Meus amigos, eu não invento
nada, somente falo do que existiu, do
que se passou naquela enorme casa. Uma
vez existiram sessenta e três rapazes. Passaram uns uniformes, passaram as
balas e ficou o sangue, mostrando o lugar em que eles, antes de morrer,
viveram.
O romance se inicia com um vocativo meus amigos e, brevemente, reflete sobre
o esquecer e o lembrar. Num hipotético diálogo, o narrador chama os eventuais
interlocutores de eternos bondosos, aqueles que dizem ser bom o esquecimento. Mas ele, insiste: é preciso
que lembremos muito, muitíssimo,
raivosamente, antes de esquecer um pouco.
E’ que precisa falar sobre “esse terrível e rápido que aconteceu na
cidade há exatamente um ano atrás.
Então, se permite longas digressões – um eu que se interroga, se expõe – onde
se insere o vocativo amigos,
retomando o laço com os interlocutores para somente na página quarenta e oito
retornar à lembrança que lhe motiva esse dizer e que ele divide com esses
a quem se dirige. E’ quando menciona o momento em que eles, como ele,
começaram a saber que houvera uma
rebelião de estudantes e que parece, todos haviam mortos. Para novamente se perder em
reflexões sobre o trabalho, sobre a vida miserável nos cortiços e já no segundo capítulo se
dirigir, outra vez, aos interlocutores que tanto quanto ele sabiam que a desejada mudança de governo não
ocorrera. Novas digressões sobre o mês de setembro – o mês das revoluções, o
mês que é pai da Pátria – para, novamente, o vocativo cúmplice aparecer vocês conhecem a Universidade. Só então,
o relato dos acontecimentos se inicia:
os jovens que se entrincheiraram na Universidade, se rendem diante das
armas e se deixam conduzir para o prédio vizinho, o Seguro Obrero onde são mortos, um a um. Também a esse relato se
mesclam as digressões – momentos de vivências de um ou outro estudante,
expresso, inclusive pelo fluir da consciência –
e o vocativo seguido de uma súplica: não esqueçam. Vocativo que iniciará
o último capítulo. Nele se completa o tempo cronológico – umas doze horas – em
que se encerra a narrativa. Entre dados objetivos (eram umas dez horas da
noite, não havia bondes, não era permitido passar pelas ruas do centro, em cada
esquina havia homens uniformizados) e observações sobre o que acontecia no
jornal em que trabalhava onde fotos
sobre as mesas registravam o que ocorrera, o narrador insere brevíssimos
textos sobre o epílogo do sucedido e,
agora, se dirige a um companheiro de trabalho, nominado, que tuteia enquanto o
observa dormir: “Mortos demais para só
uma tarde de primavera. [...].Estão todos mortos, mataram a todos,
companheiro.
Quando chega a hora de ir embora do
jornal sabe, apenas, o que as duas fotos mostram – os rebeldes, caminhando na
rua com os braços levantados ou depois, diante da enorme casa banhada de sol e o que dizia o jornal: Todos os revoltosos tinham morrido.
E’
com pena e com raiva que chega em casa e quer acordar a mulher para contar-lhe.
Mas, antes, outra vez, se dirige aos amigos dizendo: ainda me lembro (nunca
tive muita memória) que lhe estive dizendo:-escuta,
escuta, mataram a todos.
Essas
mortes institucionalizadas que aconteceram no dia 5 de setembro de 1938,
na capital do Chile, emocionaram, profundamente a Carlos Droguett e um ano
depois, para lembrá-las, publica uma crônica, “Los asesinados del Seguro
Obrero” em que relembra o fato. Anos mais tarde, quando parecia que essas mortes
tinham sido esquecidas, Carlos Droguett retoma o assunto e entre o inverno de
1951 e o verão de 1952, reelabora o texto da crônica e, acrescentando outros,
publica o seu primeiro romance, 60
muertos en la escalera (Nascimento, Santiago).
Profundamente
inovador na Literatura Chilena da época, ele se distingue, também pela postura
comprometida com o ser humano que não lhe permite aceitar a matança dos jovens
rebeldes, ainda que adotassem princípios
ideológicos com os quais não compartilhava. No relato, a sua emoção quer
testemunho e ao se dirigir àqueles que também sabem dos fatos, os que chama de meus amigos, tenta não apenas fazer pensar naquilo que se passou
mas, de certa maneira, levar os
interlocutores a sentir a
responsabilidade que possui (ou deve
possuir) cada ser humano na desgraça do outro. Um recurso narrativo que deseja
a aproximação com o leitor para, assim,
fazê-lo compartilhar de sua tristeza e de seu horror.
Nenhum comentário:
Postar um comentário