domingo, 26 de agosto de 2001

Solidariedade


       Há também um aspecto que ressalta no livro: a solidariedade. Todos ajudavam o Louco, os diversos personagens que transitam em seu redor  dão lhe  abrigo,  alimentam-no. Isso foi escrito por um homem que era profundamente humanitário, cuja ternura estendia-se da família até aos animais domésticos.  Cecília Machado Bordini. (Correspondência). 

              O livro é muito lindo e, sem dúvida, dignos de nota, por inusuais na época em que foi escrito, os seus recursos narrativos, presentes nessa estrutura de quadros breves, nessa história sem heróis, nessas zonas de sombra, nessa agilidade de ritmo, nesses pequenos enredos que vão se acoplando ao relato principal. E, como soe acontecer com todas as grandes obras, todo um mundo nela contido possui significados que o estudo dos personagens, do tempo e do espaço romanesco e do enredo oferece, sempre, motivos para as tentativas de decifrá-la mais profundamente. É’ o segundo romance de Dyonélio Machado, O Louco do Cati, publicado pela Globo de Porto Alegre, em 1942. Em cinco partes, se agrupam setenta e dois quadros que relatam a viagem do Maluco – assim o chamam os demais personagens – que é levado por Norberto, de Porto Alegre para um passeio no litoral que circunstâncias adversas prolongam até o Rio de Janeiro de onde vai sendo trazido de volta para o Sul até chegar aos campos de Quaraí onde nascera.

            O Maluco (ou Louco ou Cati ou de muitas outros maneiras com que é designado), não é dono de seu destino e, ao longo  dessa aventura na qual é envolvido,  se entrega, docilmente, ao arbítrio alheio. Quase sem falar, quase sem sorrir (algo desligado, longe e alheio a tudo, diria dele muitos anos depois o seu criador), tendo de seu, apenas o medo do Cati, essa prisão a céu aberto onde, sob o comando de João Francisco Pereira de Souza, a título de anular possíveis contendores, eram freqüentes as degolas. Se, lampejos de lembranças – o momento em que saiu de casa, de madrugada, numa despedida de menino; esse outro em que viu uns índios descalços, amarrados uns aos outros pelo pescoço, prisioneiros de um Tenente do Cati; aquele em que chega na casa de um velho parente; ainda e sempre, perceber o medo que inspirava o Cati; –  dizem algo de seu passado.O presente em que vive é esse contínuo  trocar de dono: os que dele se encarregam, um após o outro, para fazê-lo cumprir o itinerário que presumem ser o seu.

            No primeiro capítulo que tem como sugestivo título “A primeira aventura foi no bonde” a passagem acaba por lhe ser perdoada diante da moeda falsa que apresenta. Logo, no armazém do fim da linha, ao querer cigarros, o dono do armazém aceita a tal moeda que não é suficiente, porém, para pagar os fósforos, o que ele parece não entender. Um rapaz que ali perto, sentado sobre um caixão de gasolina, conversava, se prontifica a dar a moeda que falta e, sem mais, o incorpora à curta viagem que programava com uns amigos. E com isso, o incorpora, também ao que irá lhe advir: a prisão em Araranguá e a transferência para Florianópolis e para o Rio de Janeiro. Sem culpa formal, suspeito político um, inocente o outro, lá ficam os dois por uns tempos na cadeia sem que se desfaçam os laços instituídos a partir do momento em que Norberto faz dele seu companheiro de viagem. De fato, dele, não irá se descuidar e, ao sair da prisão, procura um jeito de tirá-lo dali. A partir de então, acumulam-se os favores: um dos companheiros de prisão, posto em liberdade no mesmo dia que ele, paga-lhe o pernoite no hotel; depois, um rapaz de Alagoas, lhes consegue uma roupa e lugar para ele e Norberto dormirem. Como deve ser recambiado para o Sul, lhe obtém uma passagem e se dispõe a levá-lo a São Paulo. Mas, não podendo ir, a dona da pensão acha uma crueldade abandoná-lo, assim, em São Paulo e sugere que fique mais um tempo no Rio de Janeiro. Mais tarde, lhe conseguem passagem de navio para Florianópolis e algum dinheiro para o ônibus dali para diante. Embarcado, o recomendam a um dos passageiros que o toma sob seus cuidados: paga a diferença para que viaje na primeira classe, leva-o junto a São Paulo na escala que faz o navio em Santos e o reconduz de volta a fim de continuar a viagem. O médico do navio lhe dá um par de sapatos, o leva a passear em Florianópolis e pede ao comandante que o deixe passar a noite a bordo, pois só irá viajar no dia seguinte.  Antes, já havia ganho uma capa de borracha, já fora levado ao cinema. O motorista de caminhão que o leva para Lages o hospeda durante um mês e pede a conhecidos seus, que estão indo de carro para Caxias, que o levem junto. Um dos passageiros, coronel da fronteira, dele se encarrega e, juntos, viajam de trem para Santa Maria e para Santana. E é sob os seus auspícios que chega, de avião, nos campos de Quaraí.

            São pessoas que não o conhecem e, porque assim são solicitadas ou porque optam por isso, não se recusam a cuidar dele: há os que o alimentam, há os que o hospedam, os que lhe dão uma prenda de vestir ou calçar, os que lhe providenciam transporte.  Nada pedem em troca, o aceitando, assim, estranho e calado, sem lhe saber o nome, apenas que deve chegar a um destino, alhures. E o gesto de cada um se norteia, somente, por uma espontaneidade que não pede razões e vai tecendo uma corrente de solidariedade num mundo que está longe de ser exemplar.  E os ridículos desse mundo, suas mediocridades, suas fraquezas, suas injustiças, Dyonélio Machado não os elude. Assim, a comovente figura do Louco na sua ingênua confiança em relação ao outro e o outro, a habitar os tipos que desfilam perto dele e, surpreendentemente, honra essa confiança, são, na verdade, a afirmação do escritor gaúcho de que é possível aos humanos serem luminosos.

domingo, 19 de agosto de 2001

O engenho


Cana-de-açúcar,

Cana-de-açúcar,

Por que não adoças

O canavial?
Amargo mal. 
        Eliseo Porta e Alfredo Zitarroza
            Eram quatrocentos negros, trezentas negras e duzentos negrinhos. O que sobrara dos mil e quinhentos que trabalhavam na grande plantação de cana-de-açúcar, dominadas por um magnífico estabelecimento com seu aqueduto, vencendo as dificuldades do terreno para levar água aos moinhos que esmagam a cana, suas caldeiras e sua refinaria. E, pela elegante casa de moradia onde convivem, harmoniosamente, os tapetes ingleses, os móveis e os candelabros vindos da França e as gravuras e as curiosidades chinesas. É rodeada por um belo pomar de árvores carregadas de frutos, entre um jardim de muitas flores cujas espécies foram trazidas da Europa. Chama-se Villa Lavalle, o nome de seu proprietário, um antigo prefeito de Arequipa. Com a maior gentileza, se prontificou a mostrar a propriedade à visitante francesa, curiosa para ver a cana-de-açúcar, vislumbrada no Jardin des Plantes de Paris, crescer no seu habitat.


            Eram os últimos dias de Flora Tristan no Peru, onde fora em busca da herança paterna. Uma experiência em terra estranha sobremaneira adversa, pois a família não lhe reconheceu os direitos que julgava ter, mas, experiência que lhe deu matéria para um livro: Pérégrinations d’une paria (1833-1834), editado na França em 1838 e que a editora Mulheres de Florianópolis, juntamente com a EDUNISC de Santa Cruz do Sul, publicou no ano passado, numa tradução de Maria Nilda Pessoa e Paula Berinson. Flora Tristan não apenas registra os dissabores que teve com sua família e o cotidiano que viveu nesses meses passados em Arequipa e em Lima como faz reflexões ou emite opiniões quando os hábitos ou os fatos a surpreendem.

            Nessa visita a Villa Lavalle, se depara com o trabalho escravo. Não hesita em dizer a seu anfitrião o que pensa e o diálogo entre os dois é mais um testemunho da cupidez humana que, diante do desejo de riqueza, faz com que se anulem quaisquer princípios num reinado do absurdo a justificar todas as iniquidades e todos os crimes.

            Assim, Flora Tristan afirma o óbvio – o clima é saudável, portanto os negros deveriam ser saudáveis; a espécie humana cresce em meio a calamidades e os negros se multiplicariam se a sua existência fosse tolerável; a escravidão corrompe o homem; o tipo de escravidão na América excede o fardo de dor que foi dado ao homem suportar; se os produtos originados do trabalho escravo perdessem o valor, a escravidão sofreria felizes modificações; os proprietários não se satisfazem com o lucro de seus engenhos de açúcar, mas querem que esse lucro lhes permita fazer fortuna. E, aponta caminhos, não apenas, para dar fim à prática escravagista mas, também, para preparar os escravos para o uso da liberdade. Em resposta, escuta argumentos iguais a todos os que defendem o uso do trabalho escravo: as negras se deixam abortar ou não tem cuidados com os filhos; por preguiça, os negros deixam os filhos perecerem; os negros só trabalham sob a chibata; a escravidão, entre os povos de origem espanhola é mais suave do que em outras nações; a forma com que ela, Flora Tristan considera a escravidão, apenas mostra que tem bons sentimentos e muita imaginação. Termina, dizendo que para ele, um velho plantador, nenhuma das belas idéias que ouviu é realizável.

            Flora Tristan entende que falar com um velho plantador de cana-de-açúcar do Peru significa falar com um surdo e opta por dar um fim à conversa na qual o seu interlocutor não deixou de se mostrar afável e sempre disposto a continuar a mostrar-lhe os seus imensos domínios que se estendem ao longo do mar e ao longo dos extensos campos cultivados.

            Antes de partir, ao entardecer, Flora Tristan ainda pôde ver alguns negros com a expressão sombria, cruel e infeliz a trabalhar e, num calabouço, duas negras trancafiadas porque haviam deixado morrer os filhos, privando-os da amamentação. Estavam nuas e uma delas, jovem e muito bela fixou os olhos na visitante branca como a lhe dizer: Deixei meu filho morrer porque sabia que ele não seria livre como tu; e eu o preferi morto a escravo.

            Um universo desconhecido, mergulhado em trevas e em sofrimentos a fazer com que todas as palavras pareçam vãs.

domingo, 12 de agosto de 2001

Pensar a narrativa


            Em dezembro de 1997, se realizaram em Montevidéu, as jornadas sobre a vigência da obra de Horacio Quiroga. O evento, organizado pelo Departamento de Literatura Uruguaia e Latino-americana, reuniu vinte e sete especialistas cujos trabalhos foram reunidos num volume – Actas de las jornadas en homenaje a Horacio Quiroga,  publicados, sem data de edição, pela Universidade da República. Agrupados em seis tópicos (El texto revisitado, Quiroga y el cine, El tópico del amor, Constucciones teóricas, Sobre el Decálogo del Perfecto Cuentista, Otras aproximaciones) e, assinados por críticos, professores e escritores,  como soe e deve acontecer, se constituem estudos de diferentes textos de  Horacio Quiroga, que se abrigam sob enfoques metodológicos diversos. Um desses textos, de autoria de Carlos Liscano,  romancista com três livros publicados ( El método y otros juguetes carcelarios, 1987; Memórias de la guerra reciente, 1988; El camino de Ítaca ,1997)  tem  o interesse de entrelaçar as reflexões de um narrador com os postulados teóricos sobre a narrativa, de outro, no caso, exímio contista.Como introdução, uma breve epígrafe em que ele explica ser o seu trabalho feito de intuições, convicções  provisórias das quais estão ausentes as afirmações com o embasamento científico que sustenta o trabalho dos críticos.

            Nas primeiras linhas, Carlos Liscano reflete sobre o oficio de escrever que, segundo ele, está determinado pela invenção de si mesmo como escritor porque aquele que deseja escrever deve, necessariamente, inventar o escritor que pretende ser. O que significa a criação de uma pessoa que não existe, a sua voz, a obra que irá escrever e ser constante na realização do ser que inventou.

            A partir dessas premissas, é que irá comentar as reflexões sobre o ofício de escrever  que Horacio Quiroga registra  em três  textos: “Decálogo  del cuentista perfecto”, “La retórica del cuento”,  “Ante el tribunal”.

            O “Decálogo del cuentista perfecto”, 1927, que uma primeira leitura faz crer de extrema simplicidade, revela uma concepção do conto que vai além dos próprios limites literários.  Os quatro primeiros, se referem à arte em geral; os que seguem, aconselham a narrativa concisa, que abstraia enfeites estilísticos ou digressões; e nos dois últimos, torna às recomendações que se apresentam válidas para qualquer expressão artística: não criar sob o signo da emoção e não pensar no leitor no momento de escrever.

            Na “Retórica del cuento”, 1928,  Horacio Quiroga, hoje, considerado um dos mestres no gênero, dá mostras de insegurança, referindo-se a sua  técnica envelhecida e, acabando por concluir que já é tarde para mudar a sua maneira de entender o relato e que assim sendo, tentará, pelo menos, não torná-lo pior E, reafirma a sua idéia de que o conto curto é a forma narrativa mais perfeita.

            Em “Ante el tribunal” 1930, o Horacio Quiroga, então com 52 anos,  que se sente julgado e condenado pela nova  geração, os jovens iconoclastas do ultraismo reconhece que na juventude, se levantou contra o passado literário com tanta violência quanto é atacado, mas não se rende e replica, ironicamente, cada uma das críticas que lhe são feitas.

            Nesse expressar-se como retórico, Horacio Quiroga está procurando transmitir a sua experiência como escritor, talvez se justificando, talvez se explicando. E Carlos Liscano, nas linhas que lhe dedica,  considera que tais palavras são parte do processo da invenção do escritor. Um processo, dir-se-ia ,  e isto não é segredo para ninguém, que somente irá ter a sua significação  quando acompanhado dessa força interior, desse exprimir  a inconteste verdade individual, dessa capacidade em atingir a expressão estética desejada que é apanágio dos grandes artistas. Na verdade  mistérios, como os muitos que envolvem a criação de um texto, que nunca deixam de  instigar  os estudiosos da Literatura a desvendá-los: indagações a envolver certezas. E certezas que são plenas de riscos.  

domingo, 5 de agosto de 2001

Celina (2)


            Passava o seu tempo com uns crochês vagarosos, alguma costura leve, a leitura de folhetins, pequenos flirts e, dúbia, um quase namoro com Gilberto, hóspede do hotel de sua mãe. E é no “Hotel Bons Ares” onde, ao levar a mãe para se recuperar, que Alfredo a conheceu. A cada noite, na hora do jantar, entre os comensais, de longe, entrevia-lhe o perfil,  cujos cabelos muito negros e abundantes se destacavam num penteado harmonioso e complicado, em que se enrolavam fitas. Depois da sobremesa, saiam todos para o jardim e Alfredo pensava que havia ido para visitar a mãe e que não ficava bem deixá-la só para ir passear entre os canteiros mas o seu desejo era ir no sulco do vestidinho claro de Celina, que ele via errar como mimosa faléia sob a amendoeira, sob o grande pé de manacá em flor, sumindo-se entre as folhagens daqui, dali [...]. E, assim, sem perceber o leve riso de zombaria que tivera no primeiro encontro, ao vê-lo se ocupar da mãe doentia, como que lhe bastou esse olhar que dela recebia, raio luminoso [...), filtrando sonsamente por entre as pestanas baixas,  [...] morno e dúbio, dardejado por entre a sombra de uns cílios espessos para imaginar um futuro a seu lado.  Mas, à Celina não bastou  a simplicidade dos dias e a vida  rotineira e medíocre que lhe oferecera  e a fez sentir-se ludibriada:  Não, deveras, a vida não lhe corria leve, nem jovial...Ah! não! Era uma monotonia, um isolamento!”. E,  então, mostrar essa faceta de revolta que  irá se revelar nas palavras maldosas e agressivas dirigidas à sogra (   Estou acaso prisioneira nesta casa?...), ao marido quando a vai buscar no hotel da mãe para onde fôra por uns dias ( Lá vamos outra vez para a tapera!...), à irmã ( es uma oferecida, que levas a fazer olho a um rapas que mostra bem não te querer...). Ou no olhar irritado, enviezado que lança á irmã ou que esconde,  errante sob os cílios descidos seus  sentimentos.  Principalmente, nesse arroubo de indisciplina que a leva, sem licença do marido para a casa da mãe que, outra vez, hospedava Gilberto, já não mais o estudante pobre e mofino que fora, mas um homem feito e rico. Ao saber que lhe cortejava a irmã, ele que havia prometido  amá-la sempre, e que, ainda lhe faz juras de amor, enche-se de ciúme e, ao vê-los juntos, sente-se  ferida por uma ofensa grave. Sucumbe a um só desejo: separá-los e, nesse momento, faz de menos o marido e os filhos.  Quando porém, se depara com as verdadeiras intenções de Gilberto – levá-la para viver com todo o conforto, num bairro distante, oferecendo-lhe belos trajes e jóias e distrações – e a sua pressa em dela tomar posse,  não  muito diferente daquela demonstrada por outro hóspede, velho e rico, debate-se, desorienta-se, recua. Então,  quando a sogra, que a fora buscar, fala do amor  do marido e das crianças e das inequívocas razões da moral vigente – debaixo do teto de teu marido está a salvação, está a honra, está a felicidade garantida,  chora muito e implora para ser levada de volta para casa. Logo, diante do marido e do grito de alegria do filho ao tornar a vê-la, esqueceu tudo e num ímpeto bom de alívio, de ternura, de remorso da sua loucura,  pediu perdão e prometeu não dar mais razão de queixa.

            Redenção e retorno ao bom caminho, isto é, ao seio da família de quem, na verdade, muito pouco – ouvir galanteios, recebido um beijo – ou quase nada dele se afastara, que deixará clara a intenção  moralizante de A Luta, estréia de Carmen Dolores (pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo)  no romance (Garnier, 1911), agora reeditado pela Mulheres de Florianópolis e EDUNISC de Santa Cruz do Sul.

            Abstraída, porém, essa intenção, Celina e seus encantos – dentes de pérola, pescoço delicado que movia com graça, discrição nos gestos e passos, silenciosa – que por vezes se perdem no relato, se mostrará um personagem habilmente construído. A princípio, esmaecida, nesta figura de sonsa, dúbia, dona de um risinho abstrato de um sorriso um tanto sonso nos lábios ambíguos, ao poucos vai deixando a sua vontade atuar e acaba por se sobrepor `a virtude e à austeridade da sogra e à falta de  escrúpulos e à leviandade da mãe cujas vontades, parecem, a priori, conduzir a ação do romance.