Charqueada grande.
Um talho fundo
na carne do mapa:
Américas e África
margeiam.
Um navio
negreiro como faca:
Mar de sal,
sangue e lágrimas no meio.
Um sol bem
tropical ardendo forte,
Ventos alíseos
no varal dos juncos
E sal e sol e
vento sul no corte
De uma ferida
que não seca nunca.
Oliveira Silveira
Com vinte e um anos, Oliveira
Ferreira da Silveira, publicou, em Porto Alegre, em edição do Autor, seu
primeiro livro de poemas, Germinou. Seguiram-se muitos outros: Poemas regionais
(1968), Banzo, saudade negra (1970),
Décima do negro peão (1974), Praça da palavra (1976), Pêlo escuro (1977). E, em
1981, Roteiro dos tantãs. É uma pequena obra com pouco mais de vinte páginas de
sugestiva capa em vermelho e preto sobre fundo branco onde a palavra tantãs
aparece dividida nas suas duas sílabas a indicar esse barulho produzido por
batidas repetidas. Precedida da palavra roteiro, ocupa a metade da capa que é
completada por figuras de tambores, crescendo em diagonal, numa bela criação de
Willy Soares da Costa Filho. Reafirmando a composição gráfica, o título a significar
um caminho a ser percorrido, um itinerário de tambores, dos seus sons. O
primeiro poema, “Tantã”, define esse som: voz do ser, feita das profundezas do
chão, do sofrimento que entra nos ouvidos, ecoa no mais íntimo do ser. É a
emoção do poeta, confessando as raízes, atendendo ao chamado dos irmãos no
poema “Vozes”, descobrindo os seus e se descobrindo no poema “Ancestral”. Uma
primeira pessoa que se multiplica nesse encontrar das trágicas origens:
malditos objetos/troncos e grilhetas [...] no leste/no mar de imundos
tumbeiros. E, no poema “Elo”, enfim, clara, inevitável, definitiva a palavra
África, a outra extremidade do cordão: espaço despojado é um ímã que atrai a
parte dos humanos que dela foi roubada, provocando neles um desejo de retorno e
que se instala no peito do poeta ( mãe/eu quero me repor dentro de ti),
resultando daí uma assunção de verdades – ritos, cor da pele, cantos – que o
irá igualar aos seus semelhantes do Continente e, então, clamará pelos negros
de Cuba, do Haiti, dos Estados Unidos nesse destino comum de sofrimentos e
humilhações, marcado, sempre, pelo silêncio. E é este silêncio que Oliveira
Silveira, com a tenacidade que faz de seus livros de poemas, Edições do Autor,
e com o dom de poetar que lhe foi dado, quer romper. E, do extremo sul do país,
nascido que é nos arredores de Rosário, espalha seus versos. Eles se ancoram no
repetir de um som – batuque lamento e teimosia – para se fazer testemunho do
que foi ( cara lanhada, alma rasgada ,sangue vertido e ultrajado, marcas no punho)
e do que é (ser negro e proletário/é levar carga dupla). Para almejar um basta
das tristezas ignóbeis e perenes desse presente que é intocável. Como fagulhas,
a revolta e a raiva se abrigando nesse ter consciência do próprio fado e do
fado dos que o precederam (vítimas da ignomínia, povoando o Continente), a se
liberar em palavras ponteagudas de ódio justo, inequívocas nas suas razões,
comoventes nesse lirismo que traduz mil vozes.
Ao todo, são quarenta e dois poemas.
Simples, evidentes. Breves narrativas cristalizadas em beleza, reflexões
rebeldes, doloridas queixas num poetar em que se alternam versos da mais cotidiana das linguagens com outros,
elaborados e impiedosamente sugestivos.
Porque Roteiro dos tantãs sabe o que
persegue e, também, é um roteiro das verdades. Dessas que não devem e nem
deveriam jamais ter sido caladas.
Principalmente, num país de senzalas.


