domingo, 30 de julho de 2000

Os contemporâneos.



                          Houve quem o tivesse previsto: o reinado dos objetos em detrimento dos seres humanos. Um desvio de comportamento que se instalou nas comunidades ricas, ao se submeterem às desregradas necessidades de consumo que não permitem distinguir o necessário do imprescindível ou do supérfluo. As mesmas comunidades que, apenas, tem condições de avaliar o que quer que seja a partir do que a mídia, cotidianamente, determina. Assim, olhar para o mundo e vê-lo nas suas pequenas coisas, é algo de extremamente raro neste tempo em que a máquina foi aceita como real e verdadeira portadora de emoções.

            No dia 22 de agosto de 1970, Mário Quintana publica seu poema “As coisas” (Caderno de Sábado do Correio do Povo de Porto Alegre). Uns poucos versos, quase prosa, na simplicidade da voz que se eleva para uma presença silenciosa que o poeta chama amiga. A ela se dirige para  uma afirmação que, embora expresse o seu sentir, ao usar as palavras encanto e sobrenatural pode se apresentar como um axioma: O encanto  sobrenatural / que há / nas coisas da natureza... Prossegue, argumentando, que se a natureza provoca espanto ou temor não é por maldade ou por falta de beleza. Então, se aproxima da amiga para lhe dizer em segredo um dos grandes segredos do mundo cuja enunciação (Essas coisas que parecem / não terem beleza / nenhuma...)  advém breve, coloquial, quase evidente antes de alcançar a perfeita expressão lírica do poema contida na explicação: é unicamente porque / não houve nunca quem lhe desse um olhar. Explicação que o  poeta, ao repetir o verso e lhe acrescentar ao menos e um segundo e estabelecer pausas entre um verso e outro, torna mais intenso o vazio, a ausência, a solidão: não houve nunca quem lhes desse / ao menos/ um segundo / olhar.

            E o olhar, que pode conter um mundo de significados, em Mário Quintana é o elo que o relaciona com esse mundo das imensas miudezas que lhe são tão caras.


            Em maio desse mesmo ano de 1970, o poeta já disso dera provas ao publicar Poema olhando um muro”(Caderno de Sábado do Correio do Povo). Os primeiros versos, narrativos, dizem que do escuro de seu quarto, na imobilidade de um gato, ele espia  a lagartixa verde sobre o muro: mal sabe ela / da sua graça ornamental, daquele / verde /intenso na lividez mortal / da pedra. Logo, se volta para si mesmo, interrogando-se sobre as suas buscas numa eterna espreita, afastando-se do ponto de partida do poema: esse olhar que se detém em algo prosaicamente humilde, uma lagartixa verde que está ali, existindo, alheia a seu próprio encanto que na verdade, emerge ao olhar do outro.

            Como os outros poemas de Mário Quintana, nos quais se mesclam ingênuos temas do mais puro cotidiano com os que indagam da condição humana, o “Poema olhando um muro” diz muito mais do que seu título ou os seus primeiros versos possam sugerir. Evidentemente, não para aqueles que diante de tal leitura são levados a se perguntar por que ler sobre coisa nenhuma?. A eles, Mário Quintana aconselha que se limitem às suas atualidades. E, no “ Caderno H” de 16 de maio de 1970, ele conta um pouco ingênuo, algo trocista: Um dia um desses atualizados me chamou às contas: Por que você não deixa dessas coisas e não escreve para seus contemporâneos? E Mário Quintana, o poeta ungido pela magia do lirismo e da beleza, se interroga: Mas como é que vou saber quem são os meus contemporâneos?.

domingo, 23 de julho de 2000

Ofício de Poeta. 3


Eu ponho a minha alma onde quero
E não me nutro de papel cansado
Adubado de tinta e de tinteiro
Nasci para cantar a Stalingrado. 

            No dia 30 de setembro de 1942, Pablo Neruda dá a conhecer o seu “Canto  a Stalingrado”. No dia seguinte, o poema, impresso em cartazes, está espalhado pelos muros do  México, cidade onde os poetas, nessa década tão cheia de tensões, eram, como os considerava Pablo Neruda, apenas formalistas. Daí a polêmica provocada pelos seus versos no jornal Novedades. Como resposta, o poeta chileno leu, num banquete, o seu “Nuevo canto de amor a Stalingrado” que a “ Sociedad Amigos de la URSS” publicou no ano seguinte e que, mais tarde, fará parte de Tercera residencia (Buenos Aires, Losada, 1947).
            As três primeiras estrofes, das vinte e oito que compõem o poema, dão fé do que foram seus versos antes de España en el corazón: um refúgio para as tristezas do mundo. Diante do que presenciou em Madrid quando o General Franco, apoiado por Hitler e por Mussolini, se propôs salvar a Espanha da República, da alfabetização, da democracia parlamentar, da liberdade de consciência e da justiça social a sua poesia tornar-se-á uma arma de combate.(Monegal, Emir Rodriguez.)El viajero inmovil,  Buenos Aires, Losada,1966.) 

            E em “Nuevo canto de amor a Stalingrado” que Pablo Neruda sabe irá indignar poetas, poetrastos, críticos e intelectuais conservadores, enunciará  esse novo caminho que pretende sem entraves (eu ponho a minha alma onde quero) e, ainda, sem palmilhar (eu não me nutro de papel cansado/adubado de tinta e de tinteiro) e pré-determinado (nasci para cantar a Stalingrado).Sua poesia será narrativa e movida por sentimentos muito fortes: indignação diante das perdas humanas e das traições, admiração diante do heroísmo, demonstrado quando do ataque de que a cidade foi vítima. Nas sétima, oitava e nona estrofes, se refere aos americanos, franceses e ingleses que, se aliando contra os nazistas e fascistas, lhe prestam ajuda. Repete, como num estribilho, o último verso : Já não estás sozinha, Stalingrado. As estrofes que se seguem falam dos invasores que, de certa forma, ainda que por razões diversas, também morreram por ela. E a décima segunda, décima terceira e décima quarta, metáforas  elogiosamente, antropomorfizam a cidade e homenageiam os seus heróis. Nas estrofes seguintes expressa, a esperança (O sal profundo que trazes de novo, A esperança que irrompe nos jardins) da qual a cidade é detentora para, então, seguir os passos dos conquistadores fugitivos no caminho da destruição que passou pela França, Tchecoslováquia, Grécia, Espanha, Holanda e Noruega. Depois, duas estrofes para louvar Stalingrado, antecedendo a última, diferente das anteriores pelo seu número de versos e pelo retorno à primeira pessoa com que se inicia o poema (e, também, a terceira, quarta e quinta estrofe). Uma expressão que revela, sem peias, o poeta no seu gosto pelas coisas (Guarda-me um pedaço de violenta espuma,/ guarda-me um rifle, guarda-me um arado”/ e que o coloquem na minha sepultura), no anseio que não o abandona de prolongar os sentimentos mesmo depois da morte, no querer proclamar o amor que sente (que morri te amando e que me amaste) e no desejo de participar das lutas mas com suas próprias armas: e se não combati na tua cintura/ deixo em tua honra esta granada escura,/ este canto de amor a Stalingrado.

            E foi este poema  “Canto de amor a Stalingrado” que leu aos mineiros da cidade de Lota, ao participar de um comício. Desse momento, deixou testemunho  no seu livro de memórias (Confieso que he vivido, Barcelona, Seix Barral, 1974). Conta que eram uns dez mil  homens e que do alto da tribuna onde estava, podia ver aquela imensidão de chapéus e de cascos de mineiros. Quando anunciaram o seu nome e o título do poema que iria ler, a multidão, ao mesmo tempo, com único e imenso gesto se descobriu numa espuma de calada reverência. Pablo Neruda diz que, então, o seu poema cresceu e atingiu como nunca o seu tom de guerra e de liberação.

domingo, 16 de julho de 2000

Ofício de Poeta. 2

 
...a vontade de um canto com explosões, o desejo / de um canto imenso, de um metal que recolha / guerra e sangue nu.    Pablo Neruda. 

            Convidado para fazer uma conferência no Sindicato de Carregadores do Mercado mais popular de Santiago do Chile, Pablo Neruda chegou na sala gelada onde, sentados em caixotes ou em bancos improvisados, uns cinqüenta homens o esperavam. O poeta, no seu livro de memórias Confieso que he vivido (Barcelona, Seix Barral, 1974), ao relembrar o fato, os rotula de estranho público: vestiam, alguns, no frio mês de julho, apenas uma velha camiseta enquanto outros estavam com o torso nu. Pablo Neruda, ao entrar no automóvel que até ali o conduzira, ignorava para onde o estavam levando e, diante desses homens que olhavam para  ele, muito sérios, não sabia o que dizer. Vencendo o desejo de  desistir, tirou do bolso um exemplar de España en el corazón, o poema que ele desejou claro e transparente. Começara a escrevê-lo em 1936. Era cônsul do Chile em Madrid quando, em 18 de julho, irrompeu a Guerra Civil espanhola. Dos muitos e grandes sofrimentos dela originados, se impregnaram os seus versos e o resultado foi um poema que, o próprio poeta, jamais acreditou ser de fácil compreensão. Logo, ele é destituído de suas funções e deixa a Europa no ano seguinte. Em novembro, pela Ediciones Ercilla, é publicado España en el corazón que, em 1938, já contava com quatro edições, uma delas de Barcelona. O pequeno livro tem como subtítulo “Himno a las glorias del pueblo en guerra (1936-1937)” e se divide em uma vintena de poemas que enaltecem a Espanha e o seus heróis e não poupam os que a desejam submissa ao poder franquista. Na “Invocación”, o primeiro deles, não invoca as musas para o seu canto mas expressa o desejo de testemunhar sobre essa Espanha que se dilacera e à qual chama de cristal de taça, não diadema,/sim machucada pedra, combatida ternura/ de trigo,/couro e animal ardendo! E pátria sulcada, Espanha fuzilada, solene pátria, Espanha dura ,Espanha quebrada, a chamará noutros versos. No poema “Cómo era España” lhe dedica duas estrofes em que  as palavras que a qualificam (tensa e seca, azul e vitoriosa, proletária de pétalas e bala, única viva e sonolenta e sonora, percorrida por sangues e metais) assim como as metáforas que a definem (diurno tambor de som opaco, silêncio de açoitadas intempéries, planície e ninho de águia, pedra solar) ainda a mostram na força passível de engendrar vitórias. Vitórias sobre um inimigo conhecido, e então, nominado (generais, coronéis, bispos, banqueiros, embaixadores, ministros,  senhoras de confortável chá e posição, duquesas, ricos daqui e dali) que o poeta, vencido pela indignação, trata de malditos, chacais, víboras, hienas, monstros, fúrias, bestas, mascarados, bandidos, traidores, devoradores .Expressões que se tornam mais virulentas ao serem reforçadas por adjetivos (sotainas raivosas, frades negros, hienas sedentas, soldado traidor, embaixadores pútridos, chuvosas beatas) ou usadas em figuras estilísticas (malditos/uniformes manchados e sotainas de azedos, hediondos cães de cova e sepultura). Como reverso da medalha, os que lutam contra a falange: os mineiros, os pedreiros, os ferroviários, os camponeses, os pescadores, os sapateiros, os carpinteiros, a delgada e dura e madura e ardente brigada de pedra.

            No último poema  “Oda solar al Ejército del pueblo” o poeta, antes de conclamar o exército do povo à luta, diz do entusiasmo das crianças e das mães pelos seus feitos, neste saudar os soldados com as espigas,/ o leite, as batatas, o limão, o louro,/ tudo o que é da  terra e da boca do homem. As referências aos trabalhadores e o ter usado – como é  peculiar na sua poesia – palavras tão usuais do cotidiano, sem dúvida, lhe facilitaram chegar ao coração dos que o ouviam nesse dia de inverno. Porque embora haja, é certo, um ou outro poema (ou verso ou estrofe)  que se mostra hermético, a maior parte de España en el corazón   é feita de clareza e emoção diante dos que lutavam por essa utopia que é pretender a justiça social.

            Durante uma hora Pablo Neruda foi lendo e lendo o seu  longo poema. Quando se dispôs a partir, um entre aqueles homens que o haviam escutado, dele se aproxima para agradecer. Não se impede de chorar, como outros também o fizeram. E o poeta foi embora entre olhares úmidos e rudes apertos de mão.

            Muitos anos se passaram até esse tempo em que Pablo Neruda  se volta para o passado. Ao escrever suas memórias as lembranças  que lhe afloram são um renovar de sentimentos. O poeta já tem uma vida plenamente vivida para poder mensurar a grandeza dos apertos de mão e das lágrimas com que os trabalhadores do mercado o honraram. E pergunta ou se pergunta: Pode um poeta ser o mesmo depois de ter passado por estas provas de frio e fogo?

domingo, 9 de julho de 2000

Ofício de Poeta 1.


Minha vida é feita de todas as vidas: as vidas do poeta.

                                                                 Pablo Neruda.           

            Poeta, Pablo Neruda, como poucos, viveu momentos de uma intensa emoção. Não apenas a de se sentir amado ou alvo de admiração fervorosa, mas, também, a de poder interferir em determinadas circunstâncias, mudando-lhes o sentido.

            Na décima primeira parte de seu livro de memórias, Confieso que he vivido, (Barcelona, Seix Barral, 1974) por ele intitulada “La poesia es un oficio”, diz que jamais pensou, ao escrever seus primeiros livros, que ao longo dos anos, iria lê-los em praças, ruas, fábricas, aulas, teatros e jardins. E, recorda algumas passagens em que, ao fazê-lo, recebeu preitos de carinho, testemunho  de respeito, sem dúvida, motivo suficiente para levá-lo a acreditar que  tem sido privilégio de nossa época – entre guerras, revoluções e grandes movimentos sociais – desenvolver a fecundidade  da poesia até limites insuspeitáveis. Estas suas palavras irão ter um significado mais amplo ao serem seguidas pelo relato do que lhe aconteceu no Mercado mais popular de Santiago do Chile ou na praça de Lota quando da leitura de seus poemas ou do que fez acontecer na cidade do México ao tornar público o seu poema para Tina Modotti.

            Chegara Pablo Neruda ao México em 1940, logo depois do retorno de Tina Modotti que, por atividades políticas, fora expulsa do país. Nascida na Itália em 1896, havia emigrado, muito jovem, para os Estados Unidos de onde, três anos depois, partira para o México. Lá, se uniu ao grupo que preconizava a união do artístico com o social – David Alfaro Siqueiros, Diego Rivera, Rufino Tamayo, Rafael Alberti, Antonio Machado e Frida Kahlo – e as fotos que faz, então, testemunham as injustiças e as desigualdades sociais contra as quais ela passa a lutar. Quando Pablo Neruda a conheceu, abandonara  a fotografia para se dedicar, inteiramente ao Partido Comunista.  Sempre disposta a qualquer tipo  de tarefa, mesmo aquelas mais humildes e ainda sabendo que a sua saúde estava prejudicada por um problema cardíaco que, realmente lhe provocou a morte. Morreu dentro de um taxi que a levava para casa. Os jornais não a pouparam, inventando histórias inacreditáveis em que era apresentada como a mulher misteriosa de Moscou que havia morrido por saber demais. Indignado, Pablo Neruda decide escrever um poema que ele mesmo rotula de  desafiante e mandá-lo para todos os jornais embora acreditando que nenhum deles o publicaria. No dia seguinte, porém, em lugar da  revelações prometidas, estavam,  em todas as páginas, os seus versos.

            “Tina Modotti há muerto” (publicado mais tarde, em Tercera residencia, no ano de 1947, pela Losada de Buenos Aires) é um poema de dez estrofes, cada uma com quatro versos. O poeta o inicia, dizendo-lhe o nome e chamando-a de irmã e querendo crer que não dorme. Mas, a dúvida de um talvez presente no verso seguinte, relacionando o seu coração com o crescer da rosa, sugere que ela já se encontra num mundo novo. Então, expressa o desejo que descanse, tendo como assente, na próxima estrofe, que o seu espaço é outro (a nova terra é tua),  que o seu vestir é outro (puseste um novo traje de semente profunda), metáforas que levam a uma certeza: não dormirás em vão, irmã.

            A repetição da palavra hermana (irmã) torna claro o  seu compromisso de afetos e escolhas ideológicas com Tina Modotti. O perfil  que dela traça, na enumeração de palavras com imensa força de sugestão – abelha, sombra, fogo, neve, silêncio, espuma de aço, linha, pólen -,  torna mais  desprezivelmente violenta, a presença de quem  a persegue então rotulado de chacal, assassino, vendido.

            Convicto, ele próprio das verdades que buscava Tina Mondotti, o poeta não hesita em afirmar que o mundo caminha na direção que ela preconizava, num anseio propagado  nas velhas cozinhas de tua pátria, nos caminhos empoeirados, algo se diz e acontece, algo volta à chama de teu dourado povo, algo desperta e canta. Anseio compartido – outra vez a chama de irmã -  pelos que hoje dizem teu nome e que, na verdade, são muitos, de todas as partes, da água e da terra. Entre eles, o poeta, ao usar a primeira pessoa plural: com tu nombre otros nombres callamos e décimos (com teu nome outros nomes calamos e dizemos).       Desejando, talvez, reafirmar o prestígio, o valor da mulher que defende, Pablo Neruda usa o advérbio hoy (hoje) que se refere a esse dia preciso em que à beira do túmulo de Tina Modoti irá declamar o seu poema e que pode ter o  sentido ampliado para o momento em que vivem: quando, ainda, era possível, para alguns, aspirar à justiça social. Tempo e pensamento  que o poeta pretende eternizar, no último verso do poema quando afirma: Porque el fuego no muere (Porque o fogo não morre).

            Tina Modotti jaz no cemitério da cidade do México, sob uma pedra de granito mexicano. 

domingo, 2 de julho de 2000

O baile. 3


       São três romances, separados pelo tempo e pelo espaço geográfico: Las lanzas coloradas (1931) do venezuelano Arturo Uslar Pietri, Hijo de Hombre  (1960) do paraguaio Augusto Roa Bastos e Gringo viejo (1985) do mexicano Carlos Fuentes. Eles tem um tema em comum: numa breve seqüência, a descrição de um baile. Nos três casos, um baile surpreendente.  

            Nunca se haviam visto refletidos, de corpo inteiro, num espelho. Não sabiam que seus corpos eram algo mais do que um pedaço de sua imaginação ou um reflexo quebrado num rio. Por isso, o salão de baile não tinha sido queimado, salvando-se da destruição quando os revoltosos invadiram a fazenda dos Miranda que haviam construído esse Versalhes em miniatura com suas paredes cobertas de espelho e o seu assoalho feito de um elegante parquê, importado da França. Uma verdadeira e estranha jóia, encravada numa propriedade rural tão imensa que para atravessá-la era preciso viajar de trem durante dois dias e uma noite. Quando os revoltosos nela chegaram, enforcaram, nos postes do telégrafo, os federais que defendiam o governo e a incendiaram. Os donos já  haviam partido, em busca de melhores ares, para a França. De qualquer modo, muito pouco ali viviam. Apenas uns breves dias de férias quando, se entediando, buscavam se distrair a galopar pelos campos onde golpeavam os trabalhadores que, dobrados sobre seus pobres campos de feijão ou de um trigo frágil, não reagiam mesmo diante das afrontas que faziam às suas mulheres sobre as quais se lançavam, sem freios.

 E, foram esses maltratados pelo trabalho que mal lhes matava a fome e mal lhes permitia viver, na humilhação cotidiana de estar sempre submisso ao mandante de turno, à sacristia e às aristocracias ridículas que se lançaram à Revolução, buscando, na luta, mudar o que, até então, os mantivera imobilizados como escravos ou como réus.

No romance Gringo viejo  (Fondo de Cultura Económica, 1985), de Carlos Fuentes, um punhado deles, donos apenas do direito de serem rebeldes, segue o general Tomás Arroyo, filho espúrio de um Miranda. Criado entre dois mundos, o da opulência paterna, que lhe é negado e o da miséria materna, ao qual pertence, sabe o quanto precisa mudar no seu mundo de praga e de fome e que as mudanças devem ser feitas à revelia das regras existentes.

 Em meio ao cheiro de comida, a cavalos soltos e a carretas abandonadas, em meio ao pó e à fumaça, eles se instalaram perto das ruínas da fazenda incendiada e da qual restava, apenas, o salão de baile. E foi nele que irrompeu a festa. Primeiro risos e uma trombeta desafinada. Logo, brincadeiras, uma guitarra e o acordeão. Os homens e as mulheres da tropa, misturados com os da aldeia, dançavam e se beijavam furtivamente. Outra vez, a festa no salão de baile dos Miranda. Mas, seus espelhos já não refletiam os meneios elegantes dos que antes aí dançavam valsas. Agora, era a alegria  de uma polca norte-americana, as esporas dos ginetes se arrastando no chão, rasgando e estraçalhando o parquê vindo da França. Como se a prepotência tivesse sido, verdadeiramente expugnada. Como se os direitos que pretendiam conquistar lhes fossem, na verdade, concedidos.