Hilarius
Hilarion é um jovem negro e pobre de Port au Prince. Ao roubar para comer, é
preso. Batem nele os guardiões da casa e apanha da polícia antes de ser jogado
na prisão onde fica muito tempo. Entre as tarefas que deve realizar e os maus
tratos, ele conhece um comunista. Também ele é torturado, mas uma força
interior o faz resistir e as palavras que dirige ao jovem Hilarius Hilarion são
acenos para a construção de um mundo diferente em que não haja aqueles que são
donos de tudo, privando os demais das coisas boas da vida e que também lhe são
devidas. O jovem negro se deixa convencer – não sofrera humilhações desde
criança, trabalhando para os ricos e não sofrera fome e frio e a violência
oriunda das leis dos mais fortes? – mas no Continente não existem sementeiras
onde germinem as palavras de ordem para desfazer o que já foi estabelecido,
ainda que à revelia dos que recebem a menor parte. E na luta desigual muitos ou
quase todos, vão ficando pelo caminho. Hilarius Hilarion foi assassinado pela
repressão. E, capturado, torturado, dado por desaparecido foi Jacques Stephen
Aléxis, autor de Compère General Soleil (Paris Gallimard, 1955). Um romance em que se
sucedem quadros de miséria e sofrimento, atrelados, sempre, à ferocidade de
mandantes e em que permeiam chamadas às lutas e à alegria de viver. Como se necessário fosse ensinar uma lição
que, no entanto, no Continente, já há muito é conhecida e agravada pela
presença de estranhos no país. Estranhos que detém o beneplácito dos
governantes como o atestam as palavras
de um Conselheiro de Estado ao afirmar que só os americanos podem salvar
o seu país. E, então, como donos de
quase todos as plantações de açúcar do Haiti ou como os que vêm para garantir a
nefasta ordem das desigualdades, sempre que tal seja preciso, com a presença
dos barcos rodeando as enseadas e os mares do Continente, se mostram quando
andam de táxi e não querem pagar; quando perseguem uma jovem e batem em quem se
aventura na sua defesa; quando dizem insolências diante de uma casa e com isso
provocam a morte do seu dono. E há o haitiano que acede em posar para a kodak
do ianque e ao levantar a mão para acariciar o menino loiro, recebe nela uma
cuspida acompanhada de uma exclamação de ódio: Get out, nigger; e há a mulher faminta com a criança a implorar
para os americanos bêbados, prestes a queimar, na calçada, um punhado de dólares,
que é obrigada por eles a dançar,
caminhar de quatro, miar, latir, relinchar para receber um dos bilhetes que
tem que pegar com a boca do chão; e há o comerciante sírio que presenciou os
fuzileiros navais americanos atacar com armas automáticas a gente pobre e
desarmada, tendo nas mãos apenas, suas ferramentas de trabalho e que viu os “civilizados” assassinar mulheres,
torturar crianças e crucificar vivos os rebeldes; e há quem saiba porque todas
as maravilhas do Haiti não pertencem aos negros e as negras mas aos americanos
brancos. E há os que tem esperança: juntos,
nos os expulsaremos e resolveremos entre nós nossas diferenças. E há os que
acreditam que apesar de todos os
americanos, apesar de todos os sanguessugas [...], apesar de todos os policiais, novos braços de
operários [...] e de lutadores são a colheita que irrompe sem cessar de nossa
terra a cada cor do céu, a cada estação das chuvas [...].
Num relato, como o deste primeiro romance de
Jacques Stephen Aléxis que faz ver injustiças e desigualdades num inacreditável
império da miséria, abundam seqüências
cuja crueldade se iguala àquelas dos romances do Continente, também eles
enraizados nesse mundo de opróbrios que
estão sempre a se renovar e para os quais parece não haver redenção. Há, porém,
muitas outras cuja beleza lírica aproxima, por vezes, sua prosa, de um dizer
poético a prometer ou a esperar
um vislumbre de beleza, de bondade, de coragem, e de amor. Magias que, certamente e apesar de
tudo, permitem a vida no Continente.



