Casava-se
a Celina [...]. Assim começa A Luta, romance de Carmen Dolores
(pseudônimo de Emilia Moncorvo Bandeira de Melo), publicado em 1911 pela
Garnier do Rio de Janeiro. Porém, a continuação da frase, assim como as páginas
que seguem, apenas a mencionam quando toda
branca, assomou à porta da sala envolta em véus virginais, dedicadas ao que
acontece nesse dia e à descrição de tipos na qual sobressai a figura da mãe e
da vida que transcorria no hotel da qual era proprietária: “Aos Belos Ares”. É
entre suas paredes e seu jardim que, principalmente, se passa a ação desse
romance que, no dizer de Maria Angélica Guimarães Lopes (nesse estudo que o
antecede na edição de 2001 (Editora Mulheres de Florianópolis e EDUNISC de
Santa Cruz do Sul) deixa perceber ecos de Balzac, Zola, Eça e Aluísio. No
entanto, Celina a quem em determinado momento da narrativa, a autora chama de Essa Bovary da rua das Marrecas cujo
sonho era ter uma vida menos presa e a independência
da mulher elegante e rica, vestida com apuro, que sai só, vai a teatros e
alimenta a corte ardente de muitos adoradores guarda muito pouco da Ema de
Flaubert ou da Luiza de Eça de Queiroz ou das adúlteras de Balzac. Embora se
constitua a personagem ao redor da qual gire a intriga de A Luta, poucas
seqüências lhe são dedicadas e, quase sempre, breves. Como a se mostrar apagada
entre a figura austera e sóbria da sogra e a figura exuberante e chamativa da
mãe.
Nos
seus dezessete anos, é a quase menina esbelta,
corpinho airoso, cintura fina, cabelos muito
negros e abundantes e olhos grandes,
como pincelados de bistre. São os seus olhos que irão primeiro,
impressionar Alfredo. Logo, se prenderá a seu sorriso, a seu olhar que não
descifra mas que o subjugam, fazendo com que lhe pareça pura e virginal, pura, boa,
inocente, uma pobre menina que não é responsável pelo meio em que o acaso a fez
nascer. E é esse meio o que lhe amedronta a mãe e a faz compadecer-se desse humilde destino de virgem, mal guardada por uma mãe leviana e
espalhafatosa, sem contudo, se esquecer que além da educação e dos hábitos
diversos, ignoravam afinal, a verdadeira
natureza dessa menina refolhada,
bonitinha, mas enigmática.
O
casamento e o tempo que passa, tornando-a infeliz, no viver medíocre de todos
os dias, induzem a que nela se assomem as impaciências, as raivas, as revoltas.
Celina tem gênio... procura desculpar a sogra. E as atenções que antes dela
recebera ao ser hóspede do hotel -
quando lhe floria o quarto ou lhe oferecia uma flor – nessa graça
discreta dos gestos e passos se transformam em malquerença como se da mãe
de seu marido adviesse todo o tédio de sua existência. Escutava as suas
lembranças de velha, detestando-a mas sem ousar responder-lhe com as impertinências que lhe
borbulhavam no espírito. Indolente,
entediada, mal humorada, se deixava ficar
no seu roupão de manhã, todo enxovalhado, os cabelos crespos sem pentear.
Num descontentamento que lhe irá permitir-se desafiar normas como sair de casa
desacompanhada, responder de mau modo ao marido e ir, sem avisar para o hotel
da mãe ou portar-se em desacordo com os ordeiros hábitos da casa, fechando e abrindo janelas ora de cara zangada ora a cantarolar cançonetas, principiando e
largando leituras, costuras, arranjos num desejo de ser desagradável e incômoda . É
o começo de algo que irá quebrar a monótona aridez de seus dias numa
sucessão de inevitáveis confrontos em que estarão à prova os princípios
mantenedores da família nos começos do século XX.
Mas,
ainda que um exemplar modelo de família, Celina não tivera – e sim um lar movimentado,
onde crescera e tão mal se educara - é por esse modelo que irá optar ao
perceber o ilusório da felicidade com que lhe acenavam os pretendentes dispostos a mantê-la teúda e
manteúda. E, se afastando do perfil feminino
que, muitas vezes, é presença dos romances realistas, retoma o caminho da moral
vigente que não chega a infringir,
expressando a visão de mundo de Carmen Dolores na qual, como o aponta ainda
Eliane Vasconcellos, não cabe a luta por novos padrões de comportamento da mulher e onde é
privilegiada a figura da boa mãe de família.
Nenhum comentário:
Postar um comentário