José
Ramos Tinhorão se dispôs a estudar a presença da música popular no romance brasileiro
e, então, foram quinze anos de pesquisa e leitura de uns quinze mil romances,
muitos dos quais, no dizer de Alexandre Barbosa, praticamente desconhecidos do
grande público. Na verdade, talvez fosse mais preciso dizer, simplesmente
desconhecidos, porque, ao que é permitido perceber, “este grande público” se
dedica – e isto é possível constatar nas listas dos mais vendidos – talvez não exatamente
a ler, mas a comprar traduções de obras do Hemisfério Norte e desconhecer, na
tradicional arrogância tão própria da mediocridade, excelentes, perfeitas,
acabadas obras da ficção brasileira.
Na
obra que veio a culminar a sua pesquisa, A
música popular no romance brasileiro (São Paulo, Editora 34, 2000), José
Ramos Tinhorão, além das informações que o título da obra faz pensar que serão
dadas, oferece uma História da Literatura Brasileira extremamente rica, não
apenas na relação de obras raramente mencionadas, como nas apreciações críticas
a elas devotadas. Um tema inédito que a partir de uma metodologia sem reproche,
se aprimora num texto elegante e de prazerosa leitura.
A
primeira obra estudada é o Compêndio
narrativo do peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, impresso em 1728,
em Lisboa. Embora não haja unanimidade quanto ao gênero literário a que
pertence, não há dúvida que se trata de ficção e sobremodo importante para
conhecer certos hábitos da Colônia entre os quais a música então cultivada pelas camadas de escravos e do povo, principalmente de Salvador no início
do século XVI. Como constata José Ramos Tinhorão, no capitulo XI há uma
relação de instrumentos de percussão e de
raspa que os escravos usavam nos seus rituais religiosos, os calundus, praticados na fazenda onde
viviam, cujos sons escandalizaram o narrador que ali pernoitara, sobretudo ao neles
perceber um significado que não admite deva ser tolerado. Baseado num argumento religioso de supina hipocrisia
moral convence o fazendeiro a impedir que os negros continuem a praticar o
seu culto, e numa espécie de auto de fé
de tipo criado pela Inquisição, ato
de suprema e cruel violência cultural, todos os instrumentos são queimados.
Intolerância
que, na verdade, é própria dos colonizadores, dispostos, sempre, a condenar
qualquer manifestação cultural ou religiosa que se afaste das suas, tidas por
melhores e por verdadeiras. Mentalidade que irá, atenuada ou não, perdurar ao
longo dos anos (e, sabe-se, jamais foi erradicada),
orientando, sempre, o brasileiro a apreciar somente o que vigora nos países do
tão decantado Primeiro Mundo.
Assim,
em certas passagens dos romances de Joaquim Manuel de Macedo, está presente o
preconceito em relação à música popular brasileira – lundus, modinhas – e a
preferência pelas músicas importadas, no caso as árias das óperas italianas. O
mesmo acontece nos romances de José de Alencar e Machado de Assis, cujos
personagens dançam valsas nas refinadas reuniões que freqüentam onde, é
evidente, impera o piano .Quando são outros os instrumentos citados.( violão,
viola, cavaquinho, tambu) e outros os gêneros musicais ( batuque, jongo, lundu,
fado, modinha, tirana, fandango, xiba, baião), os personagens tanto quanto os
bailes ou expressões musicais pertencem à classe popular e recebem, com
freqüência, do escritor, um tratamento em que, não apenas fica evidente a pouco
simpatia que lhes é devotada, como, por vezes, e é o caso de Júlio Ribeiro, um
forte desprezo.
Na verdade, o
desprezo pelas classes populares – quer no sentido de melhorar-lhe as condições de vida, quer no sentido de
respeitá-la nas suas manifestações artístico-religiosas – que jamais deixou de
existir ( e valham as sempre honrosas exceções), na elite brasileira. O
primeiro volume, dedicado aos séculos XVIII e XIX de A música popular no romance
brasileiro finaliza com referências
à expressões musicais presentes no romance As
voltas da estrada de Xavier Marques, publicado em 1930. De um lado, as
festas populares, com o povo nas ruas, com
floreios de flautas e algazarras de
harmônicas, ensaiando a sua alegria; do outro, a festa de aniversário na casa
do chefe político em que à valsa seguiu-se um tango. Como já o
fizera em relação a outros textos, ao apontar para essas diferenças entre as
danças e músicas populares e as de salão, próprias dos senhores da terra,
funcionários públicos, profissionais liberais e comerciantes, José Ramos
Tinhorão esboça – e se trata de uma, entre as múltiplas possíveis leituras de
seu livro – uma síntese dos brasis: verso e reverso a dizer dos que,
enraizados, são espontaneamente fiéis as suas origens e dos que, simplórios,
buscam, alhures, na imitação, as razões para se sentirem outros.

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