domingo, 31 de dezembro de 2000

O retrato 2


            Para seguir-lhe os passos nesses seus últimos dias de vida, em que, aparentemente submissa a um cotidiano morno e regrado pelo ritual familiar, Delmira Agustini escondia suas ânsias e paixões, Omar Prego Gadea se ampara em notícias de jornal, em cartas, em testemunhas, em informes oficiais. Cria um itinerário entremeado de sombras, os definitivos mistérios que envolvem a poetisa. Diante deles, o romancista se vê impotente,deixando-se levar, no seu elaborar romanesco, a suprir com a imaginação – enredada, no entanto, a todo esses documentos em que se apoia –   alguns vazios. Brinco de imaginá-los sentados em torno à mesa, diz numa das primeiras seqüências de seu romance Delmira ( Montevideo, Alfaguara, 1996) ao recriar esses momentos em que o pai e a mãe a esperam para o café da manhã para o qual ela se retarda ao passar mal as noites desde que  se separara do marido. Nesse último encontro da manhã aziaga em que foi condenada à morte, Omar Prego Gadea os descreve a partir das fotos: a do pai, que descobriu num velho baú,  vulgar e resignado, [...], dando as costas para um edifício que bem poderia ser o Hotel de Pocitos, a cabeça coberta por um chapéu de feltro empinado, provavelmente verde ou cinza, o pescoço alto e rígido, a mão esquerda apoiada numa bengala, como um cego absorto, o largo bigode esparramado e ereto como se sublinhasse o triste rosto de quem há tempo admitiu a derrota. Não mais fixando trajes e gestos, a mãe que ele presume, excessiva, sempre alerta na sua função de sentinela dessa mulher condenada por ela a viver uma infância eterna [...]. E Delmira, como aparece nos seus últimos retratos, já entrada em carnes mas ainda bela [...].

            Depois, ao longo dos meandros de seu relato, vai se detendo nas imagens que o acaso ou o desejo de preservar um instante passageiro, fixaram de Delmira: breves retalhos de sua vida, salvos, ainda que por algum tempo, do desaparecimento.

            Pelos olhos do noivo que, em visita, a espera, na sala de sua casa, caminhando entre os móveis se detém diante do retrato de Delmira ainda criança, o narrador a mostra toda vestida de branco, os desafiantes olhos fixos na objetiva. Umas páginas além, a partir de uma foto em que aparece já moça, irá descrevê-la sentada num banco de madeira pintado de branco, usando um chapéu de franja branca sob o qual o seu cabelo parece negro e sombrio, uma ampla blusa decotada e uma saia pelos tornozelos azul ou esverdeada para combinar, como ela gostava, com os seus olhos. Tirada na chácara de um amigo, as flores claras e o céu azul altíssimo, transparente, sem nuvens, que  lhe compõem o cenário, fazem crer ao romancista que era verão ou primavera avançada e que era de poesias o livro que Delmira tinha entre as mãos, absorta na sua leitura e alheia ao que se passava a seu redor. Torna o romancista, em outra seqüência, a mencionar essa foto, atribuindo-lhe uma data, 1913, acrescentando que foi publicada na revista Fray Mocho de 16 de maio e que nela Delmira aparece sentada num longo banco branco de madeira, lendo sob um inequívoco sol de verão.

            Esse recurso de mencionar duas vezes a mesma foto, ocorre,  igualmente, ao se referir à que foi tirada num baile do Club Uruguay e à da cerimônia de seu casamento. Assim, o narrador a  descreve num primeiro plano, com uma fita no cabelo, de braço com seu noivo [...], esperando o clique do magnésio. Está rodeada de outras pessoas, que também fixam a câmara, salvo um jovem militar, em uniforme de gala, que aparece de perfil com os olhos fixos na poetisa. Páginas antes, o narrador falara dessa foto, publicada no jornal El Día, dizendo que em primeiríssimo plano aparecem Delmira e seu noivo. Ele, pouco à vontade no seu fraque, olhando para o vazio. Ela, vestida de branco, os esplêndidos cabelos presos numa fita, olha para a câmara e faz um gesto com o enluvado braço direito como se cumprimentasse alguém. De perfil, um  garboso militar .

            Também, em duas seqüências, se refere à foto do casamento. Primeiro, informando como foi encontrada, quarenta anos depois, em meio aos documentos do espólio de Delmira. Logo, a mencionar esses recortes que a adulteram, deixando vazios (o noivo, a menina que segurava a cauda do vestido e as damas de honra) perto da noiva, de sua mãe, de dois convidados e de seu irmão.Muitas páginas adiante, o narrador observa, uma vez mais, como se quisesse gravar essa cena para sempre e poder voltar a ela sem ajuda alguma a fotografia oficial do casamento. Nela, Delmira, com uma expressão indefinível no rosto, de braço dado com o marido, ladeada pela mãe e pelo seu padrinho, o poeta Juan Zorrilla de San Martín, é parte de um grupo onde todos estão sérios e com expressões taciturnas, exceto Manuel Ugarte que, atrás dos noivos, entre ambos, olha com arrogância e desafio para a câmara.

            Como as palavras inscritas em cartas no expressar de uma emoção, como as outras,  testemunhando fatos, ou aquelas pronunciadas pelos que da poetisa guardam lembranças, os retratos de Delmira Agustini se oferecem para esboçar o seu viver. Omar Prego Gadea, ao entrelaçá-los na história da poetisa que relata no que sabe e imagina no que ignora, reitera a riqueza de seus segredos na tentativa impossível de desvendá-los.




domingo, 24 de dezembro de 2000

O Retrato 1

            - A doutora Maria Cristina esteve aqui, conversou com a avó, cascavilhou papéis velhos, cismou com um retrato, e foi embora sem me dar importância! É a queixa de Nozinho para a sua tia Dona a quem vai visitar para, com ela, entrelaçar lembranças do passado. Dona, já velha, poço em que estão mergulhadas as histórias da família que ela, diante de quem deseja fazê-las emergir, se  nega a contar.  Ao ouvir as palavras do sobrinho sobre esse retrato de que fala, Coisa muito antiga. de um casamento que se realizou em 1908, se obriga a perguntar de quem foi e a resposta a deixa perplexa quando percebe que a menção ao noivo, que fora seu primeiro namorado, a possa perturbar. Nozinho não lhe nota o susto e continua a falar do retrato que ela conhecia tão bem, pois o olhara muitas vezes, motivo para poder reconstrui-lo, porque o outro, o principal, era a emoção de reviver essa tarde festiva de um sábado já ido.

            Assim, pela palrice de Nozinho e pelo que aflora à mente de sua tia Dona, a foto renasce nas  palavras ditas e nas que foram caladas. Em torno dela, serpenteia o relato pela voz de Nozinho, ao contar à tia o que diz Maria Cristina e pelo que, a partir de suas palavras, a tia imagina. Ao ver todo o grupo de gente que foi ao tal casamento,  Maria Cristina notou os cabelos louros e lisos da avó, presos atrás da orelha por uma fivela. Elogiou o bem vestir das mulheres (os vestidos parecem brancos, com  blusas de folhos franzidos), todas bem penteadas  (os bandós bem assentados ao lado das cabeças) e, curiosa, perguntou muito, se fixou em detalhes, deixou de reparar em outros, alegrou-se ao descobrir a figura do avô. De repente, mudou. Ficou séria. Fez silêncio e encarou a avó. É o que diz Nozinho a sua tia Dona. Menciona que todos riram muito diante da figura de um parente ameninado e desengonçado, repetindo o que disseram, o que significa ter ela visto a foto junto com outras pessoas além da avó: que ela achou tudo muito bonito. No parágrafo seguinte, Dona passa a lhe imaginar os gestos e as reações, a segurar o retrato  e olhar, fascinada, para a figura de um homem que parece ocupar um espaço maior do que os outros. Embora enxergando bem, pede a lupa e mais a imagem se agranda, mais impressão lhe causa. Ela repara, observa, atenta, nota, e a figura vai se completando, no descrever, detalhado da roupa, no desenho dos gestos, no rápido traçar do rosto e da expressão. E concluiu que ele fora surpreendido em momento de elegante inquietação – ao contrário das outras pessoas do grupo, que posam obedientes e abestalhadas, olhando de frente para a máquina fotográfica. Mas Dona também imagina que Maria Cristina tampouco deixou de vê-la, no retrato, em que se mostra imóvel e hesitante, no assombro que os gestos do audacioso cavalheiro lhe causava. E se descreve no olhar que a observa: a testa, o nariz, a boca, o queixo, o meio-riso complacente e o penteado e o vestido branco de cambraia, enfeitado por um lenço escuro e severo. Então, retorna a essa tarde de sábado em que foi retratada com o grupo,  entre o querer fugir e o se deixar fotografar, parada, com os olhos no homem, extasiada, e como ele , rebelde à ordem de olhar para a máquina, ao se fixar na  sua nuca altiva, coberta de cabelos lisos e escuros, adivinhando a intensidade de seus olhos cor de um azul próximo ao anil, que não herdara dos Correa de Araújo (nessa família, eles se faziam sempre claros, celestes, meio aguados, bem diferentes dos dele, firmes, intensos, inquietos, desafiadores). Olhos que não furtavam cor como os de Antônio Cavalcanti: eram definitivos.  Ao constatar a beleza de um rosto perfeito, curioso, inquisitivo,  acrescida de rara elegância no vestir: o corte perfeito da roupa e a camisa alvíssima e a gravata borboleta e  o correntão de ouro . O Major Manuel Henrique, informa a  avó Agripina para a neta, acrescentando ter sido o  homem mais elegante que conheceu. Maria Cristina ainda se maravilhando, exclama: -Vejam como se destaca do grupo! Parece um príncipe! Por que estará segurando a gola com tanto esmero? Mas, ninguém, entre os que a rodeavam, saberia  lhe responder. Como também ficou sem resposta a identidade da moça magra que aparecia de perfil. Porque Dona, embora sabendo-se detentora, a única, do significado do gesto que provoca a pergunta não se presta à confidências. E Nozinho, ainda que pense ser da tia Dona o perfil enquadrado no umbral da porta, nada diz, reiterando: Ela não me deu a devida atenção à minha pessoa. Silêncios a povoar de ausências, para os que desejam desvendá-la, essa imagem reencontrada que, no entanto, se revela ao leitor por um desses recursos formais (tempo, vozes, zonas de sombra que se misturam) que tão prodigamente constróem a narrativa de Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque para fazer deste seu segundo romance (Luz do abismo, Recife, Bagaço, 1996) um rico e sinuoso tecer de histórias..

domingo, 17 de dezembro de 2000

Os espelhos da alma

            São histórias reais, são personagens reais que lhe motivam o narrar. Com maestria, entrelaça o tempo, as vozes, os episódios num dizer escorreito que se enobrece com imprevistas e expressivas invenções. Breves histórias se sucedem, se precisam perfis. Uma galeria de seres submissos às emoções e às próprias verdades que se mostram pelos seus quereres e pelo seu sentir na longa história das famílias que Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque  - É outra contadora de histórias. Deseja ser poeta -  redime da aridez de uma árvore genealógica e do esquecimento em Luz do abismo, que a Bagaço, de Recife, publicou em 1996. Um romance de personagens  que Dona e seu sobrinho Nozinho, os dois interlocutores guias da narrativa, fazem renascer das suas lembranças. Obedecendo a esses modelos, enraizados num ou noutro ramo da família – os Cavalcanti,  de pele muito branca e de cabelos e olhos escuros ou de pele menos alva e os olhos mais claros, esverdeados ou furta-cor e os Correa de Araújo, alvos e de olhos de um azul claro, ou miúdos e escuros – ao destacarem, um deles, de seu grupo, quase sempre, as referências ao tipo físico são preteridas pelas palavras que pronunciam, pelos gestos, que esboçam, pelas situações em que se envolvem. Longos são, muitas vezes, os monólogos a conduzirem a narrativa onde as descrições se fixam em algum detalhe para definir um tipo: Nezinho Jaca, sempre bonachão; Sinhazinha, engraçada, meiga, quase doce; Antônio, dono de uma bela barba bem talhada e brilhante, lisa, lustrosa e acastanhada; Maria Cristina, de mãos  desabrochadas, plenas, investidas de gestos majestosos, alvas, longas mãos de uma santa, místicas, altivas, dramáticas. Neles, os gestos e os atos e as situações – Chiquinha a expulsar o marido de casa; Pedro, tentando matar os filhos para então, se suicidar; Sinhô e Sinhozinho, se enfrentando num duelo; as noivas, esperando o amanhecer para dar conta da troca dos maridos; os desacertos, por  doações de terras – refletem não só  temperamentos e visões de mundo mas as próprias leis que regem esse mundo.

            Porém, o que, deveras, diz melhor dos personagens são seus olhos e o seu modo de olhar.  Mostram-se como são: os olhos azuis de Dona e de Isabel, os olhos irrepreensivelmente azuis do filho de Joaquim, os olhos de Joaquim, cujo azul muito estranho, lhe rendeu o apelido de Guabiraba porque só na sua flor é que Bentinha encontrou a nuança comparável à cor de seus olhos e nos inusuais tons de alourados e dourados. Ou como se tornam quando à mercê de um sentir:  vazios, baços, profundamente tristes, brilhantes, expandindo e clareando a seu redor, capiongos, indagadores, embaciados, pedregosos, duros como caroços secos, engastados em órbitas poderosas. E, belamente cambiantes, cristalizando sentimentos como ao relembrar um acontecimento do passado que, de aparente drama, passou à comédia, os olhos de Maurícia, agateados, cintilavam sem furtar a cor. Assim, agateados furtavam cor, comandados pela emoção, os de seu filho Antônio que ficam  acinzentados quando embrabece, numa discussão, e faíscam como se estivessem dourados. E há quem os tenha secos, brilhando excitados; quem os tenha gozados, tremeluzindo em tons de prata e mel; quem fale com firmeza enquanto medo e insegurança lhe nadam nos olhos escuros; quem, morrendo, caído no chão, os tenha citrinos, cintilando de espanto; quem sofrendo, intensamente, os tenha secos e ásperos como nunca.  E, expressando toda uma gama de emoções,  o olhar. Um olhar que se define por adjetivos ( curiosos, enigmático, sereno e direto, mortiço, brilhante, inquieto, feito de entusiasmo e ingenuidade) que, embora prosaicos, se enriquecem num entrelaçar lírico do relato como o adjetivo cristalino, atribuído ao olhar de Sinhazinha, morta aos dezessete anos ao lhe nascer o primeiro filho: Feia não era, nem havia em seu olhar cristalino qualquer prenúncio de tragédia; um olhar cujo matiz é dado por um verbo, como na seqüência em que a narradora ouve a história das noivas trocadas, contada pela avó e percebe que, finalmente, irá conhecer o motivo secreto daquele riso esguio e malicioso que lhe aloirava o olhar. O mesmo verbo, usado em outro momento do relato em que, após a discussão com seu filho, na cadeira de balanço, ela se embala ancha, satisfeita da vida, agora descuidada do rubor de satisfação que lhe coloria as faces, e da luminosidade que vadiava em seus olhos, aloirando o seu olhar. Um olhar que o adjunto adnominal determina: ao perder a mulher que lhe dera nove filhos, o sofrimento de Pedro é comparado à mesma agonia prateada de um peixe subitamente arrancado do riacho se estampa em seu olhar de cascalho e mica.

            Olhos e olhares, descobrindo segredos e caracteres num texto de suma beleza como na seqüência em que a narradora lembra seu primo Pedro, casado com Táti. Eram muito diferentes os dois, Táti e Pedrinho. Ela encarava o mundo com os olhos  úmidos de comiseração. Ele deixava-se levar pela amargura, que fustigava seus olhos pedregosos e secos. Não sei mesmo onde foi que Pedro foi buscar aqueles olhos pétreos. Em Antônio não foi, pois ele os teve sempre agateados, brincalhões, quase maliciosos – florentinos. Nem em Dona, que sempre se enfeitou com seu doce olhar desbotado. Fico pensando que a fonte de sua secura foi o seu próprio nome, ou – a despeito das terras do brejo – os espinhos esturricados das caatingas que se alastram pelo lugar onde nasceu. Contudo, apesar de carentes de frescor, seus olhos secos tinham brilho. Tremeluziam como as cintilações do cascalho e da mica em que foram esculpidos. Uma luz prateada – agonia de um peixe sob o sol – escondia-se, contida, entre as duras lâminas da rocha. Nunca choraram. Espelhos da alma que somente a maestria estilística e o conhecimento profundo das almas permite revelar. Itinerário que Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque é exímia em percorrer.

domingo, 10 de dezembro de 2000

O valor das coisas


            No intrincado refazer de uma genealogia em que duas famílias se unem e se desunem em laços e nós comandados por interesses e por conveniências, eventualmente, por afetos, como breves ilhas, emergindo num caudal de nomes e sobrenomes e parentescos, textos exemplares de um lirismo que vai além do traçado de um perfil para mostrar seres humanos nas suas emoções mais sentidas e verdadeiras.

            O relato de Luz do abismo (Recife, Bagaço, 1996), desrespeitoso pelas leis do tempo, reconstruindo fatos através da memória, de vozes que se alternam, se ilumina, então, ao se deixar ir pelos caminhos das sensações, como preconiza Dona, a principal narradora, em vez de guiar-se pela inteligência. Assim, as seqüências dedicadas ao xale de casimira da Índia. Sua dona foi Maurícia, uma das matriarcas da família que, segundo um dos filhos, foi uma mulher teimosa e imprevisível. Já velha e com o lado do corpo paralisado por uma congestão, não se privava das visitas aos parentes. Fazia-se carregar por quatro negros numa rede e protegida por uma enorme sombrinha, chegava com chá de erva doce, sequilhos, bolos de goma, beijus, beiras-secas, castanhas e passas que oferecia ao parente visitado. Num dia de inverno, chega na casa de um dos filhos com o aparato de sempre e envolta no seu xale de casimira da Índia. Sua neta, Dona, muitos anos depois, o descreve como uma peça antiga, com seus ricos matizes de cores um pouco gastos. Uma penugem esbranquiçada largava-se pelo tecido, esmaecendo a estamparia, composta de rosácea, em vários tons de rosa e roxo, sobre um fundo acinzentado que dava ao olhar apenas a impressão de ser velha e aconchegante. Mas, o aproximar-se dele, e então o relato assume uma primeira pessoa plural, permite aspirar-lhe o cheiro de lã, guardada em cedro e perceber detalhes: medalhões dourados, muito rarefeitos, salpicados com sábia parcimônia por entre as rosáceas desbotadas. As palavras que seguem, se afastam do traçar cores e formas para anotar  as vibrações que dele emanam, advindas das emoções que absorve e que ele é incapaz de armazenar: essas lembranças no tênue entrelaçamento de sua lã à espera que a memória de alguém lhe resgate as cores e os sentimentos do passado. Palavras que tornarão a aparecer, mais adiante, quando a avó, em meio a uma história que estava contando, embrulha as mãos friorentas e reumáticas no velho xale. E a narradora torna a defini-lo e a estabelecer com ele seus liames de afeto: Denso de lembranças entranhadas em seus fios, com um perfume abstrato, suas cores antigas pareciam esperar o merecido resgate. Voltando a sentir o seu cheiro de lã velha, guardada em cedro, me comovi.

            Mas, os anos, as mortes, os direitos de posse no parentesco entrelaçado, acabaram por apagar o itinerário do xale que torna a aparecer, já desbotado, velho, com a penugem prestes a se soltar. Porém, aos olhos que o haviam visto outrora, ele continua habitado por lembranças, à espera de redenção. Nesse dia, que a narradora precisa ser lá pelos anos de 1947, envolve a criança adormecida no colo da mãe, sentindo o gosto do doce de leite que o bisavô lhe havia posto na boca. Os  olhos que lhe observam o rostinho, se dão conta do bem-estar e da felicidade que está sentindo e que o xale a reverbera,  resgatado  na lembrança que , por certo, irá perdurar na criança que mal o percebeu, entre o gosto do doce e o cheiro de coisa limpa. A criança é Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque,  autora  do romance e que dá a sua voz para Dona, a narradora, assim como lhe concede essa bem-aventurada lembrança para que a velha parenta a cristalize junto com as da sua própria meninice. Um recurso narrativo a envolver vivências que se entrecruzam, tendo de permeio, gerações e que, a par de outros que a habilidade da romancista enriquece com o inventivo uso de expressões, constroem uma obra instigante e bela e pontilhada de matizes líricos. Um excepcional momento da ficção brasileira. Desde que as leituras, no país, não optassem, como é de hábito, pelas traduções do que se lê no hemisfério norte como o demonstram, sempre, as listas dos “mais vendidos”.

domingo, 3 de dezembro de 2000

Pequenos nadas

            Em 1986, Laury Maciel publicava o seu primeiro romance, Noites no sobrado. Até então, fora autor de contos, reunidos em 1977, no livro Corpo e sombra e, cinco anos depois, em O homem que amava cavalos. Seguiram-se, ainda, A noite do homem-mosca  e Rosas de papel crepom, um romance ambientado em Mundo Novo, pequena cidade interiorana  onde, também, se abrigam os personagens de Pedra dos anjos,  que a Mercado Aberto, de Porto Alegre, acaba de lançar. Um espaço apenas mencionado porque neste último romance de Laury Maciel o que realmente conta é o personagem narrador e o seu drama de existir. Um drama que, em efeito, se faz de pequenos nadas que ele alimenta para transformar em sofrimento.

            Ao iniciar o seu relato, já a vida passou e o que poderia tê-lo feito feliz, ele mal percebeu, submisso a seus ciúmes e à incapacidade de assumir a própria vida. Diante do jardim de sua casa, invadido pela erva daninha, pelas aranhas, formigas e lacraias, destroçando o que foi o seu universo, e dono de seu tempo, recorda o passado no qual importa, apenas, o que viveu com Patrícia Emília. Primeiro, a menina adolescente, depois a noiva, logo a mulher. É através de seus olhos, presos naquela divina criatura, que ela emerge da narrativa em verdadeira sinfonia de delicadezas: pequeninas mãos, castos joelhos, pernas imaculadas, pezinhos muito brancos, belo rosto pálido, cabelos loiros. O mesmo olhar que lhe completa os contornos, vislumbrando-lhe uma sensibilidade a flor da pele que ordena lágrimas e soluços, explosões de ternura, a palidez doentia, os vincos fundos das faces e, sobretudo,  a mostram dúbia e indecifrável. Porque o narrador, inseguro e confuso, fechado nas suas razões, lhe atribui sentimentos, lhe interpreta os gestos e a rodeia de suspeitas e desconfianças que se aninham na sua alma quando Patrícia Emilia elude um convite para o cinema ou para um enlace amoroso, quando sonha com Octávio, o amigo compartilhado ou lhe prepara doces ou lhe tricota agasalhos ou fica alegre com suas cartas ou triste na sua partida. Ela, pressentindo-lhe as perguntas não formuladas, as friezas inexplicáveis, sofre, ainda, a humilhação de não apenas ser acusada em carta anônima de traição mas, sobretudo, de constatar que o marido lhe dera crédito. Tenta lutar contra o vazio que se instala a seu redor mas é vencida pela tristeza e se deixa morrer. Com ela morrem os amores-perfeitos do jardim e, se houve, algum segredo seu. Pois  a verdade, não é deslindada nesse narrar feito de pequenos nadas: uma flor seca a cair, se desfolhando, os segundos em que dura um olhar, uma entrega inocente, sem culpas, o inesperado aprendizado do amor, a alegria da carta recebida ou o temor de recebê-las e o sempre renovado medo de ser feliz a se alimentar de falsos ou reais indícios que o ciúme inventa.

            É um livro cruel diz Maurílio, o narrador, sobre Dom Casmurro que tentava ler e em cuja leitura, uma tarde, mergulha sem mais razões. O romance que, um dia, fora assunto de conversa entre Patrícia Emília e Octávio que chega,  interrompendo a visita que ele fazia à namorada. E’ sob sua égide que se esboça o triângulo amoroso no embaralhar de indícios de uma infidelidade que o ciúme, ora a constatar ou a inventar, faz emergir. Esse confessado preito à obra prima de Machado de Assis mostra um Laury Maciel muito firme e muito convicto na arte de romancear, sem medo de enveredar por trilhas conhecidas porque sabe inová-las e oferecer um percurso prazeroso e pontilhado de emoção.