domingo, 30 de abril de 2000

O lugar ideal.

       
       
Nas últimas páginas de Lutas do coração (Editora Mulheres, Florianópolis, 1999), Angelina, recém-casada, recebe da mãe os conselhos que deverão guiá-la na vida nova que inicia. As primeiras palavras, surpreendentes – A tua lua de mel é o introito do grande cenáculo, onde tu serás sacerdotisa – são seguidas de outras que parecem enunciar mudanças nas relações matrimoniais, dominadas pelo patriarcado: a mulher não deve ser ovelha mas tampouco, soberana indômita. No entanto, logo se enuncia uma clara indução a aceitar o papel de anjo da família. Angelina, ao se submeter a ele, será feliz. As outras duas mulheres, também movidas pela paixão, ao infringirem normas serão fadadas, uma ao abandono, outra à morte. Mas, as três, Angelina a moça casadoira, Matilde, a mulher casada em busca de aventura sentimental e Ofélia, considerada mundana, presas de seus sentimentos a eles se curvam e nada aspiram além da conquista do objeto desejado: Hermano Guimarães, um belo homem, solteiro e rico. Vendo-o indiferente a conversar com suas amigas no segredo do quarto, de mãos postas diante do seu retrato, grita o amor que sente. Humilhada, Matilde, a quem ele diz não querer enxovalhar por ser esposa de um amigo seu, fecha-se nos seus aposentos, planejando vingança. Desassossegada, insegura do amor que lhe é devotado quando vê o amado, no teatro, dar atenção a outra mulher,  voltando para  casa, Ofélia chora muito com o rosto oculto nos almofadões de linho, bordados. Ou seja, para as três mulheres o estar a sós, a intimidade do quarto permite o extravasamento de um sentir, enovelado na figura masculina cujo comportamento não será questionado. O envolvimento amoroso de Hermano Guimarães com a mulher que se permite amar livremente é tido por ele, mesmo sabendo que será pai, como fantasias de moço. Angelina, a noiva, após o despeito de sabê-lo envolvido com outros amores, cala e busca se fazer  adorada por ele; Ofélia, grávida, não se revolta ao ser preterida pela moça de família e para não perturbar o caminho da felicidade daquele que a abandonara, viaja para o exterior onde pretende educar o filho na veneração das virtudes do pai embora certa de que não dará ao filho nem nome, nem fortuna, nem afeto. Ao saber que será pai, Hermano Guimarães chora de emoção mas, em nenhum momento deseja agir fora dos parâmetros da época. Ele pensa que se o filho fosse nascido do seu consórcio com Angelina, o nascimento teria oficial participação, mas no caso desse filho extra matrimonial com Ofélia, não. A narradora inicia, então, um texto em que proclama o amor paterno  onde mescla alguns conceitos sobre os filhos ilegítimos: um filho embora  natural é sempre um filho; inocente, o filho natural também tem direito à progenitura; por que desprezar ou desdenhar o filho natural se é apenas vítima dos amores levianos de seus pais?; o filho abençoa o pai quando ele reconhece a falta e lhe concede na sociedade o lugar que merece. Conceitos  inovadores para a época e que, parece, devem permanecer à margem, esperando que alguém os admita enquanto a sociedade continua a se mover regida pelas suas leis e pelos seus rituais. É o que parece pregar Inês Sabino neste seu romance, publicado pela primeira vez em 1898, ainda que, por vezes, muito brevemente, apareça um desejo de vislumbrar outras certezas.

domingo, 23 de abril de 2000

Notas de tradução:Cien sonetos de amor . 3

          As vezes, é exigido pela métrica do verso ou pelo ritmo da frase, pelo desejo de oferecer um sentido inequívoco ou uma expressão harmoniosa. Outras tantas, mera opção pessoal do tradutor, que assim, com os desvios (afastamento entre o idioma original e o idioma traduzido, segundo Erwin Theodor), distancia do texto original aquele que refaz em outra língua.
            Ao traduzir Cien sonetos de amor de Pablo Neruda (Buenos Aires, Losada, 1965), Carlos Nejar, conduzido pela negligência, não se deixou intimidar. E, dos desvios, abundantemente se serviu, espalhando-os, às mãos cheias, em cada poema que a L & PM de Porto Alegre ofereceu, em 1999, sem buscar perfeições, aos leitores.
            Assim, além dos inúmeros erros crassos, ocorridos a nível de vocabulário, o texto português de Cien sonetos de amor, também, se afasta do original no que se refere à sintaxe: palavras são eliminadas, palavras são acrescidas, palavras tem suas funções sintáticas mudadas.

            Pode ocorrer que na eliminação de um pronome do verso, não tenha havido, realmente, mudança de sentido, mas diminuição da força poética. É o que ocorre no poema XXVI: te odio sin fin, y odiantote te ruego que, na tradução, certamente evitando a repetição de sons, “te odeio sem fim, e odiando-te rogo”, deixa sem clareza a quem o rogo é dirigido. Igualmente, diminuída a intensidade na eliminação do pronome tu do verso era que tú de pronto eras ausente: “era que de repente estavas ausente”. Nos casos em que houve acréscimo, porém, a mudança de sentido é inegável. Assim, no verso do poema LXIII em que o aposto la flor por el mar enterrada se transforma em predicativo do sujeito: é flor pelo mar enterrada e do verso do soneto XXII em que o acréscimo do advérbio não exprime, exatamente, o contrário do verso no original: pero yo ya sabía cómo eras: “Mas eu já não sabia como eras”.

          Sobretudo, em relação à sintaxe, o que sobressai são as mudanças de lugar dos termos da oração, em alguns casos justificadas pela eufonia. Em outros, parecem efetuar-se, sem uma razão precisa como, por exemplo, a colocação do adjetivo anteposto ao substantivo ( tus huellas digitales por “tuas digitais pisadas”, soneto XXXIX; ou pétalos dichosos por “ditosas pétalas”, soneto XLVII) que não apenas contraria o original como o que é usual em português. Muitas vezes, essa troca de lugar dos termos da oração, aparece como uma prática aleatória: tus ojos tienen color de luna por “ tem cor-de-lua teus olhos (soneto VIII); todo fue estrella por “foi tudo estrela (soneto XXIV); me cercaba sin tregua por “sem trégua me cercava “(soneto III), convertida por fin en amapola, por “por fin em amapola convertida” (soneto XCVI). Ainda há casos em que a mudança de lugar ocasiona, também, uma mudança de sentido: no soneto X, o poeta diz que o beijos da amada são frescos como melancia. Na tradução, o advérbio de comparação muda de lugar e os beijos são, então, comparados a “frescas melancias”. ( Son tus besos frescos como sandías por “são teus beijos como frescas melancias”.)

         E, também, acontecem os casos em que um substantivo é substituído por um verbo (tu risa desarrolla tu trino de palmera por “teu riso desenvolve seu trinar de palmeira” soneto XXXVIII), um artigo indefinido por um possessivo ( con una pluma por  “com tua pluma”, soneto C), um tempo de verbo por outro (zumbavam las avispas por “zumbem as abelhas”, soneto XXXIX).

        Na verdade, estes desvios, como os que ocorreram em relação ao vocabulário, se apresentam todos como a expressão perfeita de uma mentalidade de descaso que não envolve apenas a obra traduzida, mas também o leitor a quem essa obra é dirigida.

 

domingo, 16 de abril de 2000

A tal coluna.

 
           E´um feito tão extraordinário que poderia se inscrever numa dessas admiráveis ficções do Continente. Dois mil quilômetros, palmilhados com denodo, vencendo rios e pântanos, planícies desérticas e calor e chuva e enfrentando perseguidores em lutas desiguais: a Coluna Prestes que durante dois anos e meio percorreu o Brasil, partindo do Rio Grande do Sul e que os brasileiros, salvo as sempre raras exceções, desconhecem. E, assim, tampouco perceberá sua presença no romance de Sinval Medina  (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983), Memorial de Santa Cruz. Nele, construído à imagem e semelhança de um sem número de brasileiros, Brasil de Santa Cruz relata a sua aventurosa e sofrida vida. Há um momento em que trava relações com um ex-combatente da tal coluna e das conversas que  teve com ele se dá conta que, mesmo sem o querer, acabaria a ela se integrando o quê, de fato, veio a acontecer. Circunstâncias o levam a presença do comandante da coluna para quem, após contar a sua história, se declara interessado na luta pela liberdade e desejoso de colocar a serviço daquele exército  o quê sabia e o quê podia fazer como homem de armas. Foi incorporado, recebendo as instruções:  o regulamento disciplinar, bastante rígido onde pontificava o respeito às famílias e às propriedades encontradas nas vilas, fazendas e cidades atravessadas pela coluna. Gravemente punidos os estupradores e ladrões e também aqueles que demonstrassem falta de bravura ou de zelo no cumprimento do dever. Destinado ao segundo esquadrão, Brasil de Santa Cruz logo fez amizade com dois componente da Coluna – o Fininho, mestre na pontaria e o Azulão, famoso degolador – e como todos, sem hesitações ou reclamos faz as léguas e léguas diárias, eludindo  os soldados federias, a tropa da polícia e os bandos de jagunços. Com detalhes, relata o seu batismo de fogo e a continuação da marcha, sempre estafante e difícil numa rapidez desnorteante para os perseguidores. E, também, as marchas que se seguiram, na inclemência do sol, na rudeza do terreno – e a planície seca  e a catinga de vegetação raquítica e o deserto árido e fantasmado- na alimentação frugal e insuficiente. E o esforço de dormir ao relento, na espectativa de um ataque de surpresa, de avançar em meio a um tremedal no meio da noite, de se adentrar em território inimigo em busca de alimento para a tropa, de enfrentar traições num renovar de lutas sempre ferrenhas, quase sempre na solidão dos despovoados ou na insegurança de possíveis tocaias quando entre estranhos.
Como em todo o romance, este relato de Brasil de Santa Cruz sobre a sua  participação na tal coluna é ágil e pleno de vivacidade e emoção.  Fiel a si mesmo, ele se deixa envolver pelo entusiasmo dos  companheiros e, como eles, suporta as canseiras de uma vida de carências e perigos. E como eles, é valente nas lutas, por vezes heróico. E o relato que faz sobre a sua participação na tal coluna,como em todo o seu longo monólogo é ágil e pleno de vivacidade e emoção. Mas, nem por isso perde a objetividade e os que saem o quê deveras aconteceu na longa marcha da Coluna Prestes podem, facilmente, discernir na sua narrativa a crônica dos fatos, embora, personagem romanesco, lhe sejam permitidas digressões quando, então, conta as suas experiências eróticas ou amorosas. Porém, logo é como se o  testemunho fosse retomado: quando a decisão do comandante  dá por terminada a campanha e decide pedir abrigo a um país fronteiriço, Brasil de Santa Cruz faz parte dos que, já em terra alheia, se dispõe, ainda outra vez, a tentar a vida. E, então, novos e malfadados sucessos o esperam.
A tal coluna ,  invicta, ainda que constituída de soldados já sem armas e sem munições, ao atravessar o rio que separa os países começa a se partir como cobra de vidro . Findara-se o tempo para aqueles que, no dizer de Brasil de Santa Cruz, se haviam atribuído o papel de arautos da chama revolucionária.

domingo, 9 de abril de 2000

Esse país.

                                                           que país é esse em que trabalhador morre
                                                         de fome por não ter serventia ou ocupação? 

                   Não está morto quem peleia é uma das últimas expressões de Brasil de Santa Cruz no longo monólogo em que relata sua história: aventura num tempo e num espaço sem limite, verdadeiro refazer do caótico, do absurdo, do inaceitável que se constitui a realidade da maior parte dos homens do Continente. Nascido de mãe escrava e pai liberto ou o contrário (ele não sabe ao certo) e tendo como certeza apenas a herança – mulato de cabelo bom, lábio fino, nariz afilado e olho azul – seu caminho será feito somente de percalces. Esses que parecem fantasia de desatinados: domínio de uns poucos, injustiças para quase todos. No relato  de seu viver trabalhoso, o Brasil vai, cruamente, se mostrando no pequeno povoado sem escola, sem médico, sem futuro; no hospital que recebe os doentes graves onde se acumulam os tísicos desenganados, coléricos, mórbidos, raivosos incuráveis, nevróticos de guerra e paz, malucos de todos os matizes, maleitados, queimados e aleijados dos mais diversos feitios, mutilados intratáveis; no Ministério onde as promessas de emprego são feitas sem nunca se concretizarem; na corriqueira prática de desalojar, com violência, os moradores que têm as casas assentadas sobre a riqueza alheia; no recrutamento à força em praias, aldeias, cidades para preencher os quadros da armada nacional que se vê, então, povoada de tipos de toda espécie; nas práticas escusas, permitindo a feitura de falsos documentos, contrabandos, negócios ilegais; nos costumes de uma aldeia indígena depois dizimada cruelmente pelos brancos; no engodo de uma campanha eleitoral; no constatar das crenças que, astuciosamente, pregam a obediência e a resignação dos pobres e desvalidos; na presença do malandro que passa o conto do pacote.

                        Como se fossem uma grande aventura, as privações, as desditas que, ininterruptamente, se sucedem, sem, no entanto, conseguir anular a alegria de viver e a capacidade de tentar outra vez – e mais uma vez tentar sobreviver – que fazem de Brasil de Santa Cruz uma expressão de múltiplos significados, sempre perfeitos, no anseio de procurar entender os perenes e imensos desacertos que, igual que a esperança, regem todos os seus itinerários.

                        Publicado em 1983, pela Mercado Aberto de Porto Alegre,  Memorial de Santa Cruz, como os demais romances de Sinval Medina  (Liberdade provisória, Cara, Coroa, Coragem, Tratado da altura das estrelas)  se enraíza no Brasil, se embebe do Brasil  que, desvendado, emerge em esboços imperfeitos, clamando por um sólido e eficaz passar a limpo.

                        E Sinval Medina, gaúcho de Porto Alegre, na força de sua engenhosa e hábil escrita, induz a desejar que milagres aconteçam ou que seja permitido acreditar.

domingo, 2 de abril de 2000

A herança.

 
           “Canção na beira do mar” é o título  do capítulo que se inicia contando: estas coisas aconteciam no inverno de 1547. Pedro de Valdivia se dedicava à conquista das terras do Continente e precisava, sempre mais, de ouro para seguir adiante. Era-lhe muito pouco o conseguido nas minas e ele pedia aos amigos, ameaçava os soldados, gritando no meio da missa, em pleno altar, entre nuvens de incenso. Mandava colocar os espanhóis no cepo, lhes prometia a forca se não lhe dessem o que pretendia. Medrosos, descontentes, infelizes, eles queriam ir embora mas Pedro de Valdivia não lhes permitia abandonar a cidade que fundara. Nem os doentes (que morressem ali), nem os velhos (que não chegariam vivos a seu destino).
          Um dia, porém, ele se fechou a quatro portas para conferenciar com outros capitães e Inés Suárez. Saiu tranqüilo, dizendo que partisse no navio Santiago, que chegara e regressaria ao Peru, todo aquele que assim o desejasse. Os homens ficaram alegres, esperançosos, na ilusão de poder reconstruir a vida no Peru ou na Espanha e, para isso, venderam tudo o que possuíam. Pedro de Valdivia ordenou que se fizesse o registro de todo ouro que seria embarcado e, já no porto, convidou os que partiam para um encontro de despedida. Reunidos perto das rochas a beira-mar, comiam e bebiam felizes à espera de partir. Então, Pedro de Valdivia lhes fez um discurso: Não se esqueçam de nós e não cheguem à Corte, difamando. Fomos irmãos e nós que não vamos, ficaremos lutando com as fomes, os frios e a solidão. Digam bem e não mal da terra que lhes deu o ouro que estão levando. Deixou que lhe corressem as lágrimas, emocionando os que o escutavam e se distanciou para caminhar perto do mar. Nesse insólito caminhar que lhe molhava os pé esperou pelos outros capitães que se uniram a ele. Mal trocavam palavras. Estavam pálidos, nervosos, olhando para os espanhóis que entre um trago e outro, entre um bocado e outro, riam despreocupados. Com dissimulo, aproximaram-se do bote que ali perto esperava, nele subiram céleres, dando ordem ao estarrecido remador de se afastar da margem. No silêncio da tarde, soaram os remos. Como num movimento de pássaros assustados, os soldados se agitaram, apontando para o mar, para o pequeno bote que se afastava na direção do barco ancorado onde já estava guardado o ouro que lhes pertencia e com o qual se escapava Pedro de Valdivia, deixando para trás os desventurados espanhóis já mais pobres e mesquinhos. Da praia, viram o bote se afastar, aparecer e desaparecer nas ondas até encostar no barco.

           Carlos Droguett em 100 gotas de sange y 200 de sudor  (Santiago de Chile, Zig-Zag, 1961) refaz, na ficção, a vilania do fundador do Chile que muitos historiadores – sempre há os que tudo aceitam e justificam – consideram uma espécie de picardia necessária para a conquista do Chile. Seu romance, que em nada se afasta da Crônica da Conquista, testemunha as blasfêmias e os insultos e o desespero dos homens lesados que se levantam diante do mar. Também, essa voz que se ergue para entoar uma pequena canção: linda voz que aumentava tenuemente e se estremecia na ponta de todas as mãos que apontavam, ao longe, o barco que se diluía no mar distante.
            Então, saíram todos da praia. Caminhavam, outra vez, em silêncio, sem ver. Apertados, feito nós, caminhavam. Saiu-lhes ao encontro, o tocador de trompete, perguntando se voltavam a Santiago porque ele também para lá estava voltando.

 

           “Canção na beira do mar” é o título  do capítulo que se inicia contando: estas coisas aconteciam no inverno de 1547. Pedro de Valdivia se dedicava à conquista das terras do Continente e precisava, sempre mais, de ouro para seguir adiante. Era-lhe muito pouco o conseguido nas minas e ele pedia aos amigos, ameaçava os soldados, gritando no meio da missa, em pleno altar, entre nuvens de incenso. Mandava colocar os espanhóis no cepo, lhes prometia a forca se não lhe dessem o que pretendia. Medrosos, descontentes, infelizes, eles queriam ir embora mas Pedro de Valdivia não lhes permitia abandonar a cidade que fundara. Nem os doentes (que morressem ali), nem os velhos (que não chegariam vivos a seu destino).

               Um dia, porém, ele se fechou a quatro portas para conferenciar com outros capitães e Inés Suárez. Saiu tranqüilo, dizendo que partisse no navio Santiago, que chegara e regressaria ao Peru, todo aquele que assim o desejasse. Os homens ficaram alegres, esperançosos, na ilusão de poder reconstruir a vida no Peru ou na Espanha e, para isso, venderam tudo o que possuíam. Pedro de Valdivia ordenou que se fizesse o registro de todo ouro que seria embarcado e, já no porto, convidou os que partiam para um encontro de despedida. Reunidos perto das rochas a beira-mar, comiam e bebiam felizes à espera de partir. Então, Pedro de Valdivia lhes fez um discurso: Não se esqueçam de nós e não cheguem à Corte, difamando. Fomos irmãos e nós que não vamos, ficaremos lutando com as fomes, os frios e a solidão. Digam bem e não mal da terra que lhes deu o ouro que estão levando. Deixou que lhe corressem as lágrimas, emocionando os que o escutavam e se distanciou para caminhar perto do mar. Nesse insólito caminhar que lhe molhava os pé esperou pelos outros capitães que se uniram a ele. Mal trocavam palavras. Estavam pálidos, nervosos, olhando para os espanhóis que entre um trago e outro, entre um bocado e outro, riam despreocupados. Com dissimulo, aproximaram-se do bote que ali perto esperava, nele subiram céleres, dando ordem ao estarrecido remador de se afastar da margem. No silêncio da tarde, soaram os remos. Como num movimento de pássaros assustados, os soldados se agitaram, apontando para o mar, para o pequeno bote que se afastava na direção do barco ancorado onde já estava guardado o ouro que lhes pertencia e com o qual se escapava Pedro de Valdivia, deixando para trás os desventurados espanhóis já mais pobres e mesquinhos. Da praia, viram o bote se afastar, aparecer e desaparecer nas ondas até encostar no barco.

          Carlos Droguett em 100 gotas de sange y 200 de sudor  (Santiago de Chile, Zig-Zag, 1961) refaz, na ficção, a vilania do fundador do Chile que muitos historiadores – sempre há os que tudo aceitam e justificam – consideram uma espécie de picardia necessária para a conquista do Chile. Seu romance, que em nada se afasta da Crônica da Conquista, testemunha as blasfêmias e os insultos e o desespero dos homens lesados que se levantam diante do mar. Também, essa voz que se ergue para entoar uma pequena canção: linda voz que aumentava tenuemente e se estremecia na ponta de todas as mãos que apontavam, ao longe, o barco que se diluía no mar distante.

                        Então, saíram todos da praia. Caminhavam, outra vez, em silêncio, sem ver. Apertados, feito nós, caminhavam. Saiu-lhes ao encontro, o tocador de trompete, perguntando se voltavam a Santiago porque ele também para lá estava voltando.

                        Manipulados, desventurados, empobrecidos, impotentes, outra vez pobres, deixavam para trás o mar e o barco que os libertaria para voltar ao ponto de onde haviam partido, uma cidade apenas desenhada. Já nesse distante ano, eles eram os acorrentados da miséria, os Sísifos do Continente.