domingo, 22 de julho de 2001

Celina (1)

            Casava-se a Celina [...]. Assim começa A Luta, romance de Carmen Dolores (pseudônimo de Emilia Moncorvo Bandeira de Melo), publicado em 1911 pela Garnier do Rio de Janeiro. Porém, a continuação da frase, assim como as páginas que seguem, apenas a mencionam quando toda branca, assomou à porta da sala envolta em véus virginais, dedicadas ao que acontece nesse dia e à descrição de tipos na qual sobressai a figura da mãe e da vida que transcorria no hotel da qual era proprietária: “Aos Belos Ares”. É entre suas paredes e seu jardim que, principalmente, se passa a ação desse romance que, no dizer de Maria Angélica Guimarães Lopes (nesse estudo que o antecede na edição de 2001 (Editora Mulheres de Florianópolis e EDUNISC de Santa Cruz do Sul) deixa perceber ecos de Balzac, Zola, Eça e Aluísio. No entanto, Celina a quem em determinado momento da narrativa, a autora chama de Essa Bovary da rua das Marrecas cujo sonho era ter uma vida menos presa e a independência da mulher elegante e rica, vestida com apuro, que sai só, vai a teatros e alimenta a corte ardente de muitos adoradores guarda muito pouco da Ema de Flaubert ou da Luiza de Eça de Queiroz ou das adúlteras de Balzac. Embora se constitua a personagem ao redor da qual gire a intriga de A Luta, poucas seqüências lhe são dedicadas e, quase sempre, breves. Como a se mostrar apagada entre a figura austera e sóbria da sogra e a figura exuberante e chamativa da mãe.

            Nos seus dezessete anos, é a quase menina esbelta, corpinho airoso, cintura fina, cabelos muito negros e abundantes e olhos grandes, como pincelados de bistre. São os seus olhos que irão primeiro, impressionar Alfredo. Logo, se prenderá a seu sorriso, a seu olhar que não descifra mas que o subjugam, fazendo com que lhe pareça pura e virginal, pura, boa, inocente, uma pobre menina que não é responsável pelo meio em que o acaso a fez nascer. E é esse meio o que lhe amedronta a mãe e a faz compadecer-se desse humilde destino de virgem, mal guardada por uma mãe leviana e espalhafatosa, sem contudo, se esquecer que além da educação e dos hábitos diversos, ignoravam afinal, a verdadeira natureza dessa menina refolhada, bonitinha, mas enigmática.

            O casamento e o tempo que passa, tornando-a infeliz, no viver medíocre de todos os dias, induzem a que nela se assomem as impaciências, as raivas, as revoltas. Celina tem gênio... procura desculpar a sogra. E as atenções que antes dela recebera ao ser hóspede do hotel  - quando lhe floria o quarto ou lhe oferecia uma flor –  nessa graça discreta dos gestos e passos se transformam em malquerença como se da mãe de seu marido adviesse todo o tédio de sua existência. Escutava as suas lembranças de velha, detestando-a mas sem ousar responder-lhe com as impertinências que lhe borbulhavam  no espírito. Indolente, entediada, mal humorada, se deixava ficar no seu roupão de manhã, todo enxovalhado, os cabelos crespos sem pentear. Num descontentamento que lhe irá permitir-se desafiar normas como sair de casa desacompanhada, responder de mau modo ao marido e ir, sem avisar para o hotel da mãe ou portar-se em desacordo com os ordeiros hábitos da casa, fechando e abrindo janelas ora de cara zangada ora a cantarolar cançonetas, principiando e largando leituras, costuras, arranjos num desejo de ser desagradável e incômoda . É  o começo de algo que irá quebrar a monótona aridez de seus dias numa sucessão de inevitáveis confrontos em que estarão à prova os princípios mantenedores da família nos começos do século XX.

            Mas, ainda que um exemplar modelo de família, Celina não tivera – e sim um lar movimentado, onde crescera e tão mal se educara - é por esse modelo que irá optar ao perceber o ilusório da felicidade com que lhe acenavam os  pretendentes dispostos a mantê-la teúda e manteúda. E, se afastando do perfil  feminino que, muitas vezes, é presença dos romances realistas, retoma o caminho da moral vigente que não chega  a infringir, expressando a visão de mundo de Carmen Dolores na qual, como o aponta ainda Eliane Vasconcellos, não cabe a luta por novos padrões  de comportamento da mulher e onde é privilegiada a figura da boa mãe de família.





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