domingo, 14 de maio de 2000

Da crítica. 2


A necessidade de repensar e reformular o corpus da literatura latino-americana deriva da certeza de que sua delimitação atual obedece, em última instância, a uma visão oligárquico-burguesa da literatura, visão que foi transmutada em base crítica quase axiomática, mediante operações ideológicas que só recentemente são discerníveis como tais. Deriva também da convicção de que o desenvolvimento real das contradições sociais na América Latina permite ensaiar outras alternativas que se vinculem aos interesses e `a cultura populares” Antonio Cornejo Polar.
 

Número 43 da excelente coleção “Humanita”, publicada pela Universidade Federal de Minas Gerais, neste ano, O condor voa, do peruano Antonio Cornejo Polar, uma reunião de seus principais trabalhos sobre a Crítica latino-americana e sobre autores andinos. Num desses trabalhos, “Unidade, Pluralidade, Totalidade: o corpus da Literatura latino-americana” sua  proposta é esboçar o corpus sobre o qual deveria trabalhar a crítica literária latino-americana. Ele parte da realidade, comum no Continente (ainda que ele se refira mais especificamente à Literatura andina): a crítica é  efetuada, apenas, sobre corpus unitários e mais ou menos homogêneos, sendo portanto, excluída de sua análise toda a produção que se diferencie da norma privilegiada, obediente às leis culturais dos grupos dominantes. Isto é, a crítica literária latino-americana trabalha sobre corpus ilegitimamente recortados, eliminadora de tudo o quê não seja Literatura culta (o popular, por exemplo, que no Brasil corresponderia à Literatura de Cordel ou a expressão em línguas nativas) numa recusa insensata diante do real interesse que esses corpus despertam numa parcela da população.

A resposta do crítico peruano ao que chama de reducionismo ideológico consiste, primeiramente, em aceitar a pluralidade das Literaturas Latino-americanas – que para a crítica mais conservadora se constitui uma única expressão literária – , reivindicando, para cada uma delas, o seu próprio valor artístico e a sua representatividade social. Daí, a necessidade de uma História da Literatura, entrelaçada à História isto é, inscrever os sistemas literários num processo histórico social abrangente, construir uma totalidade concreta. Como exemplo, se refere à Literatura da Conquista (inscrita no eixo da História social da Conquista) cuja totalidade literária  se constituiria da Literatura indígena (que narra, em relatos e elegias a chegada dos conquistadores e a destruição por eles realizada), da Literatura hispânica (  que relata o descobrimento e testemunha a nova realidade em crônicas e cartas e documentos que oscilam entre a verdade e a fantasia), da Literatura popular (expressão dos soldados que em coplas e canções crítico-satíricas  revelam a sua decepção), da Literatura moralista dos espanhóis (que se interrogam sobre a legitimidade da Conquista, condenando a crueldade dos atos hispânicos em textos históricos ou jurídicos ou em alegações humanitárias), da Literatura oficial hispânica (que em crônicas e relatos pretendem interpretações pró-imperiais, visando obtenção de prebendas), da Literatura espanhola de catequese (que em busca da conversão dos indígenas se servem do dramático e do oratório), da Literatura de transculturação (que tratam de explicar os acontecimentos, de situar seus autores nesse contexto fluente, em busca de uma autenticidade pessoal, e que contém alguns germes do que muito mais tarde serão projetos nacionais ).

Na verdade, como Antonio Cornejo Polar não deixa de indicar, nos tópicos que menciona, não há o estabelecimento de uma estrutura, mas o alicerce sobre o qual a investigação concreta poderá traçar a rede de relações que, efetivamente, encadeia e dinamiza a totalidade. Tampouco deixa de notar que um trabalho de tal magnitude não está isento de dificuldades que são, no entanto, compensadas ao possibilitar o exercício de uma crítica que  ao incorporar a seu objeto as relações entre os sistemas literários e entre estes e a história social que lhes corresponde, está apta a examinar o que no fundo é decisivo: a reprodução especificamente literária dos conflitos e contradições que tecem a história global de nossa sociedade.

Sem dúvida, é uma proposta de trabalho cujo valor reside, não apenas em se antepor ao que sempre foi preconizado pela crítica tradicional, submissa à orientações forâneas ou em  indicar princípios inovadores, mas, sobretudo, pelo posicionar-se ideologicamente, quando indica esse caminho que foi sempre preterido: o da descolonização.

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