Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz,
insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da
Literatura Hispano-americana. A partir da
Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da
cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru.
Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e,
para isso, a muda de lugar três vezes.Além do medo de um ataque por parte dos
espanhóis, havia, também o medo das dissidências, das traições a agir contra
seus desígnios.
Eu não quero sussurros e eles o tempo
sussurrando, eu não quero gestos misteriosos e eles passam o tempo fazendo
contas com seus espantosos dedos, contando arcabuzes, barris de pólvora ou
cadáveres [...], responde Juan Núñez de Prado à pergunta do padre sobre o
que fizeram de malvado, de bestial, de
imperdoável para merecer a forca. Porque, merecedores ou não, Antón de Luna
e Alonzo del Arco foram enforcados. Pois, nessa expedição de Juan Núñez de
Prado para a Conquista do Continente, nada mais prevalece do que a sua vontade
que ele justifica como sendo a de Deus e do Rei : Sou eu quem enforca, eu sou a Espanha, rei e vice-rei, a real
audiência e santo ofício e inquisidor. Assim, além do episódio dos dois soldados condenados
à morte, ao longo do romance, são inúmeras as referências à forca como
instituição.
Nas
suas idas e vindas entre o fazer e o desfazer da cidade, Juan Nuñez de Prado
lhe percebe as cordas. Presença vital,
pois é com a forca que ameaça no intuito de ser obedecido ou de
se livrar dos velhos e doentes. Só
concebe a cidade com a forca na praça e com a igreja para assentar a vida. Quando um dos capelães o acusa de
assassinato, retruca: Fizemos justiça. E outra vez, ao ser
interpelado: [...] estes dois soldados
estão doentes, gastos e velhos, vão
morrer ainda que não os matemos, mas temos que matá-los pois não os mato eu, os
mata o rei e o vice-rei. No entanto, são certezas que, por vezes, o
abandonam e ele hesita, sentindo pena se deve mandar mata-los ou não: são pobres e desgraçados e até pensa em
mandar dizer na carta ao vice-rei de suas queixas
e pesares. Mas, diz o capitão
Vasquez: são gente ruim, não o esqueças, senhor, queriam nos matar e
ir embora junto com os do Chile. E
diz o carcereiro que estão
resfriados, tossem e amaldiçoam, se queixam: quase seria uma crueldade fazer justiça com eles[...] , o velho está doente e a umidade lhe faz
mal, por isso queria ir para o Chile.
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O
velho é Alonzo del Arco. Tem trinta anos, os olhos verdes cheios de ódio e
quando cai a tarde, chora e se agita para desatar os ferros. Antón de Luna,
deixara família em Alicante. Inteiramente amarrado, com vinte voltas, com cinqüenta, com quinhentas voltas, seu rosto
está congestionado e a barba revolta e suja e emaranhada e triste
[...] . Eles tem medo que o venham buscar para a morte porque sabem que Juan
Núñez de Prado não quer nem doentes, nem moribundos na cidade. Doentes ou
isentos das culpas que se lhes imputam, não serão perdoados e morrem de acordo
com o ritual, num relato construído em três tempos.
No
primeiro, o que imagina fazer o capitão: enforcá-los, amarrados um ao outro, na
mesma forca, com uma só escada, apenas um nó, fazendo
muito barulho com o bater dos sinos e os disparos de duzentos arcabuzes.
Noventa
páginas adiante, o segundo momento do episódio: há gente na praça e o capelão
reza pelos apóstolos. A escada já está
apoiada, soa um tambor e uma flauta lúcida e pesarosa. Os
prisioneiros, amarrados, caminham para a forca acompanhados do capelão e de
suas rezas. Um deles não quer subir, os soldados o empurram e as palavras do
capelão procuram convence-lo: [...] tem
confiança, tem fé, tem esperanças, irmão meu, só treze degraus. Um dos capitães levanta o
braço e começa a soar um tambor desordenado,
sem cerimônia, sem ritual, sem
seriedade, misturado ao ruído das marteladas que destruíam as casas. Juan
Núñez de Prado escuta o barulho das cordas batendo na madeira, um grito de
terror e depois o grande silêncio, quebrado pela voz do capelão, suplicando: Oh! Deus, oh! Pai, meu pai, não os abandone, toma-os, recolhe-os.
O
terceiro momento, completando o episódio aparece no terceiro capítulo, nas lembranças de Juan Núñez de Prado, meses
depois, quando, ainda outra vez, está levantando a cidade e uma associação de idéias o leva a pensar no doutor Valdenebro, aproximando-se de Antón
de Luna e de Alonzo del Arco e no escrivão a lhe perguntar se deve conceder
prazos, um pouco de inútil espera aos
prisioneiros ou se devem eles ser enforcados contra a lei de Deus e do rei.
O doutor segurava a barba de Antón de Luna num gesto de piedade e de nojo a insistir na pergunta que lhe fazia e a
esbofeteá-lo pelo seu silêncio. Juan Núñez de Prado vira o sangue escorrer pelo
rosto do prisioneiro e com um pouco de pena, estava certo de que não teria
tempo para deter o doutor, os verdugos, nem a corda das forcas, diz que não haverá
tempo para prazos nem apelações.E
o doutor informa que os prisioneiros não querem
dizer a verdade. Então, ele decide:
a verdade a dizemos nós, agora.
Nas
sequências que seguem, ainda , as perorações dos capitães sobre os feridos
escondidos nas carretas e ainda os gritos irados do capelão a recusar a execução.
Fizemos justiça ainda que injusta, ainda que implacável, conclui o capitão.
Há
sem dúvida um perfeito domínio da técnica do romance no relato do episódio.
Seja pelo intervalo entre um e outro momento, seja pela inserção de variáveis
que lhe ampliam os sentidos, negando maniqueísmos, seja pela sucessão dos
fatos, nem sempre no seu rigor
cronológico. Sobretudo, nesse retorno à
forca e aos enforcados, a trazer no seu bojo as duvidosas certezas da
conquista, mais do que uma astúcia do relato se mostra uma convicção de que não
basta, apenas, só um dizer para aspirar ao exorcismo.

