domingo, 15 de julho de 2001

Adozinda


            Quarentona bem conservada, Adozinda Ferreira chegara de Iguaçu, com três filhas, dizendo-se viúva de um negociante português que falecera ao fazer uma visita a sua terra natal. Mostrava ter alguns recursos e, logo, com esperteza e felicidade, comprara um pequeno hotel, em Santa Tereza, onde se instalara com as  filhas. Trabalhadeira e enérgica, de manhã cedo, percorria corredores, salas e dependências, sempre alegre e ativa. É assim que aparece pela primeira vez no romance A Luta (Editora Mulheres de Florianópolis e EDUNISC de Santa Cruz do Sul) que acaba de ser publicado,  providenciando os últimos preparativos da festa de casamento de sua filha Celina. Surge azafamada, a correr, cheia de corpo, clara, com uns bonitos olhos pretos sob os cílios longos, um buço já forte, desenhando-lhe a boca larga e carnuda [...]. E, ainda que a tentação de viver um grande amor, à margem do casamento, que se ampara de Celina seja a intriga do romance, é ela, Adozinda, quem, no relato,  se desenha com mais força, na alegre e espontânea exuberância de carnes e de atitudes. Balançando os quadris fartos, com os braços grossos sempre a mostra entre as mangas largas e curtas, ela se oferece à vista, expandindo-se no seu jeito brincalhão, em riso fácil e em gargalhadas sonoras. Numa familiaridade ruidosa, numa jovialidade vulgar se insinua e a sua voz forte ressoa pela casa  ao oferecer um café, dar as boas vindas ou, gritar  ordens.  Com a pele branca, a mão repolhuda, o seio abundante, o cabelo preto, enrolado em nó sobre a nuca forte e suas roupas decotadas  a esvoaçarem pelos corredores se mostra moça e exuberante nos seus   modos desenvoltos. No entanto, aos olhos do futuro genro, se constitui a mãe suspeita, a dona de um hotel de segunda ordem, a mulher a quem atribuíam amantes.

            Suposição que a  narrativa confirma numa seqüência  exemplar  de  elegante picardia: pela manhã, penetrava familiarmente nos quartos dos hóspedes, esquecia-se a palestrar com os prediletos, aos quais levava ela própria o café com biscoitos, muitas vezes alguma rosa ainda aljofrada de orvalho matutino e colhida por suas mãos no jardim – ressoando através das portas fechadas os seus risos sonoros, não raro seguidos de inexplicáveis silêncios, até que o favorito da ocasião saía do quarto muito apressado, vermelho, a correr para apanhar o elétrico, e dona Adozinda voltava às suas funções domésticas, com o rolo do cabelo um pouco desmanchado, mas sempre enérgica e laboriosa no exercício dos seus deveres.  Outras, a mostrarão  decepcionada, ao perder um hóspede  que tanto lhe valia nos apuros ao  se dar conta que havia calculado mal ao casar Celina com Alfredo, na verdade,  muito menos remediado do que o supunham.

Porém, o seu perfil irá se completar com o passar do tempo, esses cinco anos que lhe deram dois netos e a deixaram mais acabada, com o nariz menos fino e os olhos vivos um pouco empapuçados. Que, sobretudo, a mostram desprovida dos valores tradicionais  que soem ser desejados numa boa mãe de família. Porque possui o respeito pelas farturas da abastança, não, porém, o respeito pelas suas filhas que não se preocupa em educar e que não hesita em usar em proveito próprio. Prefere que a casada se afaste do marido e dos filhos para se tornar amante de um rapaz rico e nada faz para impedir que a outra consiga dinheiro para o luxo em ausências inconfessáveis que desculpa como excentricidades americanas. Quando Celina, angustiada pelas escolhas que deve fazer e, em pânico por ter repelido, violentamente, os avanços do lúbrico velho hóspede do hotel e pelo trovão que, em meio à tempestade, se fez ouvir, na casa, com um formidável estrépito de louças partidas, diz chorando que está com medo e quer se refugiar no seu vasto seio, ela, rancorosa por ter perdido o hóspede que vai embora, ofendido, não olha para a filha, nem lhe estende os braços. Porém, quando Celina, enfim, decide que o seu lugar é junto do marido e dos filhos e não em casa montada por um amante, não titubeia em chamá-la de filha ingrata. Principalmente, se revela, na melancólica observação da filha mais nova  ao perceber que  está de acordo com a possível ligação extra-conjugal entre Celina e o pretendente rico: Hum!... mamãe é imoral!...nunca vi!....

Carmen Dolores (pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo), no entanto,  não julga esta sua personagem. Tampouco a pune. O conhecimento adquirido ao escrever ou sobre a mulher e suas emoções nos contos que antecederam este seu primeiro romance cuja primeira edição é de 1911 ou sobre aspectos do cotidiano nas suas crônicas,  lhe permitiram aproximar-se da lógica  e dos mistérios que existem nos relacionamentos humanos. Daí fazer de Adozinda, alguém que irá permanecer o que sempre foi:  essa mulher livre de amarras e predisposta a ser feliz. Como deixa ver o  olhar brilhante que pousa sobre as filhas. Nele renasce a esperança de que, embora Celina não tenha se submetido  ao que dela havia pretendido,  tudo se arranjará sem que, necessariamente, se preocupe em saber qual o preço que será preciso pagar por isso

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