domingo, 31 de outubro de 1999

As lágrimas.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou  El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando uma das mais belas obras da Literatura Hispano-americana. Partindo das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Núñe de Prado. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas incertezas e indecisões é feito o terceiro capitulo do romance, “El tercer traslado”.

          Os soldados adoecem, tremem de febre e desvarios e, em pouco tempo, vão envelhecendo, vítimas das penúrias, dos trabalhos e dos sofrimentos, também deste abandono dos sonhos quando devem obedecer as ordens que mal entendem. Mas, salvo breve menção,  escutava alguém soluçar que dilui no indefinido um sofrimento de causa ignorada, a narrativa não lhes registra as lágrimas. Sim, a dos capitães.

            Quando Juan Núñez de Prado, sozinho, torna sobre seus passos, para rever a cidade que abandonara, mal dela se aproxima, lembra dos homens que mandara enforcar e soluça e reza na direção da Espanha. Logo, quase correndo, caminha por suas ruas e tem os olhos cheios de lágrimas. E se aproxima de uma casa,  misteriosamente conservada em meio ao abandono e à destruição e tem os olhos cheios de lágrimas. E noutra, ele entra e são objetos esparsos que ele encontra, são papéis velhos e amarelos onde pode ler algum nome de mulher ou de um barco ou de uma cidade antiga. Pedaço de sílaba, datas, números e outra vez, seus olhos ficam cheios de lágrimas. Já de volta, na cidade recém assentada, se submete à decisão de seus homens – uma nova mudança – o quê, na verdade, vem de encontro a seus desejos. Na continuidade desse movimento de fazer e desfazer, de criar e destruir a cidade, ele como que se perde e mergulha em alucinações – a cidade lhe fala e lhe pede clemência, o capitão que ele talvez tenha matado ou que imagina ter morrido lhe parece próximo e quer falar então, ainda uma vez, os seus olhos se enchem de lágrimas. Antes, já pronto para levar a cidade adiante, amontoada nas carretas, vira chegar, extenuado, com seus soldados quase desfalecendo, um grupo de soldados cheios de terra e famélicos, o capitão Miguel Ardiles, montado num cavalo descolorido e devorado pelos tremores e a febre. Vai a seu encontro para dizer que ele e seus soldados já estavam a caminho e o recém chegado desmonta com lentidão e Juan Núñez de Prado pode lhe ver os olhos cinzentos, descoloridos, frios e melancólicos, antes de lhe dizer que devem partir .Miguel Ardiles argumenta que sua gente está cansada e faminta mas ao ver os soldados a carregarem a cidade, percebe que estão totalmente consumidos, mais do que ele próprio ou seus soldados. E pergunta: Senhor, como carregaremos os feridos e os moribundos?  Senhor, eles não agüentam mais, estão morrendo. Juan Núñez de Prado é invadido por uma onda de calor e um soluço lhe sacode a garganta e se abraça em Miguel Ardiles e o sente soluçar também.

          Passam os dias no constante renovar das lides. Há lamentos de soldados e gritos dos capitães e Miguel Ardiles se põe a soluçar, seus ombros fracos são sacudidos pelo choro e as lágrimas correm de seus olhos. Juan Núñez de Prado compreende que ele está com os nervos quebrados, com a vontade quebrada e que não era essa a razão de seus choro – sofrimentos e misérias passadas – mas a solidão acumulada.

          A solidão que os domina a todos e a ele mesmo. Mas, se de suas lágrimas não são conhecidas as razões, ao compreender Juan Nuñez de Prado as do outro, ele deixa entrever os seus próprios sentimentos. E, abandonando-se, como o seu capitão às lágrimas e aos soluços, um e outro, se mostram na grandeza de uma fragilidade que os torna, comovedoramente, humanos.Carlos Droguett faz, assim, renascer a imagem desses distantes personagens que o tempo cristalizou e ao salvá-los do esquecimento, usando, magistralmente, os recursos narrativos próprios do grande ficcionista, refaz um itinerário de dúvidas e sofrimento que sempre foi  eludido pela História no seu renovado intuito de mostrar apenas grandes e vitoriosas façanhas. 

domingo, 24 de outubro de 1999

Os silêncios.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando uma das mais belas obras de Literatura Hispano-americana. Partindo das Crónicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da Cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Núñez de Prado. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas incertezas e indecisões é feito o terceiro capítulo do romance, “El tercer traslado”.                                 

           É um mundo povoado de sons. Murmúrios, risos distantes. Alguma canção cantarolada. Sussurros,  golpes de machado e de martelo. Cacarejos, latidos no meio do bosque. Gritos, tosses, badalar de sinos, chuva caindo, ruídos de armas e de ferros. Disparos. Zunir do vento, relinchos, zumbidos. Em raros momentos, o silêncio. Assustador, para os espanhóis, quando os índios se calam; ou quando, na solidão da noite, ele se instala e Juan Núñez de Prado, olhando para o céu e para a terra o percebe e sente desejo de rompê-lo, chamar os soldados e índios. Ou, necessário: ele se dá conta que está calado e sabe que se silencia os que o rodeiam também o farão. Como a seguir-lhe o exemplo – toma do machado e o crava na árvore – os capitães o olham em silêncio e por sua vez se unem para abater o tronco  já ferido. E também o olham em silêncio, sem mover os lábios, sem um gesto, ao escutá-lo contar a morte de Bazán, espanhol que fora enviado com as cartas de explicações para o Vice-rei. Pergunta se alguém o conheceu, se alguém foi seu amigo. Não obtém resposta, pois eles se calam, duvidam. E, Juan Núñez de Prado também se cala e não diz o que lhe passa na mente: que eles devem pensar que foi ele quem o matou quando, na verdade, não está certo se, realmente,  deu com ele na cidade abandonada que fora visitar ou se está imaginando esse encontro. Então, ouve que a nova mudança já fora decidida na sua ausência – o padre Carvajal achara um lugar maravilhoso, imenso e plano, sem serras nem precipícios,  somente vales suaves, colinas recém insinuados – e os capitães se afastam, sem dizer nada, sem explicar nada, sem olhar para ele e sente que  o estavam expulsando do mundo visível. Mas, se submete à decisão da qual não participara pois lhe faltam certezas. Ao assentar a cidade, pela terceira vez, já hesitara. E o capelão havia perguntado se iriam ficar e respondeu que era um belo bosque ali onde estavam. A pergunta, tornando a ser feita, o fez confessar, com dificuldade, a sua dúvida. E, olhando a seu redor, onde a cidade estava a meio concluir, a meio desfazer, lhe vem o desejo de pegar no braço do padre e lhe explicar ou que ele lhe explicasse.  E entre as casas derruídas e os móveis e as madeiras espalhadas e os soldados  se exaurindo em árduas tarefas, ele não fala e o silêncio instala na narrativa, as lacunas que lhe conferem uma ambigüidade jamais esclarecida. E, assim, essas zonas de sombra que a pontilham – porque os que o rodeiam imitiam o seu silêncio, porque ele deseja rompê-lo, porque os seus capitães calam diante dele e porque ele não cede ao impulso de falar – emergem como um recurso narrativo que irá humanizar o herói da Conquista ao mostrá-lo frágil e sem defesa, imerso na sua solidão.

domingo, 17 de outubro de 1999

As vozes.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades.  Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando uma  das mais belas obras da Literatura Hispano-americana. Partindo das Crónicas  de la Conquista da América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Nuñez de Prado. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá assento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas certezas e indecisões é feito o terceiro capítulo do romance, “El tercer traslado”.
 
           Os capitães clamam, aos gritos, para não se sentirem tão sozinhos. Os soldados amaldiçoam, na penumbra. Juram por Deus ou pela virgem da Macarena. Gritam, no meio da chuva, para se fazer ouvir. Discutem. Em longas conversas, no meio da noite, querem se proteger da solidão.  Embriagados, cantam. Alguém dá explicações, conta as vicissitudes de uma viagem. Com palavras roucas, secas e curtas, os índios, temerosos, falam entre si e  uma  vez, e então repetindo, para convencer, se dirigem aos espanhóis. Mas, sempre, sons distantes, murmúrios. Porque, em El hombre que trasladaba las ciudades, a palavra pertence aos que ordenam. Breves. Parcas. Reticentes. Quando os capitães  falam dos prisioneiros (o que irão dizer, porque não querem pronunciar palavras fatais, embora sejam elas fatais quer as pronunciem ou as calem, o que irão dizer de importante ou terrível ), Guevara diz:  As palavras são sempre terríveis.  Mas, o diz como se não tivesse importância, como se não fosse verdade o que dizia ou não acreditasse ou não lhe importasse ou falasse só por falar, para ganhar tempo. E, Juan Núñez de Prado, ao perguntar a Miguel Ardiles se acredita ser ele é capaz de atraiçoá-lo, o capitão responde: A traição, senhor, é doença de satisfeitos e invejosos ou seja, não lhes concerne pois, estão sempre, e estarão sempre, procurando um melhor lugar para assentar a cidade. E essa busca é a febre que os move, que não admite dúvidas, nem ações postergadas. Em meio ao desvario dos trabalhos e dos planos – faremos uma grande cidade, teremos um castelo medieval, faremos as casas dos principais, edificaremos o quartel, a prefeitura, a casa do bispo e dos corregedores, a casa dos quintos e dos dízimos reais e a mansão de estio do vice-rei – o capelão, padre Carvajal admoesta Juan Núñez de Prado ao percebê-lo sentado numa cadeira: senhor, senhor, governador, príncipe de nossos males e desgraças, senhor de céu e terra, tenente de Deus e do vice-rei, pegaste uma cadeira ao invés de pegar um machado, dois machados  um para cada mão, um para cada árvore [..].
           No exagero  da submissão, ao conferir-lhe, como  senhor de céu e terra, todos os poderes, ao mesmo tempo, o nivela aos soldados que abatem as árvores, incitando-o a pegar no machado E, assim, entre adulações e  reprimendas,  pleiteia o que deseja: duas torres para a sua igreja, dois raios de luminosidade e força e bendições para lançar sobre este punhado de espanhóis sujos e desamparados e espalhados pelas selvas e montanhas. Porém, na hesitação que, na verdade, conduz, sempre, o desejo dos homens de Juan Núñez de Prado, o capelão irá, logo,  se contentar, apenas, com os sinos para guiar o seu rebanho, um tropel de ovelhas  ou carneiros infernais. Mais precisamente subjugá-lo, congregando índios e soldados para insultá-los, dar-lhes medo, amaldiçoá-los. Pois, para o Continente,  diz, não podiam  ter trazido um deus europeu, um cortesão azul ou cor de rosa, fedendo a incenso e a água de rosas  e lágrimas doces e arrependidas[...]Argumento que, pertinente ou falso,  se alia ao menosprezo dos principais ibéricos  pelos seus soldados e pelos índios que, aleatoriamente, acorrentam  às suas ações e que, sem dúvida, esboça uma realidade que não foi percebida pelos conquistadores: a discrepância entre os valores que trouxeram do Velho Mundo (que pretendem impor) e os que encontraram no Continente ( que tentam persistir.)

          Ameaçado, firmemente pelo capelão (armaremos uma revolta e uma traição muito fina e bem organizada e te enforcaremos na melhor castanheira ou figueira ou algarrobo deste bosque silencioso) caso insista em nova mudança, Juan Núñez de Prado responde  triste e sério:  Traição e revolução são frutas de cidades velhas e européias, esquecendo que nas terras das quais está se apossando, sem pejo, ele repete as velhas fórmulas - violências, imposição da vontade em nome de verdades, certamente discutíveis,  desprezo pelos comandados, impunidade para os detentores do poder- caducas mas não por isso menos em desuso.
 
           Assim, nessa recriação do itinerário dos conquistadores, as vozes que se elevam são unicamente  as daqueles que – valha o repetido lugar comum – sempre tiveram voz. E jamais para dizer a verdade. E  sempre para impor razões. Em nome do Rei, em nome de Deus, em nome de seus próprios desejos.
 

 

           

 

domingo, 10 de outubro de 1999

Os gestos.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem  se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando uma das mais             belas obras da Literatura Hispano-americana. Partindo das Crónicas da Conquista da América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Núñez de Prado.  Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá  asssento pela terceira vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas certezas e indecisões é feito o terceiro capítulo do romance, “El  tercer traslado”.                        

          Os soldados acreditam ter chegado e Juan Núñez de Prado, o capitão, sabe do que é acusado e quão próximo se acha o momento em que deve enfrentar o inevitável. E a grande aventura da Conquista, prossegue. São duzentos espanhóis, são duzentos índios que  avançam Continente adentro. A narrativa que acompanha seus passos não lhes enuncia as razões mas, ao registrar seus gestos, permite vislumbrar significados: os da cordialidade (a mão que se levanta para cumprimentar ou mostrar algo, o braço a se apoiar no ombro do  companheiro, a cadeira afastada para ceder lugar,  a mão que oferece a jarra de vinho), os da espontaneidade (segurar a capa nos ombros, se espreguiçar, acender uma tocha e pendurá-la, chutar um sapato extraviado), os da rotina (o ir e vir das sentinelas, as armaduras  tiradas ou colocadas, segurar as rédeas do cavalo ou desmontá-lo,  o carregar o arcabuz).

                        São gestos que humanizam esses homens que a História transformou em sombras vagas, perdidas no tempo. Por vezes, aprofundando o significado das palavras e das intenções: quando o capitão Guevara  faz uma pergunta da qual já conhece a resposta, ele cruza as pernas para fazer mais definitivas suas palavras, para deixá-las aí, visíveis, imóveis e fatais. Ou, quando  anuncia que irão matar aqueles que são reticentes à mudança, se mexe um pouco na cadeira para comprovar sua própria vilania, para verificar que toda sua carne e seu sangue e seus músculos estavam aí, inteiramente, e que estavam despertos e comprovados e que possuíam toda a sua força bárbara.

                        Induzidos por um  desesperado querer, os gestos efetuados pelos soldados, visando a construção da cidade: eles cavam a terra, levantam pedras enormes, dão golpes de pá e de martelo, medem tábuas, as amontoam junto às árvores, carregam móveis, portas, janelas, juntam cadeiras e mesas que as carretas carregadas vão perdendo. São gestos daqueles que almejam se fixar, encontrar, no Novo Mundo, a terra onde deitar raízes. Soldados famélicos, desocupados, desorientados cuja presença se disfarça num pronome indefinido – alguém pregava umas tábuas, alguém ainda trabalhava na cidade – com o qual o romancista os situa como parte da massa anônima e desconsiderada que  permitiu, com seu esforço e submissão, a posse do Continente e que não teve consciência do real significado de seus gestos predatórios. Porque eles atiram, aleatoriamente, nos pássaros: os pássaros se incrustavam no alto, enormes e trêmulos, pareciam, como ele, mortos de frio e de desconfiança, sabia que olhavam para ele com estranheza, com uma estranha proximidade, como se esperassem algo dele, uma palavra de saudação ou conhecimento, umas frases de explicação ou de consolo, ele  apertava sem forças o arcabuz [...], movia os dedos, tratava de se tornar malvado, sanguinário, assassino fácil, mas estava cansado, tinha vontade de ir embora, de ficar adormecido até o outro ano, soavam os ferros em suas frontes e os pássaros abriam os olhos de um modo espantosamente frio e hostil e via a fumaça desmanchar-se com frouxidão, com certa desbotada doçura entre as plumas desfeitas. Porque levantam raízes, cortam árvores,  descarregando, com violência, o machado nos troncos: a árvore se bamboleava, graciosamente, ainda se queixava por dentro, viam os seus galhos se expandir no sol, se abrirem dolorosos e grotescos enquanto os machados balançavam o tronco, balançavam a terra.

                        E, nesse intuito de erguer a cidade, Juan Núñez de Prado ( agarrou o machado e o afundou na árvore até derrubá-la) e seus capitães (empurravam, depois, com todas  as mãos juntas o tronco da árvore que rangia levemente e se inclinava) e o capelão (o padre derruba outro tronco) e o médico (açoitando  a árvore de todos os lados) e os soldados (golpeavam os troncos das árvores e rompiam a terra) abatem bosques inteiros, despedaçando um mundo verde que, depois, abandonam, para recomeçar mais adiante.

                        É uma posse perseguida a qualquer custo. E os verbos açoitar, golpear, cravar, afundar, rebentar expressam a violência que impulsiona cada gesto, traduzindo a visão de mundo que norteou aqueles que chegavam ao Continente. Um abrir caminho através de bosques e montanhas e feridas de soldados e de árvores.

domingo, 3 de outubro de 1999

Os risos.


Em 1973, a Noguer de Barcelona, publicou El hombre      que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando umas das mais belas obras da Literatura hispano-americana. Partindo das Crónicas da Conquista da America a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, a mando do Vice-rei do Peru, fundada por Juan Núñez de Prado. Ameaçado pelos espanhóis do Chile, quer salvá-la e para isso a muda de lugar três vezes. Mal lhe dá o assento pela terceira  vez, o medo de perdê-la o leva a planejar uma nova mudança. De suas certezas e indecisões, é feito o terceiro capítulo do romance, “El tercer traslado”.
 

          “El tercer translado”  se inicia com o diálogo entre Núñez de Prado e Miguel Ardiles, um de seus capitães que lhe anuncia a vinda próxima de soldados do Chile para prendê-lo. Aferrado a suas convicções –  transferir a cidade para que não caia em mãos estranhas – Juan Núñez de Prado tenta convencer seus capitães. Ao  redor, os soldados e os índios povoam o cenário,  conferindo-lhe o movimento perfeito para que nele aconteça o grande drama individual do conquistador, dado a conhecer por um narrador que, de diferentes pontos de vista, lhe desvenda a alma . Porém, desses soldados, muito pouco se lhes ouve a voz e somente em esparsas e distantes conversas.  Embora instrumentos da conquista – então, armados e belicosos – no romance de Carlos Droguett eles se desenham sempre  feridos, doentes, debilitados ou executando tarefas, presumivelmente, próprias da instalação de uma cidade a partir do nada: traçando-lhe as ruas, cavando-lhe os fossos protetores, construindo-lhes as casas. Breves seqüências testemunham essa presença, muitas vezes, apenas lhe mencionando o riso.  Ou, mostrando o soldado da conquista no abandono de um gesto rotineiro – riam baixo, acendiam fogueiras e faziam comida junto dos móveis, riam, bebiam água fresca na concha das mãos - ou lhe deslindando sentimentos  quando ri feliz,  alegre, impiedoso, com o riso amigável e medido ou sinistro ou cruel, revolto e pegajoso, quando ri com escárnio ou  se expressa com o sorriso gelado dos enfermos.

            Também, revelador de sentimentos, - poucas vezes eles riem  espontaneamente – o riso dos capitães e de Juan Núñes de Prado. Assim, o riso de Guevara, tranquilo, lúcido e alvoroçado chega até os soldados ocupados nas suas lides, como um  riso feliz, aturdido e europeu ou embriagado que os acalma, os faz  sentir-se em segurança, ao abrigo de espionagens e traições.  Em outro momento, porém, ri com nojo, desavergonhadamente diante das dúvidas provocadas pela ida, sem regresso, de um mensageiro, enviado para explicar às autoridades da Colônia as razões das mudanças da cidade e as mortes e ela relacionadas. E com tristeza, sorri o capitão Santa Cruz; cruel e sem esperanças, o riso do médico ao se aproximar dos condenados à forca; para se resguardar, se refugia no riso, o capitão Ardiles .Sem enfado e extravagante ou por condescendência, desejando rir, Juan Núñez de Prado. Seu riso é feliz ou nervoso. Inexplicavelmente obscuro, quando ri ao ver a carreta, desconjuntada (estava repleta de móveis e roupas e índios) deslizar, vagarosamente, pelo abismo. E cheio de susto, claro ou alegre ou maravilhado, o riso dos índios. Submetidos, não levantam a voz  se movem como sombras, trabalhando na destruição e na reconstrução da cidade, como os soldados. Uns e outros a  viver em meio às humilhações, aos maus tratos e aos árduos trabalhos, alheios ao que acontece nesse  desbravar Continente adentro. Então, os risos dos ibéricos  oprimidos e dos índios  subjugados se iguala. Irrompe como um desejo de vida em meio a todas as perdas.

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