domingo, 26 de setembro de 1999

A transformação.

          Em outubro de 1959, Pablo Neruda, num breve texto amoroso, consciente paródia do estilo do século XVI, diz o crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal, oferecia a  Matilde  Urrutia, os sonetos que a Editora Losada de Buenos Aires irá publicar  nesse mesmo ano:Cien sonetos de amor.  Uma  “centúria”, diz  o poeta, dos que rotula mal chamados sonetos, numerados com algarismos romanos e reunidos sob quatro momentos do dia: Mañana,  Mediodia, Tarde e Noche. Eles dizem da  mulher amada e do amor. Eventualmente, de um mundo nem sempre  receptivo, alguma vez, de utopias.

           O primeiro soneto se inicia com o nome  Matilde que irá aparecer, também, nos sonetos XXIII, XL, L, LI, LXII. Nominada ou não  ela será  presença constante (salvo, talvez, duas ou três exceções), mais precisamente, a razão de cada um deles.

          Na primeira parte, “Mañana”(Manhã), formada por trinta e dois poemas, Pablo Neruda define o amor que o habita (te amo como a planta que não floresce e leva/dentro de si, escondida, a luz daquelas flores) e que, em alguns sonetos,  aparecerá como um sentir que amalgama os amantes, fazendo deles um ser único, indivisível (e hoje diante do mundo somos uma só vida). E que busca o eterno ao não ter começo (  no soneto XII diz desse encontro que é anterior ao momento em que  pousou os olhos em Matilde Urrutia pela primeira vez) e que ele dispõe não terá fim porque – os amantes mortos – irá continuar a resplandecer sobre a terra. Como deseja eterna a figura da mulher amada (e navegue tua estátua pelo cristal eterno) desenhada na beleza das pedras, dos frutos, dos astros, dos cereais, do gosto e dos aromas.

           No poema XXVII, esses elementos se acrescentam – lua, maçã, trigo, estrelas, ouro – para louvar a nudez da amada que ele percebe simples e compara com uma de suas mãos e a quem se dirige, logo no primeiro verso. No segundo , acumula adjetivos sem valor poético (lisa, terrestre, mínima, redonda), para, no verso seguinte, usar metáforas inesperadas (linhas de lua, caminhos de maçã) e no último do primeiro quarteto, compará-la à esbeltez do trigo maduro.

            No segundo quarteto, expressões afirmativas a definem:  es azul, es enorme e amarela num inusual uso das cores que se ameniza ao ter como segundo elemento da comparação a noite em Cuba, o verão numa igreja de ouro.

            O primeiro terceto se inicia, como as estrofes anteriores, com a palavra Desnuda, (Nua) a qual se destinam, outra vez, adjetivos prosaicos (curva, sutil, rosada), como a comparação que os antecede (pequena como uma de tuas unhas) .  Antepõem-se à metáfora que na estrofe anterior lhe concede, juntamente com ser azul ou ser amarela, um perfil feérico:  tens trepadeiras  e estrelas no cabelo. Mas, já no segundo verso, deste primeiro terceto,  acontece a quebra  desse feérico na intercalação de uma nota cotidiana, até que nasça o dia. Então, a amada penetra no mundo, um outro mundo,  diferente daquele em que estivera e que é, certamente, escuro porque ali estão as palavras subterrâneo, longo túnel, trabalhos e roupas;  ali estão os verbos apagar, vestir, desfolhar,  registrando a transformação dessa claridade que a envolve e que volta a ser algo de tão simples e despojado como ser a mão nua.

              Na verdade, o soneto XXVII se encerra nessa simplicidade:o primeiro verso, comparando a nudez da amada com uma de suas mãos e o último, pensando na claridade dessa nudez que, metaforicamente, torna a ser a mão despojada. Esquecendo as normas de versificação própria do soneto, economizando recursos estilísticos, Pablo Neruda não despreza palavras que o linguajar poético tenderia a ignorar. Aproxima-se, assim, desse  soneto de madeira, como explica na dedicatória a Matilde Urrutia, que deseja distante daqueles em que os poetas dispuseram rimas que soaram com o som da prata, do cristal ou do ribombar do trovão.  

              E, assim sem a rima  e sem o  ritmo, sem o brilho das altissonantes  palavras  poéticas o seu poder de mago da expressão lírica se mostra  nesse delinear, com o quase nada das comparações e das metáforas, do corpo da  mulher amada.

domingo, 19 de setembro de 1999

Náiade.

          É um canto de amor a Matilde Urrutia. Começa a escrevê-los em 1957: sonetos que da forma poética tradicional guardam, apenas, os quatorze versos, pequenas casas de quatorze tábuas para que nelas vivam os olhos que ele adora e canta, explica na dedicatória à mulher amada.  Logo em 1959, numa edição privada, é publicado o livro em Santiago e no mesmo ano, pela Losada de Buenos Aires: Cien sonetos de amor.  

           Numerados em algarismos romanos, se apresentam  os sonetos sob quatro rubricas, designando os momentos do dia, “Mañana”, “Mediodia”, “Tarde”, “Noche”, talvez o próprio ciclo da vida. Uma seqüência  feita de uma ou outra rápida incursão em discerníveis episódios reais, mas, sobretudo, de símbolos, na verdade transparentes, porque em cada verso ou em quase todos, está presente Matilde Urrutia: manzana carnal, luna caliente,  espeso aroma de algas, lodo y luz machacados”, diadema, radiante magnolia desatada em espuma. Matilde, a de cabellera palpitante, a de  ojos color de luna, a de diminutas orejas, a de nariz soberana. Uma presença que se faz mais próxima nos versos em que o poeta a ela se dirige, interlocutora silenciosa, delineando contornos com surpreendentes combinações estilísticas: eres de pan, de pan amado por el fuego, eres compacta como el pan o la madera, éres el momento amarillo en que el otoño sube por las enredaderas, eres el pan que la luna fragante elabora paseando su harina por el cielo.

          Assim, no  soneto XXXIV de  “Mediodia”, o poeta a ela se dirige para dizer que é filha do mar e prima do orégano. Um poético e um prosaico enredando-se e se completando nos versos seguintes quando aos dois epítetos – nadadora e cozinheira -, verdadeiras expressões comezinhas, se acrescentam  em definições  laudatórias ( teu corpo é de água pura, teu sangue é terra viva) que serão seguidas, no segundo quarteto, pela apresentação dos poderes que, no entender do poeta, possui a mulher amada: um olhar que, posto nas águas, levanta as ondas, umas mãos que postas na terra fazem rebentar as sementes.        No primeiro terceto retoma o   que  foi dito no início do poema para mostrá-la, outra vez, nadadora,  agora enaltecida pela palavra náiade , ninfa em movimento no azul perfeito e,  outra vez, na cozinha, ressurgindo em flores.

            A exaltação do corpo feminino, expresso metaforicamente ou pela comparação com a figura mitológica ou pela aproximação a um elemento vegetal, através do verbo florescer, continua a apresentá-la, um ser mágico,  ligada aos elementos  água e terra. Porém, neste soneto XXXIV, o poeta se detém, sobretudo nas qualidades que lhe atribui: a  de ter hábitos  floridos e terrestres, a de assumir tudo quanto existe. Apenas no ultimo terceto é que expressará o sentimento que o une à mulher que descreve, ao dizer que no fim de um dia  vivido entre  a água e  a terra ela dorme nos seus braços  protetores que  afastam para que descanse,  o que  acredita ser a matéria dos seus sonhos, algo tão simples como os legumes, as algas, as ervas.

             Entre tantos outros sonetos  que  a desenham como mulher e como companheira – ela foi o seu refúgio, a água para seu corpo sedento, uma fonte de vida, o seu guia nos caminhos da vida, a guarda de seu sono -  e aqueles em que irá cantar o amor em mil nuanças que lhe dedica - o encontro mágico, o fundir dos corpos e das almas, o insaciado e sempre renascido desejo, o eterno do sentir que os une, a ternura que ressurge em cada dia - neste  soneto  XXXIV, quase uma exceção, é o poeta que a protege adormecida. Porque embora seja possuidora de poderes mágicos, ela,  no final do dia, se fragiliza.  Seu repouso é, então, cuidado pelo poeta que, por sua vez, se mostra capaz de efetuar prodígios: conhecer-lhe os sonhos e ter o poder de neutralizá-lo. E o poema se adensa nessa confissão. As expressões correntes – rodeada por mis braços, para que tú descanses - , ladeadas por aquelas feitas de símbolos – sombra sombría, la espuma de tus sueños – desnudam sentimentos que os versos anteriores não deixam prever. E um inesperado e profundo lirismo se instala.

domingo, 12 de setembro de 1999

As educadoras.

          Elas ensinaram e criaram escolas num momento em que a sociedade era regida, exclusivamente, pela vontade masculina. Por vezes, sofreram perseguições políticas ou foram criticadas ou caluniadas. Mas, não somente se mostraram capazes de superar empecilhos, oriundos da mediocridade das idéias feitas, como abriram caminhos:  o primeiro curso noturno de alfabetização de adultos, a primeira escola mista gratuita para crianças,  a primeira profissionalização como jornalista, a criação de um método próprio para as escolas maternais, o estabelecimento de creches, a preconização da ginástica desde os sete anos. E, servindo-se da palavra, se antepuseram, de muito, a seu tempo. Entre as cinqüenta e duas mulheres escritoras que fazem parte do volume Escritoras brasileiras do século XIX (Editora Mulheres de Florianópolis e EDUNISC de Santa Cruz do Sul, 1999), encontram-se Nísia Floresta Brasileira Augusta, considerada a primeira feminista do Brasil, autora do livro  Direito das mulheres e injustiças dos homens que trata do Direito da mulher à instrução e ao trabalho (Recife, 1932) e Maria Firmina dos Reis, autora de   Úrsula, (São Luiz, 1859), o romance brasileiro que, antes de todos, tratou da  Abolição da Escravatura. Ambas, como as demais  (ao todo são quinze), se dedicaram ao  ensino  e ao ofício de escrever: peças pedagógicas, poemas, contos, romances e páginas que advogam o direito da mulher à educação.

          Nascida em 1847, em Porto Alegre, Luciana Maria de Abreu, conclui o  curso de magistério e logo, no ano seguinte, inicia a sua carreira cuja atuação, diz Rita Terezinha Schmidt que assina em Escritoras brasileiras do século XIX   o estudo que lhe é dedicado, se destaca “pela coragem com que abordava questões sociais, principalmente a referente ao direito da mulher à educação”. Se, como diz, ainda, a articulista, ela não deixou de ser vista “sem desconfiança e inquietação por uma sociedade monárquica e provinciana, eivada de preconceitos e restrições quanto ao papel da mulher no contexto social”, ao se mostrar uma  “pioneira e reformista”, foi reconhecida por “figuras de projeção no meio intelectual da época”. José Antonio do Vale Caldre e Fião,  autor de A divina pastora (1847) e  Enciclopédia dos conhecimentos úteis 1849), quando Presidente do “Partenon Literário” a convida para figurar entre seus oradores. Três dos discursos  que  proferiu, publicados pela Revista Partenon Literário, apareceram, em 1949, em Preleções com prefácio e estudos de Dante de Laytano. Desse volume que saiu sob a chancela do Museu Júlio de Castilhos de Porto Alegre, foram tirados os excertos que ilustram o texto de  Rita Terezinha Schmidt.

          O discurso “A educação das mães de família”, Luciana Maria de Abreu o inicia, prudentemente, com expressões de humildade: “eu fraca mulher”, “sem título algum que autorize minha presença aqui” e, logo mais adiante, “pouco abusarei de vossa complacente atenção”.  Porém, não se intimida ao relacionar os preconceitos presentes nas relações entre os sexos que estão na origem das calúnias e das conviccões que as rotulam  de inconstantes, mesquinhas, desrespeitadoras de seus deveres, incapazes de grandes cometimentos e de grandes ações, apenas destinadas a ser “meros instrumentos do prazer e das conveniências do homem”. E, assim, condenadas à ignorância, privadas dos direitos dos cidadãos. Argumenta que é do ensino feminino que se fazem ös mais perfeitos heróis da humanidade”, que é a mulher a preparadora do coração de seus filhos para a virtude e para o amor ao progresso e à liberdade. E, ao se mostrar vulnerável, passível dos defeitos que lhe atribuem – frívola, descuidada, pretenciosa, submissa - tal se deve à educação  recebida que lhes nega o direito de pensar. Então pede, em nome das mulheres o direito à instrução superior, à liberdade de se instruir, de exercer as profissões para as quais tenham aptidões. Consciente de que lhes compete um papel na sociedade, não se exime de lembrar àquelas a quem se dirige  de que desse papel devem se compenetrar.
          Entre figuras de retórica ao gosto da época, uma defesa da mulher calcada na figura materna, em  Eva “a mãe do gênero humano” e em Maria  “mãe da graça bendita”, esse dizer de Luciana Maria de Abreu se esmaeceria  caso fosse esquecido o momento em que  o enunciou: um Brasil monárquico e escravagista. Razão a mais para lhe conceder o inegável mérito de ser, esperançoso e corajosamente reivindicatório  nesse  tempo em que às mulheres era  dado, apenas, o direito de serem subalternas.

 

domingo, 5 de setembro de 1999

As desbravadoras.

          Não havia escolas e as poucas existentes eram freqüentadas por meninos. Idéias errôneas sobre a atuação feminina fora  do ambiente recluso do lar, eram muitas.  Ainda, assim, aconteceu que mulheres se dispusessem a escrever e, embora esquecidas ou ignoradas pela crítica, deixaram suas palavras impressas.

          Organizado por Zahidé Lupinacci Muzart, o volume Escritoras Brasileiras do Século XIX, publicado neste ano pela Editora Mulheres de Florianópolis e Edunisc de Santa Cruz do Sul as resgata do olvido. Ao todo são cinqüenta e duas. Segundo esclarece a organizadora, ao apresentar os critérios que nortearam o trabalho, houve intenção de tratar as escritoras de todos os estados brasileiros o que, no entanto, não pode ser feito por falta de material.  Assim, presentes no volume, sobressaem em número, as do Rio Grande do Sul, Bahía e Rio de Janeiro. Nascida no  Paraná, apenas Júlia da Costa mas, como a partir dos dez anos, quando lhe morreu o pai, até o fim da vida, residisse em São Francisco do Sul, terra natal da mãe, foi incluída entre os escritores catarinenses. No dizer de Zahidé Lupinacci  Muzart, ela se antecipou à sua época. Evidentemente, sofrimentos não lhe foram poupados na pequena cidade em que passou os seus dias e sua  obra foi disso uma expressão como  também para tantas outras mulheres escritoras que fazem parte do volume. Algumas, porém, pretenderam ir além de seus  devaneios e de seus  parcos horizontes e se expuseram num dizer reivindicatório  verdadeiramente desbravador.

          Entre elas, as que se posicionaram politicamente como republicanas, abolicionistas ou contra os farroupilhas da Guerra dos Farrapos. Outras, que desvendaram suas ânsias secretas. Ainda, as que defenderam a liberdade da mulher, o direito ao voto, o direito à palavra e mais ainda, o direito de pensar. Isto,  na verdade, em síntese, nada mais  é do que  o direito à educação, pregado, com ênfase, sobre tudo por Nísia Floresta Brasileira Augusta.Também, as que discutem a soit disant   superioridade masculina e a emancipação feminina  cuja voz uma das primeiras e mais fortes pronunciada no Brasil, no século passado, foi a de Josefina Alvares de Azevedo.

           Com freqüência,  esse desejar dizer obrigou-as a enfrentar preconceitos  e, então, se esconderam sob pseudônimos – se resguardavam de possíveis ataques - mas não  se calaram. E, aceitas ou não,  escreveram poemas, contos, crônicas, artigos, peças de teatro. Trataram do amor e da vida, dos desacertos, dos sonhos, das ilusões, das tristezas e saudades. Fundaram jornais, criaram escolas, ditaram conferências.

            Muito bem escritas, são mais de novecentas páginas sobre elas num  documentado trabalho.   Resultante de um projeto de pesquisa, integrado pelas Universidades Federal do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e  pela Fundação Casa de Rui Barbosa,  seu valor  não está apenas   no estudo das figuras femininas das Letras brasileiras do século passado e na reprodução de alguns de seus textos. Também, no possibilitar, com a bibliografia que acompanha cada um dos estudos,  novas aproximações  às escritoras e suas obras. O assunto é deveras instigante e  se prestará à pesquisas  que, ao aprofundar um tema nacional onde há, ainda, muito o que explorar será de um irrefutável mérito até porque, num país em que a atração do alienígena impregna também, muitas vezes, a Universidade, orientando pesquisas que pouco tem a ver com os seus interesses, é extremamente valioso  um trabalho  voltado  para as suas origens.

             Considerando as distâncias a serem vencidas pela dimensão do país, os conhecidos empecilhos e obstáculos a se anteporem a esforços dessa natureza, o resultado a que chegou Zahidé  Lupinaci  Muzart e sua equipe  é, sem dúvida, surpreendente. Não apenas louvável, como um exemplo a ser seguido.