Da
carreta se via a fazenda como se vêem as pedras nas
encostas das serras, como se vêem
as árvores na beira do caminho. Como coisas de Deus, do destino, da fatalidade.
Fazendas arborizadas, casas firmes, alguma
pequena torre. Por que estavam elas encravadas nos cerros e tinha a carreta que
rodar como rancho sobre rodas, sempre na estrada, sem achar um pedaço de terra que
fosse de ninguém? Será que não haveria um campo no mundo, para dar de comer aos
bois sem ter que pedir licença, um palmo de terra para semear um pouco de milho
e esperar a colheita? Não haveria na terra tão grande, tão grande um pedaço de
terra sem dono?
Dos
vinte anos até 1960, ano de sua morte, Enrique Amorim foi publicando,
ininterruptamente e o resultado foi uma obra muito vasta, compreendendo poesia, contos, ensaios, teatro
e romance. Entre eles, La Carreta,
que apareceu, pela primeira vez, em 1932.
Na
Literatura latino-americana, é, sem dúvida, uma obra muito especial. Não apenas
pelas dúvidas que provocou entre os críticos a respeito de sua estrutura, como
pela curiosidade, entre os estudiosos, a respeito de sua composição que se
estendeu por vinte anos, mostrando-se em edições sucessivas, das quais a
última, considerada definitiva, é de 1952.
Se
houve um grande número de mudanças no seu texto – e a edição do Fondo de
Cultura Econômica (1996) apresenta as diferentes versões – a sua intenção primeira,
refletir uma certa estrutura social,
elaborar uma nova leitura da realidade, permaneceu a mesma.
Em
breves textos, Enrique Amorim fixa tipos e cenas populares que,
verdadeiramente, se constituem um documento sobre a vida no campo uruguaio. Num
admirável poder de síntese, em algumas linhas, esboça perfis acabados. Assim, o
de Cipriano, jovem dono da fazenda, observado, de longe, pela empregada. Do narrador, breve menção a seus hábitos:
fazer uma sesta curta, atravessar o pátio e ir no galpão conversar com a
peonada. Da janela de seu quarto, Tomasa
o observa, retendo cada gesto e até algo de seu olhar.
Também,
algumas linhas bastam para fixar um dia de domingo. Pequenas frases que se
prendem a um detalhe do vestuário, ao esboço de um gesto, à referência de um
modo de ser para compor o quadro perfeito desse viver espontâneo de um casario
à beira da estrada. Muitas vezes, filtrando-se no texto, a intenção de um dizer
preocupado com o ser humano e seus direitos: a história de Florita, adolescente
ainda, vendida pelo pai de criação para
se ressarcir dos gastos que teve com o seu sustento ou o desprezo no trato com
a mulher. Outras, a clareza da frase comprometida para plantear situações
próprias dessa estrutura social tradicional que marginaliza: o pequeno texto em
que alude ao latifúndio ou aquele em que menciona rapidamente os que mal têm um
lugar ao sol: um velho cego, muitas crianças que parecem viver sem pais, os
dois sujeitos continuamente perseguidos pelo delegado, os miseráveis
tripulantes do barco, dobrados de carregar sobre os ombros, caixotes cujo
conteúdo jamais conheceram. Sempre, uma transparência a denotar o desejo de
se fazer compreender pelas pessoas do povo. E isto, no dizer de Mercedes
Ramirez de Rosiello, no seu estudo “Las circunstancias del escritor”, foi um
objetivo que Enrique Amorim jamais
abandonou: dizer, sem mentiras, do campo e dos que nele vivem.
E,
certamente o fez, nesse querer, acumulando belezas.


