domingo, 28 de janeiro de 2001

Os silêncios


             Tão engenhosa e inesperada é a sua estrutura que os críticos – evidentemente, salvo as sempre honrosas, no caso, raras, exceções –  não a perceberam e O Louco do Catí, quando publicado em 1942, pela Editora Globo de Porto Alegre, recebeu uma apreciação crítica (valha o lugar comum) verdadeiramente demolidora. Os anos passados e a sua reedição pela Vertente de São Paulo (1979) e pela Ática (1981 e 1984) não foram suficientes para levar a uma leitura desse romance de Dyonélio Machado que, enfim, lhe conferisse o lugar de destaque na Literatura Brasileira que merece ter. Seja pelo imenso lirismo que transcende da figura do louco do Catí, seja pela sua concepção narrativa de uma riqueza inusual. Entre os muitos “achados” está a feitura dos diálogos, na construção do relato. Aproximar-se ao personagem que dá o título ao romance e se constitui o seu eixo narrativo, é constatar o quanto ele se subtrai ao conhecimento do leitor – a volta dele se multiplicam as zonas de sombra – e o quanto a sua comunicação com aqueles que o rodeiam é precária, quase inexistente.

            No decorrer da narrativa, sua voz, raramente, é ouvida porque responde às interpelações com um gesto. Quase sempre, um menear de cabeça para expressar ou uma negativa como quando lhe perguntam se tem conhecidos em São Paulo, se conhece o litoral, se achou algo estranho no bule de café ou uma afirmação, concordando com o que lhe dizem. Ao sair da cadeia, um companheiro de prisão o leva para um hotel. À pergunta do gerente, quando preenchem a ficha sobre a procedência dos hóspedes, o narrador diz que ele ia dizer, no caso a verdade, mas o outro, logo interrompe pois não seria ela conveniente. No dia seguinte, abandona o hotel sem dizer para onde ia o que provoca o comentário: ele fala pouco, opinião que é reafirmada por Norberto que o cooptou para a viagem e o atrelou às suas andanças : Muito pouco. De fato, ele muitas vezes deixa a frase do interlocutor cair no vazio ou responde  qualquer coisa, cujo sentido não é dado a conhecer ao leitor que, também, apenas sabe o que diz o interlocutor, como no primeiro e no segundo capítulo do romance. No bonde, ele pretende pagar a passagem com uma moeda em desuso e o cobrador diz de suas razões diante de um caso assim; no armazém, a moeda é negociada mas na compra dos cigarros falta o dinheiro para os fósforos que, então, lhe é dado por um dos que, ali, no armazém, presenciava a cena. Mais adiante, o narrador diz que o coronel falava com ele, ao se dirigir para o carro que os levaria a Caxias e lhe fazia perguntas. O leitor não sabe sobre o que falavam e nem suas respostas. E, já em Santa Maria, eles saem à noite para caminhar debaixo de chuva. O coronel não parava a conversa. Mas o inconveniente é que, às vezes, o companheiro mal o ouvia, mesmo que gritasse, devido ao barulho do temporal. – Em que mês você esteve em São Paulo? Esta pergunta saiu berrada. Um sujeito que disparava da chuva, entreparou, julgando que fosse com ele. Depois de se informar, o coronel refletiu, calculou e chegou à conclusão de que há um mês (época em que o outro passara por lá), ele ainda não se tinha movido da fronteira, para aquela sua viagem de exploração à “capital do grande Estado.”E o amigo gostou? Gostara. Há nessa seqüência a situação (os dois caminhando sob a chuva), as interpelações do coronel, envolvendo inclusive um terceiro, as próprias elucubrações e conclusões para, então, perguntar se o outro havia gostado. E a resposta não chega do inquirido, mas do narrador, resumida numa única palavra e, na verdade, o leitor não fica a saber se o louco do Catí a pronunciara. Quando, no Rio de Janeiro, os que dele cuidavam, queriam mandá-lo embora para o sul. Não lhe perguntam nada e decidem por ele, ao pedir a doação da passagem à polícia. O funcionário pergunta se ele pensava voltar por mar. Julgavam que sim, por qualquer via, responderam. Mas ele esclareceu: -Eu quero por terra e mais não disse porque não tinha nenhum outro desejo a exprimir. Assumira outra vez o ar indiferente.

            Ao se assustar com a  hospedaria em cujo pátio, com seus companheiros de viagem, ele pernoitara e que na luz da manhã, adquirira, para ele uma aparência – redutos, quartel, casamatas – ameaçadora, foge para o mato próximo. Os que vão buscá-lo o encontram, exausto, sentado num tronco. Sentem pena ao ouvi-lo dizer -Me levem que eu quero dormir e o carregam de volta. Antes, exclamara cheio de medo: ISTO! Isto é o Catí e que repete no seu desespero: - É o Catí... E, assim, inequívoca, sempre mascarada pela emoção a sua voz, quando pronuncia a palavra Catí, levado pelo pânico. Ao perceber os policiais que esperam por ele e por Norberto, seu companheiro de viagem, na chegada do ônibus em que viajavam a Araranguá, com a cara de dor e os olhos fundos escancarados para aquele aparato, sua voz é de terror: -Isto! Isto é o Catí. Em Florianópolis, para onde foram levados, ao serem trancafiados na cela, ele, encolhido, se aproxima de Norberto perguntando, com medo: -Isto não será o Catí? E, outra vez, no Rio de Janeiro, se depara com a prisão e os guardas. Tenta escapar, gritando; - É o Catí! Não me digam que não! E numa voz berrada e choramingada a um tempo: - Não me levem prá o Catí!. Mas o guarda o segura com força e o vai arrastando.

            Essa relação que ele faz entre o Catí – o “Castelo”, construído às margens do arroio, comandado por um homem que detinha um grande poder e dele fazia uso como um senhor feudal – e a violência de que é vítima (ou que outros possam sofrer, como no caso do clandestino apanhado em falta, no navio, trazido pelos marinheiros à presença do comandante) se enraíza nas histórias ouvidas nos dias de sua infância e no medo que percebeu, na família, ao conversar sobre injustiças; na visão dos maltrapilhos, descalços, cheios de medo, atados pelo pescoço, sobreviventes da degola que viu diante dele quando era bem pequeno. Quando no Rio de Janeiro, Norberto vai levá-lo ao porto para embarcar e, para isso, seria preciso antes convencê-lo, ele estava quieto. E como criança desamparada, olha para Nanci que procura vencer-lhe a teimosia e sussurra: - Eles vão me levar prá o Catí..., queixa que ela não entende e que Norberto não leva a sério, rotulando de mania que ele tem, todo esse medo que  sente, única razão que o faz falar.

E, assim, perdido sem liames, num itinerário que percorre conduzido pelo acaso e na vontade de outrem, sua figura se esboça no silêncio e nessa expressão reiterada que emerge do passado, conduzindo ambos, o calar e o gritar, a um presente subjugado à ditadura de Getúlio Vargas, num sutil enlace da criação e da realidade. O inegável registro da maestria de Dyonélio Machado.

domingo, 21 de janeiro de 2001

Olhar o vazio

         O passageiro do bonde ocupou o seu lugar e se pôs a apagar um ponto à sua frente com um olhar sem conteúdo. Desceu no fim da linha e foi comprar cigarros no armazém. Lá incorporou-se ao grupo nessa viagem breve (assim disseram), em busca do mar. Para ele, no entanto, foi bem longa e, por vezes, aziaga. Da praia, não voltou com os outros e, com um deles, seguiu para o norte. E foi preso e levado para o Rio de Janeiro; e, solto, enviado, outra vez, para o sul. Longo itinerário de ida e de volta em que entrega seus dias aos que se encarregam de decidir-lhe os passos. Um personagem, admiravelmente, construído por Dyonélio Machado em o Louco do Catí, publicado em 1942, pela editora Globo de Porto Alegre que, a exemplo de outras obras da Literatura Brasileira, foi esquecida.
         Designado por passageiro, homem do chapéu, sujeito, o outro, o viajante, o indivíduo, o desconhecido, o companheiro, o pobre, seu Catí, o louco do Catí, sua presença apenas se esboça em uma ou outra referência ao aspecto físico, aos silêncios, aos gestos, ao olhar. Um olhar que se define, principalmente, por aquilo que o atrai. Quase sempre, olha sem enxergar ou interessado no que está a seu redor, nesses espaços para onde o levam e que desconhece. Quando viaja pelas estradas olha a paisagem, olha prá frente, prá longe; cismando, põe os olhos no alto do cerro, põe os olhos no espaço. Preso, seu horizonte se acanha e olha para um só lugar, que pode ser a lâmpada da cela. Já solto, por onde anda, olha muito para tudo. Seus olhos mergulham longe na praça, percorrem as adjacências, buscam as igrejas numa atenção que se expressa, também, nos gestos que acompanham o olhar. Quase destroncava o pescoço em São Paulo para ver tudo, torcia-se para o lado e para trás para ver a igreja; cerrava os lábios,  comprimia as feições para ver melhor. Em Santa Maria, já voltando para a sua terra, ao passar diante de uma igreja muito grande, quis olhar para o alto das torres, mas a chuva o impediu de ver. Mas, uns passos  adiante, tornou a olhar e as torres, em cima, faziam-se escuras, denegridas, confundindo-se com a treva molhada da noite. E esse olhar que pode se demorar no carro-motor que adentra na estação ou se fixa, abismado, no mar, pode, também, se mostrar como de um sonâmbulo ou de um sonhador. Assim o vê seu companheiro, na prisão: estendido no beliche, de barriga para cima, as mãos inertes, o olhar sonhador, profundo, como diante dum horizonte infinito. Tranqüilidade que se esvai, quando, na fazenda, perto de Quaraí, ouve dizer Catí ( com as chuvas o arroio crescera e não dava passo) e ele, revivendo os terrores da época em que nas suas margens o coronel João Francisco cometia as atrocidades que lhe deram o epíteto de hiena  estremece e seus olhos são habitados por uma faísca trêmula onde luzia inquietação. Mais adiante, tornam, a seu redor, a falar na cheia do arroio: O Catí era terrível. Espraiava muito.  Menção que, de medo, faz com que seus olhos fuzilem. Buscando comunicar-se é o seu olhar para o médico, companheiro na viagem de navio ao voltar para o sul e que o leva passear em Florianópolis quando o navio ali atraca. Ele farejou muito todo aquele centro da cidade: a praça, a igreja, a casa de governo, a rua principal e o seu movimento. Com o focinho no ar, a capa voando ao vento forte, as vezes se retardava. O médico advertia-o. Ele então se apressava. E quando de novo se reunia ao companheiro, tinha um olhar de expectativa e de consulta. O médico, explica ser o seu desejo que ele veja tudo e que ainda tenham tempo para um cafezinho. Como acontece em todo o relato, se  trata de um interesse por ele – o médico deseja que ele conheça a cidade –  mas, no entanto, não leva em consideração o que ele possa querer ou o ritmo em que o faria. No capítulo em que as pessoas que o hospedam, no Rio de Janeiro, o preparam para enviá-lo de volta, todos tentam persuadi-lo, pois não queria viajar por mar. Ele, porém, sentado na cama de ferro, não se mexe. Alguém pensa em usar a força; outro, o engano. A dona da casa arranjara-lhe uma pequena maleta e uma das filhas faz afirmações convictas para o animar, buscando vencer-lhe a obstinação. E já enternecida com o olhar que ele lhe botava. Um olhar de pureza de criança a anteceder a queixa: “-Eles vão me levar prá o Catí..." A narrativa não diz,  mas a próxima seqüência revela que o seu desespero não obteve resposta. E, submeteu-se. Põem-lhe o chapéu. Carregam-lhe a mala e, ainda, seu  olhar impotente e doce procura a moça que, embora cheia de emoção, nada faz para ajudá-lo. O parágrafo seguinte esclarece que no porto ele foi entregue a um sujeito amigo de um daqueles que se encarregara de embarcá-lo. Mais uma vez, no seu desamparo, estará preso a quem, até então, lhe era um desconhecido.

Esboço perfeito do homem só que, em meio ao vazio que o cerca – sem identidade, sem laços afetivos a não ser os efêmeros estabelecidos ao acaso, sem história de vida – procura, pelo olhar, abarcar horizontes, a cidade, a igreja, um outro ser humano ou a si mesmo. Mas, nenhuma resposta lhe é dada e, lentamente, na mais escorreita simplicidade estilística – mostra da maestria ficcional de Dyohélio Machado – ele apenas se desenha na sua rara e inesquecível profundidade lírica.

domingo, 14 de janeiro de 2001

O nome

           O Louco do Catí foi publicado pela Globo de Porto Alegre, em 1942, sete anos depois de Os ratos, a obra mais conhecida de Dyonélio Machado. Como os romances que lhe seguiram, Desolação e Passos perdidos, verdadeiras obras primas da Literatura Brasileira, O Louco do Catí não foi, ainda, compreendido, como não o foi – a psicanálise e o mito não tinham difundidas suas teorias, diz Maria Zenilda Grawunder – na época em que apareceu. Cyro Martins que acompanhou a sua elaboração página a página, como grande amigo de Dyonélio Machado, define o louco do Catí, personagem que dá o nome ao livro, numa síntese simplista : O louco do Catí – o Homem-Cachorro – andava sem rumo pelo mundo, cumprindo sua sina triste. Um dia, sem querer, sem saber, sem nem ao menos cogitar por que, entra numa aventura, com a pouco sorte de um bicho do mato, distraído, que mete a pata numa armadilha. Depois, segue-se toda uma enfiada de incidentes pitorescos, jocosos, amargos, cansativos, tantos e tão variados, que alcançaram e extensão de um romance. Mas, em todos os episódios em que se viu envolvido, ele nunca deixou de ser o que era, uma sombra de gente, um pamonha, uma espécie de vazio deixado entre os outros.
            Porém, se o louco do Cati, viajante inocente e submisso, liame desse percurso no qual é conduzido por mãos desconhecidas, testemunha do que acontece num simplório cotidiano de personagens simplórias, é um personagem que apaixona e comove, aproximar-se aos mecanismos ficcionais que o situam no romance, leva a vislumbrar no seu autor, um verdadeiro admirável artífice da narrativa. Assim, em meio às zonas de sombra, à brevidade sugestiva dos diálogos, às pequenas histórias que se acoplam ao relato, à síntese na elaboração dos tipos e situações, à inserção de lembranças do passado no presente narrativo, o louco do Catí se constrói pelo silêncio, pelo olhar, pelos gestos, por um ou outro traço físico, pelos seus momentos de susto. Surge, sempre, apenas, em breves seqüências que o mostram, muitas vezes, pelo olhar, pelas palavras, pelas decisões dos que, por uma razão ou outra, se conduzem como se fossem seus donos, ainda que, ignorando, quem ele é. Em nenhum momento do relato é pronunciado o seu nome e, então, é designado segundo a impressão que ele causa nos outros ou conforme as circunstâncias o determinem.

 O romance tem início com a expressão O passageiro do bonde, expressão que o iguala aos demais passageiros. Porém, deles se distingue ao ser chamado de homem do chapéu. E o narrador, a seguir, o irá designando por o homem,o sujeito, o outro, o viajante, o indivíduo, o sujeito do chapéu, figura estranha, o desconhecido, o companheiro .Rótulos aos quais se acrescentam os que  lhe são dados por aqueles com quem, ainda que por breve espaço de tempo, ele passa a conviver.

 Meio maluco, presume dele o comandante do barco em que viajava, sugerindo que fosse entregue à polícia; maluco, o designa, sem maldade, pois também lhe diz nosso amigo, ou este aqui, Lopo, que o ajuda, e muito, no Rio de Janeiro quando sai da prisão. E, um, entre os que serão seus companheiros de viagem, antes que ela se iniciasse, opina: Este sujeito é meio louco. E se não o era, possuía todo o jeito. Mas, também, logo, alguém observa que isso não tem importância. Incorporado ao grupo, sentado ao lado de Norberto, no caminhãozinho, segue na viagem, uma viagem, curta, divertida, de prazer, até o mar. Mas, as estradas ruins, a fragilidade do pequeno caminhão não deixaram chegar ao mar. Já era noite quando, em Palmares, perto da casa onde lhes propiciaram algo para comer, passaram a noite. Foi de madrugada que ele, diante da silhueta da casa, contrafortes e dependências e de seu dono, grande,  grosso, cabeleira lançada para trás, bigodudo... se assustou e fugiu para o pequeno mato ali perto. Perplexos diante do acontecido, os companheiros de viagem precisam explicar que mal o conheciam, também aceitar o epíteto de louco que lhe põem, hesitando em ir buscá-lo onde se escondera. Dona Rita, a dona da casa que, pouco antes, se inteirara do acontecido, exclama: O pobre. E, assim lhe diz o personagem chamado de capitalista ou o médico do navio, pobre homem. É sua carga, diz alguém para Norberto que dele se fizera responsável e alguém hesita em chamá-lo de  maluco; ainda, há quem a ele se refira como ao outro e há o preso que o designa de amigo. Somente na página 105, das 283 que possui o romance, é que, pela primeira vez, aparece a expressão louco do Catí. Já estavam presos, Norberto e ele quando se resistiu a entrar na cadeia e, por isso foi arrastado pelo guarda que, violentamente, o jogou para dentro da cela. Apavorado, gritou que não o levassem para o Catí. Então, no dia seguinte, um dos presos, relacionando o estar fora de si com a palavra que pronunciara, o designa por o louco do Catí. Mais tarde, já livres, o doutor Lourenço Marques se admira de como é chamado. Mas Catí não é nome, acreditando tratar-se de uma abreviatura de gracinha, que se põe nas pessoas em casa... Ele talvez mesmo se chame Catarino... Como o médico é do Pará, a palavra, na verdade, um topônimo do Rio Grande – 0 Catí é um arroio – para ele, não possui o significado, adquirido nos últimos anos do século XIX, logo depois de terminada a revolução maragata quando ali perto foi construído um quartel, destinado a patrulhar o trecho de fronteira com o Uruguai, tido como o mais propenso à invasão de grupos revolucionários ali  reunidos. Seu  comandante, o coronel João Francisco se tornou famoso pelas atrocidades que praticou. Daí, também, a palavra não originar dúvidas para as crianças da casa de pouso, em Lages, onde ficou por uns tempos. Logo estavam se dando muito bem com ele e o chamavam de seu Catí, na ingenuidade da meninice e alheias à relação da palavra com o que ocorrera no extremo sul do Rio Grande há tantos anos passados. Lugar que o pai, no entanto, conhecera e que situa – Fica no município de Santana, no Rio Grande. Perto da fronteira com o Estado oriental – quando a mulher pergunta como é o nome do recém chegado.


            Nesse diálogo do capítulo Outro que conhece o Catí, se revela a excepcional maestria do narrador. Às frases, ditas em voz alta, se entrelaçam murmúrios; às interrogações, respostas interrompidas; às informações detalhadas, as zonas de sombras em que os personagens sabem mais do que o leitor ou, por vezes, igualmente, pouco sabem. E principalmente, porque as perguntas sobre o nome do seu hóspede levam ao Catí. O motorista que o trouxera e que o hospeda diz para a mulher que sabia muito: os horrores, as torturas, as perseguições, os degolamentos. Depois de reviver essas lembranças, termina a cerveja e tranqüiliza a mulher : De-certo ele nem  tinha nada que ver com o Catí. Ainda se haveria de saber...

             Porém, o que ele tinha a ver, sabe o leitor: a marca do medo que lhe ficara na alma e que por vezes, irrompe no seu presente, deixando-o transido de pavor. Sombra a alimentar o romance, sem ter um nome – que o escritor não quis dar – ele pode ser, como pretende Cyro Martins (“Um escritor aberto ao espanto” in Cadernos de Porto & Vírgula, Porto Alegre 1995), o símbolo de  toda uma legião de vitimas da violência ocorrida no Catí. E Cati, igualmente, pode ser no romance de Dyonélio Machado,  a metáfora do país sob a ditadura de GetúlioVargas. Como, também, um possível  símbolo dos que sofrem danos e perdas advindas da desordem social. Que é a lei que impera no Continente.
 

domingo, 7 de janeiro de 2001

O Retrato 3

 
            O banco, pintado de branco, é de madeira. Há uma árvore de longo tronco, uma sebe cheia de flores, um céu sem nuvens: o cenário onde se inscreve a imagem de Delmira Agustini que, absorta na leitura de um livro, se deixa fotografar.

            Omar Prego Gadea, no romance Delmira (Montevideu, Alfaguara, l996), ao seguir os passos da poetisa uruguaia, nos seus últimos dias de vida, prendeu-se a um punhado de papéis, à lembrança no coração de alguns, à imagens que fixaram o fugidio de um instante.

            Ao se deter nessa foto de Delmira Agustini, se esquiva de precisões – deve ser verão ou primavera porque não há folhas secas na grama e brancas ou amarelas parecem ser as flores que enchem a sebe e, provavelmente, de poesia, o livro que Delmira tem nas mãos. E, também, provavelmente, foi a poucos metros dela, que o fotógrafo instalou o seu tripé para se esconder sob o pano preto que o protege para operar sem temor no seu reduto inacessível à luz e observar esse mundo ao contrário [...]. O romancista lhe fixa o gesto que fará com que o diafragma se abra e se feche num rápido instante para dar passagem à luz, às formas, às sombras [...] que irão mostrar Delmira como ela, talvez, o tenha desejado, entregue à paz de estar sozinha, um livro aberto entre as mãos. Ela era jovem e, anos depois, foi encontrada morta, num quarto barato de pensão, ao lado do ex-marido agonizante. Conjecturas, invenções, falsidades estiveram presentes nos relatos e crônicas que noticiaram o fato e, desejando, quem sabe limpar a lembrança de sua amiga de tantas torpezas, Alberto Zum Felde, respeitado critico literário, escreveu o que o romancista define como uma espécie de oração fúnebre na qual afirma que os jornais, ao encherem as páginas para informar sobre o crime do qual Delmira fora vítima, não tiveram respeito, nem piedade na busca de um sensacionalismo realista no qual a parte mais odiosa coube à fotografia. 

            O romancista opta por descrever uma delas em que a poetisa aparece num ignóbil primeiro plano, estendida no chão, com o rosto para o teto. Tirada de um ângulo no qual a desordem dos cabelos parece invadir o olho procaz da câmara, mostra um de seus braços alongados no chão ensangüentado, o outro sobre o peito e as pernas um pouco dobradas. Nenhum outro detalhe lhe interessa. No entanto, na busca de apreender os enigmas dessa vida sobre a qual se debruça, se permite imaginar a serenidade que, morta, Delmira Agustini parece invocar e que, talvez, se deva à postura desinteressada de ausência, escolhida para esperar a morte, essa morte trágica, por ela pressentida desde a infância cujo rosto esquivo tinha aprendido a conhecer e a tolerar ou admitir.

Estabelece, assim, e, fortemente, um laço entre a imagem que vê e o que pensa ser verdadeiro: essa espécie de visão fatalista da vida que ele atribui à poetisa. O que foi e o que poderia ter sido, se entrelaçam, então, nesse atribuir de significados, exigidos pela sua elaboração ficcional, aos retratos de Delmira Agustini, que, no entanto, permanecem no limite difuso de sua enigmática história. Instrumentos de fixação da memória, esses retratos, ao mesmo tempo que permitem a fabulação emocionada e soberana de Omar Prego Gadea, também a ele se negam a liberar os seus segredos.