domingo, 20 de junho de 1999

60 mortos na escada: os interlocutores


Meus amigos, eu não invento nada,  somente falo do que existiu, do que se passou naquela  enorme casa. Uma vez existiram sessenta e três rapazes. Passaram uns uniformes, passaram as balas e ficou o sangue, mostrando o lugar em que eles, antes de morrer, viveram.

 

          O romance se inicia com um vocativo meus amigos e, brevemente, reflete sobre o esquecer e o lembrar. Num hipotético diálogo, o narrador chama os eventuais interlocutores de eternos bondosos, aqueles que dizem ser bom  o esquecimento. Mas ele, insiste: é preciso que lembremos muito, muitíssimo, raivosamente, antes de esquecer um pouco. E’ que  precisa falar sobre “esse terrível e rápido que aconteceu na cidade há exatamente um ano atrás. Então, se permite longas digressões – um eu que se interroga, se expõe – onde se insere o vocativo amigos, retomando o laço com os interlocutores para somente na página quarenta e oito retornar à lembrança que lhe motiva esse dizer e que ele divide com  esses  a quem se dirige. E’ quando menciona o momento em que eles, como ele, começaram  a saber que houvera uma rebelião de estudantes e que  parece, todos  haviam mortos. Para novamente se perder em reflexões sobre o trabalho, sobre a vida miserável  nos cortiços e já no segundo capítulo se dirigir, outra vez, aos interlocutores que tanto quanto ele sabiam  que a desejada mudança de governo não ocorrera. Novas digressões sobre o mês de setembro – o mês das revoluções, o mês que é pai da Pátria – para, novamente, o vocativo cúmplice aparecer vocês conhecem a Universidade. Só então, o relato dos acontecimentos se inicia:  os jovens que se entrincheiraram na Universidade, se rendem diante das armas e se deixam conduzir para o prédio vizinho, o Seguro Obrero onde  são mortos, um a um. Também a esse relato se mesclam as digressões – momentos de vivências de um ou outro estudante, expresso, inclusive pelo fluir da consciência –  e o vocativo seguido de uma súplica: não esqueçam. Vocativo que iniciará o último capítulo. Nele se completa o tempo cronológico – umas doze horas – em que se encerra a narrativa. Entre dados objetivos (eram umas dez horas da noite, não havia bondes, não era permitido passar pelas ruas do centro, em cada esquina havia homens uniformizados) e observações sobre o que acontecia no jornal  em que trabalhava onde fotos sobre as mesas registravam o que ocorrera, o narrador insere brevíssimos textos  sobre o epílogo do sucedido e, agora, se dirige a um companheiro de trabalho, nominado, que tuteia enquanto o observa dormir: “Mortos demais para só uma tarde de primavera. [...].Estão todos mortos, mataram a todos, companheiro.

          Quando chega a hora de ir embora do jornal sabe, apenas, o que as duas fotos mostram – os rebeldes, caminhando na rua com os braços levantados ou depois, diante da enorme casa banhada de sol e o que dizia o jornal: Todos os revoltosos tinham morrido.

            E’ com pena e com raiva que chega em casa e quer acordar a mulher para contar-lhe. Mas, antes, outra vez, se dirige aos amigos dizendo: ainda me lembro (nunca tive muita memória) que lhe estive dizendo:-escuta, escuta, mataram a todos.

            Essas mortes  institucionalizadas que aconteceram no dia 5 de setembro de 1938, na capital do Chile, emocionaram, profundamente a Carlos Droguett e um ano depois, para lembrá-las, publica uma crônica, “Los asesinados del Seguro Obrero” em que relembra o fato. Anos mais tarde, quando parecia que essas mortes tinham sido esquecidas, Carlos Droguett retoma o assunto e entre o inverno de 1951 e o verão de 1952, reelabora o texto da crônica e, acrescentando outros, publica o seu primeiro romance, 60 muertos en la escalera (Nascimento, Santiago).

            Profundamente inovador na Literatura Chilena da época, ele se distingue, também pela postura comprometida com o ser humano que não lhe permite aceitar a matança dos jovens rebeldes, ainda  que adotassem princípios ideológicos com os quais não compartilhava. No relato, a sua emoção quer testemunho e ao se dirigir àqueles que também sabem dos fatos, os que chama de meus amigos, tenta  não apenas fazer pensar naquilo que se passou mas, de certa maneira, levar  os interlocutores a sentir  a responsabilidade que possui  (ou deve possuir) cada ser humano na desgraça do outro. Um recurso narrativo que deseja a aproximação com o leitor para, assim,  fazê-lo compartilhar de sua tristeza e de seu horror.                        

 

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