaram ausentes da História da Literatura Brasileira, trazer à luz os seus textos e as histórias de obstáculos em meio aos quais eles se engendraram, não somente preenche uma lacuna como auxilia o estudo da ideologia que dominou a produção artística no país e que permanece subjacente no silêncio e nas críticas da produção feminina.

domingo, 23 de dezembro de 2001

Fronteiras, passagens, paisagens na Literatura Canadense


Fronteiras, passagens, paisagens na Literatura Canadense, organizado por Maria Bernadettte Porto e publicado pela Editora da Universidade Federal Fluminense e Associação Brasileira de Estudos Canadenses, no ano 2000, é fruto de pesquisas plurais que partem de reflexões sobre temas especificamente canadenses: as origens (próximas ou distantes, os canadenses tem as suas raízes alhures), a travessia das identidades e o estado de oscilação entre uma e outra cultura daquele que chegou para iniciar uma nova vida.

            Entre os ensaios oriundos dessas reflexões, cujo interesse extrapola a Literatura Canadense, para se fixar, também, na questão da identidade como processo de construção contínua, um texto de ficção da quebequense Lori Saint-Martin.

            É um breve conto em cujo título “Pur polyester” (“Puro poliéster”) está contida a crítica à expressão pure laine (pura lã) com que os quebequenses, que se acreditam de linhagem pura, se auto designam. A narrativa, de uma jovem imigrante, se faz na primeira pessoa. Seu itinerário de pobreza se inicia, com a partida dos pais de Salamanca para Paris e daí para Quebec. Se o nome do dinheiro – pesetas, francos, dólares – muda, o seu montante não é jamais suficiente para pagar as necessidades primeiras e, eventualmente, algo de prazeroso. E o dizer, sempre matizado e imperfeito – as palavras faltam ou sobram – é, sempre, denunciador, como também as roupas pobres de alguém que recém chegou. É o caso da narradora, porque o lugar de seu pai e de sua mãe, a Salamanca, da Universidade e da Catedral, do calor do sol, dos passarinhos na praça, das lagartixas e dos terraços, não lhe diz respeito. Embora se nutra das lembranças que eles trouxeram e da música de que é feita a voz da sua mãe quando fala o espanhol. Uma voz que se eleva, também, para outras lembranças: as penosas, da imigrante em Paris; as de tristeza, quando volta a Espanha para enterrar a  mãe e vestir um luto que, assim se faz em Espanha, jamais abandonará. E para um enunciado a prover um outro, inevitável exílio: Quando se perde a mãe, perde-se a terra inteira e o sal e a luz. Palavras que a narradora é demasiado jovem para entender e porque ainda está na fase de se enraizar no universo para onde foi transplantada e sobre o qual se interroga. O seu relato testemunha o cotidiano de duros trabalhos daqueles que chegam ao país e dos desconfortos que enfrentam; e este sentir dos que no presente, ainda vivem algo do passado e ao qual se acrescentam os acenos de um futuro promissor. Um relato ameno, algo melancólico, por vezes ingênuo, a expressar esse rito de passagem que para os habitantes do Continente não acaba de se concluir.  Embora, alguns, disso não se dêem conta ao se julgarem melhores apenas porque chegaram antes.

domingo, 16 de dezembro de 2001

Nas entrelinhas


          Parte de Cuestiones con la vida (Buenos Aires, Galerna, 1986) é um longo poema narrativo-circunstancial que sob o inocente título de “Rosedal”, jardim das rosas, se constitui a expressão de um lirismo que a ironia e o humor que a ele se entrelaçam, não logram diluir. Foi escrito, no exílio, por Humberto Costantini, narrador e dramaturgo argentino que, nesses versos, dá um testemunho do sofrimento que advém do viver em terra alheia. Seja ela tão sedutora e apaixonante como pode ser a cidade do México. Embora os primeiros versos do poema digam, muito claramente, dessa infelicidade que soe acometer quem vive no exílio, a emoção maior, a saudade, vai se mostrando no relembrar o mundo que foi deixado para trás e que o humor, sempre presente, quer, talvez, atenuar. O poeta revê o Rosedal, prosaicamente delimitado num breve trecho entre um velho poste de luz e um canteiro de coroa de noiva e o Rosedal de sua alma, entrelaçado aos momentos de felicidades que ali viveu. Depois, quis lembrar, também, de outras coisas e deixou que Buenos Aires e seus habitantes se fizessem presente. E a partir do verso isto foi o que viu... registra os tipos que circulam pelas ruas da cidade, soberanos, como que a ignorar o que sempre está prestes a acontecer nesse tempo de terror que vive o país sob jugo de uma exemplar, como costumam ser todas elas, ditadura. Assim, os que estão sentados num banco, falando de uma ária de ópera; assim o avô, passeando com sua neta; e as solteironas tomadas do braço e a velhinha, fazendo tricô; os jovens, combinando um encontro,o porteiro do hotel a dormis a sesta. Na paz dessa inconsciente ou falsa inocência a viver o cotidiano, entrando na avenida é a inegável parcela de realidade: a presença dos matões, da polícia paramilitar que prende, seqüestra, mata, sem precisar para isto, outras que suas próprias razões. O poeta, então decreta desse Ford Falcon a inexistência e continua a olhar para a vida que transcorre nas ruas de Buenos Aires: palavras de amor, gravadas num tronco de árvore, um cachorrinho de unhas pintadas, um balão cor de laranja a voar pelo céu. E outra vez, o Ford Falcon, um pedaço de sombra, uma imundície a manchar a tarde e o domingo. O poeta o elimina de sua imaginação e de seu olhar que, outra vez, torna para o mundo diáfano e ensolarado. Faz o que pode para tirar dali o Ford Falcon, usa todo o ritual para apagá-lo, porém, em vão: a suja mancha estava ainda ali / no mesmo lugar / e era como um enorme abutre um pesadelo pousado no asfalto. O poeta sente medo, sabendo o que irá acontecer e, demiurgo, arranca, de um gesto, o papel da máquina onde queria escrever uma história que ficou assim / para sempre sem terminar.
E outra história que ele não quer contar, plena de violências e injustiças a destroçar vidas, ficou nas entrelinhas. Humberto Costantini, ao optar pelo sugerir – até porque ninguém, na Argentina, nesse momento ignorava as funções repressoras desses carros pretos – não apenas se recusa a um testemunho, talvez porque as palavras sempre se mostram impotentes para dizer do ultraje que significaram essas ações, como, ao usar o recurso das zonas de sombra, transfere para o leitor uma aceitação ou uma recusa de significados.

domingo, 9 de dezembro de 2001

Nas linhas


            Em 1986, a Editorial Galerna de Buenos Aires, publicou Cuestiones con la vida de Humberto Costantini, surpreendente quinta edição para um livro de poemas, sobretudo por ser o seu autor mais conhecido como romancista e como dramaturgo. Um êxito que, no entanto,talvez se explique  por se constituírem esses poemas, como diz o Editor, um ajuste de contas com a Argentina, então dominada pelo terror de uma ferrenha ditadura. Que Humberto Costantini combateu com as armas de que dispunha: as palavras. Seu romance De dioses, hombrecitos y policias é uma implacável sátira do Sistema que regia a Argentina na época. Razão, entre outras, suficiente para fazer dele uma persona non grata  no seu país, pois embora não tenham as palavras forças para derrubar governos (ou desgovernos), ela representa, para os que têm má consciência, um ameaça que deve ser banida a qualquer preço. Como tantos outros latino-americanos, Humberto Costantini pagou um preço, o do exílio. E, embora no México, um exuberante universo de buganvílias, beija-flores,cravos, pássaros e lagartixas, também de enormes jacarandás florescidos de céu, de andorinhas, e zumbidos e verdes e silvas e gorjeios que ele tenta, patrioticamente ignorar e onde o idioma é o mesmo que o de seu país, ele sofre o drama de todo estrangeiro:enorme solidão e dificuldade em entender e em se fazer compreender. Uma situação da qual não foram isentos os latino-americanos que buscaram abrigo na Espanha ou na França e aí se depararam com o preconceitos linguístico que determina ser o espanhol da Espanha a língua padrão e que, portanto, não aceita os desvios nela ocorridos em cada pais da América Latina.

            Em Rosedal, poema que faz parte de Cuestiones con la vida, Humberto Costantini, no que define como o civilizado transcendente e culto portenho universal  registra a sua experiência no país dos outros que o leva a se dizer ancorado na cidade do México isto é  estar aí de passagem, sempre disposto a regressar. Um regresso que a sua imaginação faz possível quando se dispõe a escrever uma história feliz quente um pouco imprevisível / evidentemente de saudosas cores argentinas / placidamente linda / discretamente alegre  que se constitui, ele confessa, uma forma de entrar no país, mais precisamente, em Buenos Aires. Percorre a cidade no itinerário dos afetos,alegrando-se ou se entristecendo até que, já meio tonto, se depara com o lugar /  mais alegre risonho esperançoso encantador ameno etc. que nenhum outro: o Rosedal essa ilhota incrível no meio do tormentoso Buenos Aires. O Rosedal que vai descrever no seu traçado de flores que, verdadeiramente, o enraízam nesse espaço entre as roseiras floridas e as glicínias e as coroas de noiva e os jasmins e as begônias; e no seu mundo de lembranças que a fonte, o lago, a pequena ponte dos namorados, as estátuas, as grandes árvores fazem emergir: o menino de treze anos a devorar a mais maravilhosa massa folhada / que faminto algum / tenha devorado na sua vida / desde o começo dos tempos; o adolescente de quinze a agredir sua tristeza pelas sendas com o livro de poemas sob o braço; o moço de dezoito, a namorar num banco mal iluminado; o pai, com os filhos pequenos pedindo guloseimas; o avô, enternecido, a tudo entender; o homem de setenta anos, olhando a vida passar.
            É um pedaço de jardim que testemunhou o passar de sua vida e se desenha diante dos olhos da alma, luminoso, florido, sombreado por araucárias, acácias e eucaliptos e faz de     suas palavras - cores e sons e perfumes  - algo de perfeito para a história que irá escrever: despreocupada diáfana inocente /como aquele pedacinho de universo / limitado por um velho poste iluminado / e um canteiro de coroa de noiva. Então,volta as suas folhas em branco e à sua  máquina de escrever, deixa-se, outra vez, levar pela imaginação enquanto as teclas esperam. Mas, desta vez, já não é o verde morno sussurrante oásis que vê mas um cotidiano a transcorrer como que alheio às loucuras do Sistema.

domingo, 2 de dezembro de 2001

A noite de Port au Prince

            Em 1955, Jacques Stephen Aléxis publica o seu primeiro romance, Compère Général Soleil (Paris, Gallimard). Quarenta anos antes, os norte-americanos haviam desembarcado no seu país para nele estabelecer, à força, uma espécie de ordem cujos resultados lhe seriam, especialmente, propícios: na Constituição que, em muito pouco tempo, eles deram ao Haiti, eliminaram o artigo presente nas dezesseis Constituições anteriores que proibia, aos estrangeiros, a posse da terra. Logo, as companhias americanas passaram a dominar a economia do país cujo nível de vida setenta e sete dólares por ano, por pessoa, segundo estatística das Nações Unidas, na época, hoje é um dos mais baixos do mundo.
            Jacques Stephen Aléxis cria a sua história ficcional, inserindo-a nesse mundo, super povoado  e miserável e sufocante de Port-au-Prince,   fazendo seu herói, um jovem negro pobre, maltratado e epilético: Hilarion Hilarius. Ele acaba por ser vencido pelo Sistema que combate, mas antes disso, ainda acredita que há um caminho a seguir que se tornou claro para ele, no dia em que viu um  grande sol vermelho a luminar o peito de um trabalhador. Esse olhar do personagem para a esperança, a expressar um anseio de vida é também, o olhar do narrador a se deter num cenário, que embora,  degradado muitas vezes.  se ilumina   de belezas.

            O “Prólogo” que antecede as três partes da narrativa é construído, graficamente, em dois momentos narrativos entrelaçados:  em itálico, as andanças de Hilarion Hilarius pelas ruas de Port-au-Prince, a sua incursão na casa rica para roubar e a sua prisão. Em cursivo, breves seqüências a dizer da noite na qual se inscreve essa aventura. Uma noite humanizada por  recursos estilísticos que a exibem como  uma bela jovem coberta de jóias elétricas, de flores de fogo que ardem ou com  suas espáduas negras e seus cabelos de pequenas nuvens de lã branca a enfraquecer lentamente; que a fazem dinâmica a estremecer com as estrelas ou partir com passos de lobo;  que a fazem vibrar e induzir à dança os homens e as coisas. Ou que lhe atribuem qualidades  inocente e cúmplice,  virgem negra,  voraz, azul como a tinta, pérfida, vestida de negro, tropical, cheia de zumbis e de estrelas. Ou, ainda, lhe atribuem estados de espírito: pálida e triste como à véspera de abandonar seu combate com a  Aurora, prendendo-se, ainda, desesperadamente nos relevos da paisagem enquanto o branco tímido do dia começava a se insinuar; quase vencida, crivada de dardos claros,a fugir diante da Aurora.

            São breves pausas como pequenos poemas, insistindo a tomar alento nesse levantar de olhos para o céu a interromper a tristeza do relato. O “Prólogo” termina com Hilarion Hilairius acordando na cadeia, dolorido pelos maus tratos, desejando a morte para se libertar dos sofrimentos dessa longa noite e daquelas que a vida sempre lhe infligiu. Mas, deixa-se ficar, deixa-se adormecer. E imagem de alegria e força esse galo  com sua crista de sol, com as asas brilhantes  a cantar loucamente acenando para a vida. A noite findara.