domingo, 29 de julho de 2001

O Poeta e a cidade

                           Autobiografia Mágica:Nasci no ano da descoberta do gás néon. Bem sei que  alguns leitores, diante disso, compreenderão a inocuidade de quaisquer outros esclarecimentos. Mário Quintana, “Do Caderno H”.  


            Mário Quintana, nascido em 1906, em Alegrete, com pouco mais de vinte anos, foi morar em Porto Alegre. Preso, no entanto, ficou às primeiras imagens e emoções que se lhe ofereceram nesses seus primeiros anos e que estarão presentes, ao longo de seu viver poético: ruelas, casas antigas, um luar, folhas iluminadas, a frase de uma velha tia, vozes atrevidas de moleques de rua. Um mundo que ficou para trás mas, sempre a conviver com esse outro, de cidade grande que, na sua transformação, vai se fazendo matéria inóspita. Alguns de seus textos do “Caderno H”, publicados no “Caderno de Sábado” (Correio do Povo de Porto Alegre), entre 13 de março de 1971 e 1º de março de 1973, dizem de seu olhar que descobre a luz e cor, um som inesperado que parecem não ter lugar de acolhida na insensibilidade da urbe moderna.

            Em “Urbanismo”, ele se pergunta que melhor ornamentação caberia às cidades metálicas senão o cactus que, além do mais, é tão adequadamente cacofônico. Na “Elegia em cinza”, ao constatar que nas cidades de puro cimento a palavra folha tem menos significado que um fantasma e, então, só resta o vento e o apelo para que Deus faça uma de suas mágicas, ao menos para colorir o vento. E, pungente, na sua síntese, soberana, “Esvaziamento”: Cidade grande: dias sem pássaros, noites sem estrelas. Por vezes, abandona generalizações para lamentar ser privado do crepúsculo de Porto Alegre, de uma beleza pungente até o grito. Num dizer de brincadeira de criança, Cadê o crepúsculo?/ - O gato comeu., entremeia o testemunho irrefutável que anula o mágico existente nesse dizer: O gato se chama arranha-céu. E, não deixa de notar que essa palavra também, ao que parece, se encontra em desuso. Até porque, dir-se-ia, talvez os arranha-céus tenham perdido o encanto ao se amontoarem para se transformar nessa selva de pedra, horizonte mesquinho, a se erigir nas cidades. E, também, mais do que privá-lo do pôr do sol sobre o Guaíba, esse tipo de habitat irá fazer com que perceba, já nesses idos de 1972, a incongruência que significa. Num texto que tem por título “Trecho de uma História”, o poeta imagina dizeres de uma História Universal, editada no século XXXIII:  Os homens do Século Vinte, talvez por motivos que só a miséria explicaria, costumavam aglomerar-se desconfortavelmente em enormes cortiços de cimento. Alguns atribuem o fato a não se sabe que misterioso pânico ao simples contato da natureza; mas isso é matéria de ficcionistas, místicos e poetas... O historiador sabe apenas que chegou a haver, em certas grandes áreas, conjuntos de cortiços erguidos lado a lado sem o suficiente espaço e arejamento, que poderiam alojar vários milhões de indivíduos. Era, por assim dizer, uma vida de insetos – mas sem a segurança que apresentam as habitações construídas por estes.

            No entanto, o poeta, ao se dar conta das ausências e do lúgubre que podem resultar em certas escolhas urbanísticas, não se deixa, na verdade, vencer pela lamúria e descobre nos arranha-céus, aqui e ali, uma janelinha [...] perdida... sugerindo humanas presenças, isoladas na noite vazia da cidade; e uma casinhola, pequena, lá no alto, que, no seu dizer, é habitada pelo zelador da Lua.

            E, assim, persiste no seu poetar a imagem da cidade, mesclada a seus devaneios e presente na sua real dimensão nem sempre feita de encantamentos. Espaço, no entanto, onde, ainda, pode existir motivo para a emoção. Seja tão singela quanto ouvir, vindo lá do fundo de um terreno baldio, esse grilo, teimando em transmitir, na sua frágil Morse de vidro não se sabe que misteriosa mensagem às estrela ausentes.

domingo, 22 de julho de 2001

Celina (1)

            Casava-se a Celina [...]. Assim começa A Luta, romance de Carmen Dolores (pseudônimo de Emilia Moncorvo Bandeira de Melo), publicado em 1911 pela Garnier do Rio de Janeiro. Porém, a continuação da frase, assim como as páginas que seguem, apenas a mencionam quando toda branca, assomou à porta da sala envolta em véus virginais, dedicadas ao que acontece nesse dia e à descrição de tipos na qual sobressai a figura da mãe e da vida que transcorria no hotel da qual era proprietária: “Aos Belos Ares”. É entre suas paredes e seu jardim que, principalmente, se passa a ação desse romance que, no dizer de Maria Angélica Guimarães Lopes (nesse estudo que o antecede na edição de 2001 (Editora Mulheres de Florianópolis e EDUNISC de Santa Cruz do Sul) deixa perceber ecos de Balzac, Zola, Eça e Aluísio. No entanto, Celina a quem em determinado momento da narrativa, a autora chama de Essa Bovary da rua das Marrecas cujo sonho era ter uma vida menos presa e a independência da mulher elegante e rica, vestida com apuro, que sai só, vai a teatros e alimenta a corte ardente de muitos adoradores guarda muito pouco da Ema de Flaubert ou da Luiza de Eça de Queiroz ou das adúlteras de Balzac. Embora se constitua a personagem ao redor da qual gire a intriga de A Luta, poucas seqüências lhe são dedicadas e, quase sempre, breves. Como a se mostrar apagada entre a figura austera e sóbria da sogra e a figura exuberante e chamativa da mãe.

            Nos seus dezessete anos, é a quase menina esbelta, corpinho airoso, cintura fina, cabelos muito negros e abundantes e olhos grandes, como pincelados de bistre. São os seus olhos que irão primeiro, impressionar Alfredo. Logo, se prenderá a seu sorriso, a seu olhar que não descifra mas que o subjugam, fazendo com que lhe pareça pura e virginal, pura, boa, inocente, uma pobre menina que não é responsável pelo meio em que o acaso a fez nascer. E é esse meio o que lhe amedronta a mãe e a faz compadecer-se desse humilde destino de virgem, mal guardada por uma mãe leviana e espalhafatosa, sem contudo, se esquecer que além da educação e dos hábitos diversos, ignoravam afinal, a verdadeira natureza dessa menina refolhada, bonitinha, mas enigmática.

            O casamento e o tempo que passa, tornando-a infeliz, no viver medíocre de todos os dias, induzem a que nela se assomem as impaciências, as raivas, as revoltas. Celina tem gênio... procura desculpar a sogra. E as atenções que antes dela recebera ao ser hóspede do hotel  - quando lhe floria o quarto ou lhe oferecia uma flor –  nessa graça discreta dos gestos e passos se transformam em malquerença como se da mãe de seu marido adviesse todo o tédio de sua existência. Escutava as suas lembranças de velha, detestando-a mas sem ousar responder-lhe com as impertinências que lhe borbulhavam  no espírito. Indolente, entediada, mal humorada, se deixava ficar no seu roupão de manhã, todo enxovalhado, os cabelos crespos sem pentear. Num descontentamento que lhe irá permitir-se desafiar normas como sair de casa desacompanhada, responder de mau modo ao marido e ir, sem avisar para o hotel da mãe ou portar-se em desacordo com os ordeiros hábitos da casa, fechando e abrindo janelas ora de cara zangada ora a cantarolar cançonetas, principiando e largando leituras, costuras, arranjos num desejo de ser desagradável e incômoda . É  o começo de algo que irá quebrar a monótona aridez de seus dias numa sucessão de inevitáveis confrontos em que estarão à prova os princípios mantenedores da família nos começos do século XX.

            Mas, ainda que um exemplar modelo de família, Celina não tivera – e sim um lar movimentado, onde crescera e tão mal se educara - é por esse modelo que irá optar ao perceber o ilusório da felicidade com que lhe acenavam os  pretendentes dispostos a mantê-la teúda e manteúda. E, se afastando do perfil  feminino que, muitas vezes, é presença dos romances realistas, retoma o caminho da moral vigente que não chega  a infringir, expressando a visão de mundo de Carmen Dolores na qual, como o aponta ainda Eliane Vasconcellos, não cabe a luta por novos padrões  de comportamento da mulher e onde é privilegiada a figura da boa mãe de família.





domingo, 15 de julho de 2001

Adozinda


            Quarentona bem conservada, Adozinda Ferreira chegara de Iguaçu, com três filhas, dizendo-se viúva de um negociante português que falecera ao fazer uma visita a sua terra natal. Mostrava ter alguns recursos e, logo, com esperteza e felicidade, comprara um pequeno hotel, em Santa Tereza, onde se instalara com as  filhas. Trabalhadeira e enérgica, de manhã cedo, percorria corredores, salas e dependências, sempre alegre e ativa. É assim que aparece pela primeira vez no romance A Luta (Editora Mulheres de Florianópolis e EDUNISC de Santa Cruz do Sul) que acaba de ser publicado,  providenciando os últimos preparativos da festa de casamento de sua filha Celina. Surge azafamada, a correr, cheia de corpo, clara, com uns bonitos olhos pretos sob os cílios longos, um buço já forte, desenhando-lhe a boca larga e carnuda [...]. E, ainda que a tentação de viver um grande amor, à margem do casamento, que se ampara de Celina seja a intriga do romance, é ela, Adozinda, quem, no relato,  se desenha com mais força, na alegre e espontânea exuberância de carnes e de atitudes. Balançando os quadris fartos, com os braços grossos sempre a mostra entre as mangas largas e curtas, ela se oferece à vista, expandindo-se no seu jeito brincalhão, em riso fácil e em gargalhadas sonoras. Numa familiaridade ruidosa, numa jovialidade vulgar se insinua e a sua voz forte ressoa pela casa  ao oferecer um café, dar as boas vindas ou, gritar  ordens.  Com a pele branca, a mão repolhuda, o seio abundante, o cabelo preto, enrolado em nó sobre a nuca forte e suas roupas decotadas  a esvoaçarem pelos corredores se mostra moça e exuberante nos seus   modos desenvoltos. No entanto, aos olhos do futuro genro, se constitui a mãe suspeita, a dona de um hotel de segunda ordem, a mulher a quem atribuíam amantes.

            Suposição que a  narrativa confirma numa seqüência  exemplar  de  elegante picardia: pela manhã, penetrava familiarmente nos quartos dos hóspedes, esquecia-se a palestrar com os prediletos, aos quais levava ela própria o café com biscoitos, muitas vezes alguma rosa ainda aljofrada de orvalho matutino e colhida por suas mãos no jardim – ressoando através das portas fechadas os seus risos sonoros, não raro seguidos de inexplicáveis silêncios, até que o favorito da ocasião saía do quarto muito apressado, vermelho, a correr para apanhar o elétrico, e dona Adozinda voltava às suas funções domésticas, com o rolo do cabelo um pouco desmanchado, mas sempre enérgica e laboriosa no exercício dos seus deveres.  Outras, a mostrarão  decepcionada, ao perder um hóspede  que tanto lhe valia nos apuros ao  se dar conta que havia calculado mal ao casar Celina com Alfredo, na verdade,  muito menos remediado do que o supunham.

Porém, o seu perfil irá se completar com o passar do tempo, esses cinco anos que lhe deram dois netos e a deixaram mais acabada, com o nariz menos fino e os olhos vivos um pouco empapuçados. Que, sobretudo, a mostram desprovida dos valores tradicionais  que soem ser desejados numa boa mãe de família. Porque possui o respeito pelas farturas da abastança, não, porém, o respeito pelas suas filhas que não se preocupa em educar e que não hesita em usar em proveito próprio. Prefere que a casada se afaste do marido e dos filhos para se tornar amante de um rapaz rico e nada faz para impedir que a outra consiga dinheiro para o luxo em ausências inconfessáveis que desculpa como excentricidades americanas. Quando Celina, angustiada pelas escolhas que deve fazer e, em pânico por ter repelido, violentamente, os avanços do lúbrico velho hóspede do hotel e pelo trovão que, em meio à tempestade, se fez ouvir, na casa, com um formidável estrépito de louças partidas, diz chorando que está com medo e quer se refugiar no seu vasto seio, ela, rancorosa por ter perdido o hóspede que vai embora, ofendido, não olha para a filha, nem lhe estende os braços. Porém, quando Celina, enfim, decide que o seu lugar é junto do marido e dos filhos e não em casa montada por um amante, não titubeia em chamá-la de filha ingrata. Principalmente, se revela, na melancólica observação da filha mais nova  ao perceber que  está de acordo com a possível ligação extra-conjugal entre Celina e o pretendente rico: Hum!... mamãe é imoral!...nunca vi!....

Carmen Dolores (pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo), no entanto,  não julga esta sua personagem. Tampouco a pune. O conhecimento adquirido ao escrever ou sobre a mulher e suas emoções nos contos que antecederam este seu primeiro romance cuja primeira edição é de 1911 ou sobre aspectos do cotidiano nas suas crônicas,  lhe permitiram aproximar-se da lógica  e dos mistérios que existem nos relacionamentos humanos. Daí fazer de Adozinda, alguém que irá permanecer o que sempre foi:  essa mulher livre de amarras e predisposta a ser feliz. Como deixa ver o  olhar brilhante que pousa sobre as filhas. Nele renasce a esperança de que, embora Celina não tenha se submetido  ao que dela havia pretendido,  tudo se arranjará sem que, necessariamente, se preocupe em saber qual o preço que será preciso pagar por isso

domingo, 8 de julho de 2001

Margarida

            Acaba de ser publicado pela Editora Mulheres de Florianópolis, em parceria com a EDUNISC de Santa Cruz do Sul, A Luta,  cuja primeira edição, pela Garnier do Rio de Janeiro, data de 1911. Foi o primeiro romance  de Carmen Dolores, pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Mel,  após um longo trajeto literário, iniciado em 1897 com um livro de contos, Gradações e no qual abundam as crônicas e incursões na crítica literária. Daí, ser sem dúvida, surpreendente, a qualidade deste seu relato no que diz respeito à estrutura romanesca, à construção dos personagens e às breves descrições da natureza,  entrelaçadas ao enredo, exemplarmente, inscrito  num cotidiano sem presas. 

            Em Escritoras brasileiras do Século XIX ( Editora Mulheres  e EDUNISC, 1999), no texto que lhe é dedicado, Eliane Vasconcellos diz que as crônicas que publicou , ao longo dos anos,  podem ser vistas como documentos de uma  época, pois ela fixa imagens do cotidiano, expõe idéias e defende opiniões [...]. No seu romance também é assim. Há um breve idílio entre Alfedo e Celina. Ele, filho de mãe viúva e ela, de uma dona de pequeno hotel suburbano. Casada sem grandes entusiasmos amorosos, Celina se deixa tentar pela perspectiva de viver um grande amor fora do casamento. Para impedir a infelicidade do filho, Margarida a convence de voltar  para casa para a qual não retornara da ida ao dentista, movida por um impulso de ciúme ao ver a irmã com o namorado que tivera antes de casar e a levara, de volta, para a casa da mãe.

            Obedecendo a um feminismo  de  meias medidas, como diz Eliane Vasconcellos no já citado trabalho, a figura da boa mãe de família ainda é forte em seus escritos  e Margarida Galvão é disso o retrato. Infeliz mãe de cinco filhos mortos é muito grande e possessivo o amor que dedica ao que lhe resta: Alfredo. Triste a amorosa são os dois traços que, sobretudo, a definem e que lhe desenham o físico e lhe dirigem os atos.

            Margarida é velha, tem os cabelos brancos, a face franzida e severa, o rosto amarelecido, os olhos biliosos e de pupilas penetrantes, o busto magro, os joelhos anquilosados, perros, doridos, a mão emagrecida, os dedos nodosos. Inteligente, lúcida, severamente econômica, melancólica e carrancuda, austera, distinta e cheia de preconceitos¸é incapaz da mínima maldade. Aos olhos do filho, ela é  mãe excelente, verdadeira santa, excelente e digna.  E a nora, embora a sentir que os dias sempre iguais, pesados, lentos se arrastam sob o seu mando, direção e ensinamentos, senhora de tudo, tem-lhe respeito, se cala diante dela, diante de sua envergadura moral muito superior à da sua própria mãe.

            Na verdade, a lucidez de Margarida  lhe permite  desconfiar dessa nora de dezoito anos que  não entende e que procura agradar, levando-lhe uma fruta ou um doce; ou entreter com historias de um sentimentalismo que não é por ela entendido. Sendo mãe de seus netos e querida de seu filho,  dela releva as más respostas, a indolência e o ar de fastio que exibe.Também certas atitudes imprevistas – sair sem licença do marido e sem ser acompanhada –que, trêmula, a balbuciar desculpas,  para evitar desavenças, ela tenta fazer o filho entender.

            Assim, quando a nora, levando a filha, volta para a casa da mãe, embora triste e ralada  de ciúme, decide ir buscá-la, pondo a felicidade do filho antes de tudo, como o fizera no dia em que  lhe pedira permissão para casar.  Ficara mais rígida e lívida do que  de costume, com um tremor na face, tentando falar a linguagem da razão -  diferenças de educação e de hábitos, desconhecimento da verdadeira natureza de Celina -  mas ao se dar conta  de que perderia o filho se quisesse impedi-lo, triste e abatida, um véu de pranto a obscurecer-lhe a vista, cedeu.

            Passados cinco anos, outra vez, transige diante da tristeza do filho. Sufoca a raiva que por vezes irrompe, vence o ciúme que sabe egoísta  e decide até   desaparecer da vida do filho para que volte a ser feliz. Porque ao vê-lo a cair de debilidade e dor, com os meigos olhos suplicando-lhe apoio, ternura, consolo, e remédio  o seu orgulho  é vencido e ela promete trazer-lhe a  mulher, de volta.  E o f az.

            Embora velha (assim é chamada, várias vezes, pela romancista) e doentia, Margarida é um personagem marcado pela  virtude e, se algum defeito possui ele se neutraliza diante do amor que nutre pelo filho. Por ele se mostra forte quando julga ser necessário agir em prol de sua felicidade que é a felicidade inscrita na ordem familiar.

            E é essa ordem que  defende a autora, evidente, também, no desenlace do conflito entre Alfredo e Celina, outra vez, juntos a deixarem para trás a luta de  princípios, de educação e de caracteres que Margarida vencera, abandonando-lhes os louros. Porque a ela, pobre velha, viúva e solitária só restava, então, no dizer cruel desta romancista  da primeira década do século vinte, apenas a única solução natural àqueles que terminaram o seu papel ativo neste mundo: morrer.

           

domingo, 1 de julho de 2001

Venho da terra


            É sabido que ao morrer, Pablo Neruda deixou oito livros inéditos de poesia. Mal dois meses se tinham passado desse aziago mês de setembro de 1973 para os chilenos, a Losada, de Buenos Aires, já publica El mar y las campanas  que, em menos de um ano terá sua edição esgotada. Fazem parte dele, quarenta e nove poemas, muitos dos quais o poeta nem teve tempo de lhes dar um título. Para nominá-los, a editora optou por usar o primeiro verso, ou parte dele, entre colchetes. É o caso de “Yo me llamaba Reyes...” em que  Pablo Neruda começa lembrando  seu verdadeiro sobrenome, o  recebido  do pai e abandonado, em 1920, pelo pseudônimo que adotou. Tinha,  dezesseis anos e além de seus versos criou, também, como diz Emir Rodriguez Monegal,  não somente poesia, mas o próprio poeta, ao perceber-se  um homem convicto da vocação que lhe foi outorgada e à qual se submete como é preciso se submeter aos fados: a cumplir con mi tierra y con los mios, como escreverá, mais tarde, em Navegaciones y regresos. Fados que explicarão, nos versos de “Yo me llamaba Reyes...” ,um nascimento em meio à pobreza e à derrota:Yo fui depositado / en la hojarasca: / se hundió el recién nacido / en la derrota y en el nacimiento / de selvas que caían/  y casas pobres que recién lloraban. E o ter recebido, numa só vez, todos os nomes e todos os sobrenomes – árvores e trigo – que remetem  ao desejo que nele sempre existiu, e muitos de seus versos o comprovam: soy el árbol de  enero ou, soy solo tierra de Navegaciones y regresos, Yo soy este desnudo /  mineral de Las piedras del cielo, de se constituir parte dos reinos da natureza. Nos versos  de “Yo me llamaba Reyes...”  sua humildade se mostra, como a soberba, verdadeira  e necessária num sentir antagônico: por eso soy tanto y tan poço, / tan multitud y tan desamparado  que, igualmente, faz pensar em outras expressões do poeta ao oferecer a sua voz aos pobres, aos perseguidos, aos humilhados ( yo vengo a hablar por vuestra boca muerta  do Canto General) aos quais, muitas vezes, se iguala ( Porque donde no tiene voz um hombre / allí, mi voz. Donde los negros sean apaleados ,/  yo no puedo estar muerto./ Cuando entren en la cárcel mis hermanos / estaré yo con ellos. de Los versos del capitán).

            Nos dois últimos versos do poema, a explicação destas antíteses que os antecedem,  porque vengo de abajo /de la tierra, onde,  a idéia de pertencer às classes populares ( que as elites costumam designar pelo adjetivo baixas)  se reafirma com a expressão da terra. Expressão que neutraliza o que de pejorativo exista em  venho de baixo,  ao conter esse significado, liricamente pleno  que é sempre  o que Pablo Neruda lhe confere nos seus poemas: Mi pacto con la tierra, ou palpitó la tierra, ou  fragancia secreta de la tierra do Memorial de Isla Negra por exemplo. Ou,  engrandecida pela inconfundível visão de mundo solidária  do poeta: tierra[..]),madre fecunda, / madre del pan y del hombre / pero / madre de todo el pan y de todos los hombres de Navegaciones y regresos.

            Assim, embora Pablo Neruda use um verbo no passado ( Yo me llamaba Reyes)  para falar do nome paterno que repudiou para poder assumir o seu caminho de poeta e de verbos no passado para falar de seu nascimento, ao se definir, neste poema feito já no fim da vida, usa o verbo no presente, por eso soy tanto y tan poco / tan multitud y tan desamparado,   para   retornar às origens. Não as renega por humildes, como tampouco se despoja dessa assunção – ser todos os homens – que lhe determinou, numa teimosa fidelidade a si mesmo, a rota de seus dias.