domingo, 25 de junho de 2000

O baile. 2


    São três romances, separados pelo tempo e pelo espaço geográfico: Las lanzas coloradas (1931) do venezuelano Arturo Uslar Pietri, Hijo de hombre  (1960) do paraguaio Augusto Roa Bastos e Gringo viejo (1985) do mexicano Carlos Fuentes. Eles tem um tema em comum: numa breve seqüência, a descrição de um baile. Nos três casos, um baile surpreendente. 


             Hijo de hombre está entre aqueles romances que fizeram parte do “boom”, o assim chamado momento da Literatura em que várias obras da Literatura Latino-americana obtiveram não apenas grande sucesso de venda como foram alvo das atenções do Primeiro Mundo. Premiado no Concurso Internacional Losada 59, este primeiro romance de Augusto Roa Bastos abarca um período de mais de vinte e cinco anos da História do Paraguai. Inicia-se o primeiro de seus episódios (são em número de nove e, na aparência, independentes entre si) um pouco antes do aparecimento do cometa Halley e o último coincide com o término da Guerra do Chaco.

             O capítulo “Fiesta”, o sexto do romance, relata a perseguição, pelas forças regulares, de um grupo de rebeldes, delatados, num momento de embriaguez, pelo Tenente que os treinava para a luta armada. Foram todos mortos ou presos, salvo Cristobal Jara. A sua procura, os soldados revistaram as casas do povoado, a igreja, os currais, os poços, os banhados, os matos circunvizinhos. Somente se detiveram diante das cabanas dos leprosos que os oficiais vigiavam, a distância, com seus binóculos. No cemitério, deitado num túmulo vazio, o perseguido, no meio da terra e do capim, espera o momento de se evadir. Pelo menino que a mando da mãe, a coveira e guardiã do cemitério, leva alguma comida para ele, soube da festa que as senhoras da igreja e as professoras iriam oferecer aos militares, os heróis do banhado que haviam, segundo elas, salvo o povoado da morte e da ruína que semeariam os revoltosos.

             À noite, a festa estava no auge. No salão iluminado, os oficiais rodeados pela melhor sociedade: os fazendeiros, os comerciantes, os funcionários da Estrada de Ferro e o padre. No pátio, se aglomeravam os soldados que, no meio do pó, dançavam apertados às mulheres descalças, guiados mais pela memória do que pela música que se filtrava, avaramente, do salão onde, sobre um estrado, tocavam os músicos.

             Foi quando dom Bruno Menoret, patrão de Cristobal Jara, o divisou, de repente, entre os poucos civis que dançavam com os chapéus enfiados até os olhos. Mal acreditando no que via, mal contendo as palavras, correu em busca do capitão para dizer-lhe que o homem que procurava estava  ali, entre eles. Porém, não teve tempo de falar, paralisado por uma súbita dúvida. Ninguém soube, talvez nem ele mesmo o soubesse, se nesse momento ia delatar a Cristobal Jara ou se, pelo contrário, estava tratando de urdir a seu favor, uma longa patranha, alguma incrível e absurda cartada, mais incrível, ainda, que o mesmo fato de ter vindo esse homem ali, a inferir sozinho a todos os seus inimigos a enormidade dessa afronta com uma coragem demoníaca e desesperada. Talvez compreendesse, de repente, a magnitude dessa loucura e tivesse decidido jogar a própria vida para defendê-la e fazê-la triunfar além das possibilidades permitidas. Mas, nada fez e nada ele disse porque nesse momento foi ouvida a gritaria das mulheres, constatando a presença dos leprosos no baile. Houve uma fuga desesperada de todos que ali dançavam, também dos soldados e dos músicos. Somente o tocador de harpa, que parecia cego, alheio ao que acontecia, continuava a tocar. O capitão permaneceu  imóvel, olhando, como num grande pesadelo, vários leprosos dançando grotescamente com seus corpos inchados e roídos sob a luz lívida. Cristobal Jara e sua companheira de dança saíram sem pressa, protegidos por essa guarda de corpos fantasmais  enquanto a harpa tocava, vivamente um galope no salão deserto.

             No imprevisto desta breve seqüência do baile, como de resto, bem explícita no romance inteiro, a dicotomia de classes já expressa na frase que a inicia: “A festa estava no seu apogeu com o salão e o pátio atulhados de gente. No salão deslumbrante de luzes, pessoas bem vestidas, música tocada pela orquestra, alguma sutileza na relação social versus o pátio empoeirado, soldados barbudos, sujos de barro, fedendo a suor de cavalos e ao próprio suor e às águas do banhado, música apenas audível, mãos crispadas nas costas de seus pares, olhos turvos de ânsias amorosas.

Desenham-se, então, nessa dicotomia, destinos que diferem entre si e nada mais são do que esse repetir-se das instituições ibéricas no Continente. Percebê-la é entender um sentido entre os muitos que possuem este romance de múltiplas leituras.

domingo, 18 de junho de 2000

O baile. 1


São três romances, separados pelo tempo e pelo espaço geográfico: Las lanzas coloradas (1931) do venezuelano Arturo Uslar Petri, Hijo de Hombre (1960) de Augusto Roa Bastos e Gringo viejo (1985)  do mexicano Carlos Fuentes. Eles têm um tema em comum: numa breve sequência, a descrição de um baile. Nos três casos um baile surpreendente.

         No décimo primeiro capítulo de Lanzas coloradas, o comandante dos godos,  aqueles que lutavam para impedir a independência dos territórios americanos do domínio espanhol, toma de assalto uma pequena cidade e chega até a igreja que servira de refúgio para os habitantes e onde haviam colocado alguns feridos. Vaidoso do medo que infundia, ordenou, brevemente, que retirassem os feridos e trouxessem música. Como fardos – cadáveres e moribundos – foram jogados nas pedras da rua e, logo, trazidos dois homens: um com a guitarra e outro com o tambor. Toquem, foi a ordem que ele deu, que dancem todos. No rosto, estampado o pavor, eles tocaram. A música seca e interminável se repetindo sempre, no mesmo tom. Homens medrosos e mulheres chorosas começaram a se mover com um balançar torpe e constante refletindo o sofrimento. Na luz tamisada da igreja, improvisado e sem alegria, feito para o homem que montado num cavalo negro tudo observava, o baile significava, apenas, a glorificação da força. E o comandante não se exime de fazer uso dela. Quando descobrem que havia, na igreja, alguns insurgentes, os que se opunham aos godos, feitos, então, prisioneiros, ele não titubeia: além da troça que se permite fazer, dita a sentença de morte, explicando que a guerra está ficando feia e quem não morre hoje, morre amanhã. Um dos condenados, jovem revolucionário, impregnado dos Direitos do Homem e do Cidadão, se dá conta que será sacrificado, de costas para um muro, sem glória com tudo o que faz parte dele (futuro, sonhos, pátria, lutas), diante de oito bárbaros que apontam. Não ignora que basta apenas uma ordem e tudo vai acabar. E um último anseio de vida se expressa nas imagens – a cidade, sua casa, seus pais, tudo, enfim, que não mais irá rever - que lhe acodem.

            A guitarra e o tambor se debulhavam como grãos. Continuavam todos dançando na igreja com os mesmos movimentos mecânicos, ao som do mesmo compasso. Ao escutarem a descarga da fuzilaria, que do exterior inundava o recinto, redobraram a velocidade de seus passos.

            De repente, calou o tambor e somente ficou sendo ouvida a guitarra, miúda e nervosa. Alguém perguntou o porquê  e outro alguém respondeu: o do tambor tinha medo e lhe arrebentei os miolos. A música ia definhando e o barulho dos pés no ladrilho continuavam.

            Embora, no romance de Arturo Uslar Pietri a ação é situada num momento em que se desatam as lutas pela independência do território que, então, pertencia à Espanha, não há na trama e na feitura dos personagens, um maniqueísmo evidente que privilegie os que procuraram se libertar do domínio espanhol. No entanto, aparecem, no texto, uma ou outra expressão traduzindo a posição ideológica do romancista. Assim, ao ouvir a voz, informando que havia estourado a cabeça de um homem por ter demonstrado medo aquele que, defendendo os interesses dos colonizadores, chefiava o ataque à cidade, sorriu. Na penumbra da igreja e montado no seu cavalo negro.

           

domingo, 11 de junho de 2000

O ataque.


Os olhos já não vêem seres humanos, mas braços com lanças vermelhas e os outros tampouco enxergam homens mas braços com lanças, braços  vermelhos com lanças vermelhas. Arturo Uslar Pietri.           

            No meio da praça, sob as chispas amarelas da bandeira, o general Ribas disparava ordens e via a acometida que chegava acelerando. Todos viam. Na pequena cidade, entre as casas, embaixo das árvores, a tropa  preparava o combate. Com precipitação, os soldados levantavam barricadas, experimentavam o fio da lança, examinavam os arreios, posicionavam os canhões. Da torre da igreja, o sentinela passava o olhar pelas colinas, pela cidade, pelo vale onde se movia, com lentidão, a massa de inimigos. A sua frente, montando um cavalo negro, o comandante tinha, como se elas fossem o seu alvo, o olhar fixo nas paredes brancas das casas; atrás dele, à direita e à esquerda, a cavalaria. Sobre todas as cabeças o esplendor das lanças como se as estrelas tivessem ficado baixas. De repente, um grupo se adianta, velozmente, alcança as primeiras casas e se mete pelas ruas. O combate que então se trava entre os que tinham em seu poder a cidade e os que arremetiam contra ela é narrado, no décimo segundo capítulo de Las lanzas coloradas (Caracas, Ministerio de Educación Nacional de Venezuela, 1946) de Arturo Uslar Pietri.


            Num texto em que alia à agilidade do relato um dizer pleno de achados estilísticos (se teciam os alaridos das cornetas, se levantavam tormentas de gritos, os canhões desatam seu trovão repetido, o ar está cheio do grito de uma corneta) ele se detém nas ações coletivas para mostrar o horror de uma luta onde muito poucos tem noção dos reais motivos pelos quais estão se digladiando. É um narrar que se faz de seqüências breves, registrando num desfile cruel e alucinante o destinos dos homens e dos animais lançados uns contra os outros e, então, vítimas dos idênticos desvarios que dominam os dois campos opostos: cavalos e ginetes caem sob o fogo; rodam pela encosta do morro os corpos dos mortos; são pisoteados pelos animais em fuga os que já estão sem vida; espantados e loucos os cavalos sem ginetes debandam; a rua desaparece sob os corpos dos homens e dos cavalos caídos; o sangue cobre as pedras da rua, escorre pelos braços dos combatentes. No meio de  uma orquestra de ruídos (o alarido das cornetas e o matracar da fuzilaria e o tamborilar das patas dos cavalos e as vozes e os gritos dos homens) há um repetir de ações (a correria dos cavalos, o disparar dos canhões, homens que morrem feridos por lanças ou pisoteados pelos animais), expressando  esse delírio coletivo que é tanto mais cruel quanto desprovido de sentido – e, na verdade, em que momento eles se justificariam ? – que não seja o de obedecer ao impulso insano de destruição.

            A razão primeira da luta, a independência da Venezuela, a não ser quando alguns jovens discutem numa reunião clandestina os princípios que devem regê-la, se dilui ao longo do romance e está quase ausente neste décimo segundo capítulo. Assim, Las lanzas coloradas, considerado pela critica como o romance da independência, parece se constituir,sobretudo, uma reflexão sobre a maneira como essa independência foi alcançada: muitos

domingo, 4 de junho de 2000

Dos (Aperfeiçoados) Direitos do Homem e do Cidadão.

            Em 1931, Arturo Uslar Pietri publicava, na Espanha, seu romance Las lanzas coloradas. Havia estreado, três anos antes na vida literária de seu país com Barrabás y otros relatos, livro que irrompia contra os cânones estéticos dominantes – e, então, não foi muito bem visto na época – o que iria, mais tarde, conferir-lhe foros de um “clássico” da Literatura Venezuelana.

            Las lanzas coloradas é um dos poucos livros, junto com Huasipungo (1934),  La serpiente de oro  (1935)  e Angústia (1936) a preencher a década de trinta, no dizer do crítico peruano Luiz Alberto Sánchez, no que concerne aos narradores latino-americanos, bem pouco brilhante.

Rotulado de  romance histórico, de romance da independência, Las Lanzas coloradas na verdade, além de um breve drama, no melhor estilo romântico (Inês, moça branca e rica, órfão e sozinha na sua propriedade, uma vez que o irmão fora à cidade participar de uma reunião política, é violada pelo feitor da fazenda que, a seguir, manda incendiar a casa) é um relato de momentos que antecederam as lutas ocorridas para libertar do domínio espanhol o território que hoje se constitui a Venezuela e alguns embates travados entre os revolucionários e os que, por espanhóis ou por interesses, permaneceram fiéis ao rei da Espanha.

Na reunião clandestina que tramava a revolução, vinte jovens de rostos prematuramente graves, escondidos num sótão, se tratam de cidadãos e, em nome da Pátria e da Liberdade, recebem o novo adepto: Fernando Fonta.  E ele, que sempre vivera em suas terras trabalhadas por negros, de repente, descobre um mundo novo ao ouvir falar que todos os que nascem no mesmo território são irmãos e que por eles se deve lutar; que todos os homens que nasceram fora desse território que lhes pertence são estrangeiros e não devem ter mando, nem intervenção sobre a terra que é deles e para eles. Logo, o Secretário da reunião, se põe a ler a tradução dos Direitos do Homem e do Cidadão, impressa, clandestinamente, em Bogotá, cujo primeiro artigo é submetido a comentários. Diz um dos moços tratar-se de um princípio quase axiomático: na natureza, todos os seres, dentro de cada espécie, são iguais. Na sociedade humana, os indivíduos são desiguais. A natureza é obra de Deus; a sociedade é obra dos homens. Daí a conclusão de que não é difícil saber  em qual das duas está o erro.

O recém-chegado, com uma experiência de vida, baseada, inteiramente, na desigualdade – e o rei, e o capitão, e os pais, e os nobres, e os plebeus, e os brancos e os pretos – argumenta que, ao contrário, toda a Criação proclama a desigualdade pois nem todos os animais possuem a mesma força e nem todos tem a mesma capacidade para se defender e que até no Céu existem as hierarquias. Nem por tal desacordo, no entanto, a leitura é interrompida e os princípios vão sendo festejados tão acaloradamente como os Do contrato social ou princípios do direito político que, bem devagar, o Presidente começa a traduzir e cujas palavras nenhum deles sabe discutir. Apenas, aceitar ou recusar mas, antes de mais nada, convictos de que o governo democrático é a expressão da vontade geral e que, ao conhecer-lhes as vantagens, é impossível que todos os homens não a proclamem imediatamente.

Eram jovens, povoados de ilusões, certos que a igualdade sendo possível na França e nos Estados Unidos onde foi boa, por que não o seria para as futuras nações do Continente?

É quando o leitor cheio de experiência e dono de poder olhar para cada uma das nações que nasceram – é permitido, talvez aconselhável, acreditar – dessas idéias e desses sonhos, será levado a acrescentar que não por já ter sido dito ele deve se abster de dizer outra vez: que, no Continente, muito mais do que haver cidadãos que sejam iguais perante a Lei, há aqueles que (quem são?, quantos são?, até quando o serão?) sempre, são muito mais iguais do que os outros.