A necessidade de repensar e reformular o
corpus da literatura latino-americana deriva da certeza de que sua delimitação
atual obedece, em última instância, a uma visão oligárquico-burguesa da
literatura, visão que foi transmutada em base crítica quase axiomática,
mediante operações ideológicas que só recentemente são discerníveis como tais.
Deriva também da convicção de que o desenvolvimento real das contradições
sociais na América Latina permite ensaiar outras alternativas que se vinculem
aos interesses e `a cultura populares” Antonio Cornejo Polar.
Número 43 da
excelente coleção “Humanita”, publicada pela Universidade Federal de Minas Gerais,
neste ano, O condor voa, do peruano Antonio Cornejo Polar, uma
reunião de seus principais trabalhos sobre a Crítica latino-americana e sobre
autores andinos. Num desses trabalhos,
“Unidade, Pluralidade, Totalidade: o corpus da Literatura latino-americana”
sua proposta é esboçar o corpus sobre o
qual deveria trabalhar a crítica
literária latino-americana. Ele parte da realidade, comum no Continente (ainda
que ele se refira mais especificamente à Literatura andina): a crítica é efetuada, apenas, sobre corpus unitários e mais ou menos homogêneos, sendo portanto,
excluída de sua análise toda a produção que se diferencie da norma
privilegiada, obediente às leis culturais dos grupos dominantes. Isto é, a crítica literária latino-americana
trabalha sobre corpus ilegitimamente recortados, eliminadora de tudo o quê
não seja Literatura culta (o popular, por exemplo, que no Brasil corresponderia
à Literatura de Cordel ou a expressão em línguas nativas) numa recusa insensata
diante do real interesse que esses corpus despertam numa parcela da população.
A resposta do
crítico peruano ao que chama de reducionismo
ideológico consiste, primeiramente, em aceitar a pluralidade das
Literaturas Latino-americanas – que para a crítica mais conservadora se
constitui uma única expressão literária – , reivindicando, para cada uma delas,
o seu próprio valor artístico e a sua representatividade
social. Daí, a necessidade de uma História da Literatura, entrelaçada à
História isto é, inscrever os sistemas literários num processo histórico social
abrangente, construir uma totalidade
concreta. Como exemplo, se refere à Literatura da Conquista (inscrita no
eixo da História social da Conquista) cuja totalidade literária se constituiria da Literatura indígena (que narra,
em relatos e elegias a chegada dos conquistadores e a destruição por eles
realizada), da Literatura hispânica (
que relata o descobrimento e testemunha a nova realidade em crônicas e
cartas e documentos que oscilam entre a verdade e a fantasia), da Literatura
popular (expressão dos soldados que em coplas e canções crítico-satíricas revelam a sua decepção), da Literatura
moralista dos espanhóis (que se interrogam sobre a legitimidade da Conquista,
condenando a crueldade dos atos hispânicos em textos históricos ou jurídicos ou
em alegações humanitárias), da Literatura oficial hispânica (que em crônicas e
relatos pretendem interpretações pró-imperiais, visando obtenção de prebendas),
da Literatura espanhola de catequese (que em busca da conversão dos indígenas
se servem do dramático e do oratório), da Literatura de transculturação (que
tratam de explicar os acontecimentos, de
situar seus autores nesse contexto fluente, em busca de uma autenticidade
pessoal, e que contém alguns germes do que muito mais tarde serão projetos
nacionais ).
Na verdade,
como Antonio Cornejo Polar não deixa de indicar, nos tópicos que menciona, não
há o estabelecimento de uma estrutura, mas o alicerce sobre o qual a investigação concreta poderá traçar a rede
de relações que, efetivamente, encadeia e dinamiza a totalidade. Tampouco
deixa de notar que um trabalho de tal magnitude não está isento de dificuldades
que são, no entanto, compensadas ao possibilitar o exercício de uma crítica que ao
incorporar a seu objeto as relações entre os sistemas literários e entre estes
e a história social que lhes corresponde, está apta a examinar o que no fundo é
decisivo: a reprodução especificamente literária dos conflitos e contradições
que tecem a história global de nossa sociedade.
Sem dúvida, é
uma proposta de trabalho cujo valor reside, não apenas em se antepor ao que
sempre foi preconizado pela crítica tradicional, submissa à orientações
forâneas ou em indicar princípios
inovadores, mas, sobretudo, pelo posicionar-se ideologicamente, quando indica
esse caminho que foi sempre preterido: o da descolonização.

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