Quarentona
bem conservada, Adozinda Ferreira chegara de Iguaçu, com três filhas,
dizendo-se viúva de um negociante português que falecera ao fazer uma visita a
sua terra natal. Mostrava ter alguns recursos e, logo, com esperteza e felicidade, comprara um pequeno hotel, em Santa
Tereza, onde se instalara com as filhas.
Trabalhadeira e enérgica, de manhã cedo, percorria corredores, salas e dependências,
sempre alegre e ativa. É assim que aparece pela primeira vez no romance A
Luta (Editora Mulheres de Florianópolis e EDUNISC de Santa Cruz do Sul) que
acaba de ser publicado, providenciando
os últimos preparativos da festa de casamento de sua filha Celina. Surge azafamada, a correr, cheia de corpo, clara, com uns bonitos olhos pretos sob os cílios
longos, um buço já forte, desenhando-lhe a boca larga e carnuda [...]. E, ainda que a tentação
de viver um grande amor, à margem do casamento, que se ampara de Celina seja a
intriga do romance, é ela, Adozinda, quem, no relato, se desenha com mais força, na alegre e
espontânea exuberância de carnes e de atitudes. Balançando os quadris fartos,
com os braços grossos sempre a mostra
entre as mangas largas e curtas,
ela se oferece à vista, expandindo-se no seu jeito brincalhão, em riso fácil e
em gargalhadas sonoras. Numa familiaridade
ruidosa, numa jovialidade vulgar se
insinua e a sua voz forte ressoa pela casa
ao oferecer um café, dar as boas vindas ou, gritar ordens.
Com a pele branca, a mão repolhuda, o seio abundante, o cabelo preto,
enrolado em nó sobre a nuca forte e suas roupas decotadas a esvoaçarem pelos corredores se mostra moça
e exuberante nos seus modos desenvoltos. No entanto, aos olhos
do futuro genro, se constitui a mãe suspeita,
a dona de um hotel de segunda ordem,
a mulher a quem atribuíam amantes.
Suposição
que a narrativa confirma numa
seqüência exemplar de elegante
picardia: pela manhã, penetrava
familiarmente nos quartos dos hóspedes, esquecia-se a palestrar com os
prediletos, aos quais levava ela própria o café com biscoitos, muitas vezes
alguma rosa ainda aljofrada de orvalho matutino e colhida por suas mãos no
jardim – ressoando através das portas fechadas os seus risos sonoros, não raro
seguidos de inexplicáveis silêncios, até que o favorito da ocasião saía do
quarto muito apressado, vermelho, a correr para apanhar o elétrico, e dona
Adozinda voltava às suas funções domésticas, com o rolo do cabelo um pouco
desmanchado, mas sempre enérgica e laboriosa no exercício dos seus deveres. Outras, a mostrarão decepcionada, ao perder um hóspede que tanto
lhe valia nos apuros ao se dar conta
que havia calculado mal ao casar Celina com Alfredo, na verdade, muito
menos remediado do que o supunham.
Porém, o seu perfil irá se
completar com o passar do tempo, esses cinco anos que lhe deram dois netos e a
deixaram mais acabada, com o nariz
menos fino e os olhos vivos um pouco empapuçados. Que, sobretudo, a mostram
desprovida dos valores tradicionais que
soem ser desejados numa boa mãe de família. Porque possui o respeito pelas farturas da abastança, não, porém, o respeito pelas suas filhas que não se
preocupa em educar e que não hesita em usar em proveito próprio. Prefere que a
casada se afaste do marido e dos filhos para se tornar amante de um rapaz rico
e nada faz para impedir que a outra consiga dinheiro para o luxo em ausências
inconfessáveis que desculpa como excentricidades
americanas. Quando Celina, angustiada pelas escolhas que deve fazer e, em
pânico por ter repelido, violentamente, os avanços do lúbrico velho hóspede do
hotel e pelo trovão que, em meio à tempestade, se fez ouvir, na casa, com um formidável
estrépito de louças partidas, diz
chorando que está com medo e quer se refugiar no seu vasto seio, ela, rancorosa por ter perdido o hóspede que vai
embora, ofendido, não olha para a filha, nem lhe estende os braços. Porém,
quando Celina, enfim, decide que o seu lugar é junto do marido e dos filhos e
não em casa montada por um amante, não titubeia em chamá-la de filha ingrata.
Principalmente, se revela, na melancólica observação da filha mais nova ao perceber que está de acordo com a possível ligação
extra-conjugal entre Celina e o pretendente rico: Hum!... mamãe é imoral!...nunca vi!....
Carmen Dolores (pseudônimo de
Emília Moncorvo Bandeira de Melo), no entanto,
não julga esta sua personagem. Tampouco a pune. O conhecimento adquirido
ao escrever ou sobre a mulher e suas emoções nos contos que antecederam este
seu primeiro romance cuja primeira edição é de 1911 ou sobre aspectos do
cotidiano nas suas crônicas, lhe
permitiram aproximar-se da lógica e dos
mistérios que existem nos relacionamentos humanos. Daí fazer de Adozinda,
alguém que irá permanecer o que sempre foi:
essa mulher livre de amarras e predisposta a ser feliz. Como deixa ver
o olhar brilhante que pousa sobre as
filhas. Nele renasce a esperança de que, embora Celina não tenha se
submetido ao que dela havia
pretendido, tudo se arranjará sem que, necessariamente, se preocupe em saber
qual o preço que será preciso pagar por isso

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