domingo, 27 de junho de 1999

60 mortos na escada: as vítimas


-          Morreram todos os rebeldes, senhor.
       E o Gobernador respondeu:
-          Bem mortos estão. 

No dia 5 de setembro de 1938, um pequeno grupo de estudantes num plano, certamente, de esperanças desvairadas, se enclausura no prédio da Universidade, em Santiago do Chile e de lá começa a atirar contra o Palácio do Governo. Muito depressa veio a  reação. Tanques apareceram, bombas derrubaram as portas, alguns estudantes morreram e os outros foram conduzidos para o edifício do Seguro Obrero onde, um a um, foram sendo assassinados..

            O local da cidade onde tudo aconteceu foi interditado por algumas horas e Carlos Droguett ao sair do trabalho, já tarde da noite, pouco sabia além dessas notícias, dizendo que todos os rebeldes haviam sido eliminados.

            Um ano depois, para que não fossem esquecidas essas mortes, ele escreveu uma crônica, “Los asesinados del Seguro Obrero”, que anos mais tarde irá  inserir no seu romance 60 muertos en la escalera (Nascimento, 1953).

            No romance, o relato dessas mortes, entremeado a outros  textos  – digressões, o episódio de Corina, o episódio do Cupido – vai emergindo pouco a pouco. De um  ignorar (não havia permissão para se aproximar do local, nem para tirar fotografias) para a esperança de saber pelos jornais (as pessoas do jornal andavam em busca de notícias) e, finalmente, para (com a saída dos jornais da noite) começar a saber. Primeiro, que os estudantes – eram trinta e sete os sobreviventes - saíram às duas horas da Universidade, golpeados nos rins pelas carabinas  maltratados pelas botas enlutadas e lisas que lhes mordiscavam os pés.

  Depois, já delineando perfis em longas digressões ( o de Yuric, o de Enrique) e, logo, nesse conhecimento próprio de um narrador onisciente, mostrando o estudante diante do companheiro ferido, esvaindo-se em sangue. Então, a chegada  dos estudantes no edifício do Seguro Obrero, também ocupado por outro grupo que procura se entrincheirar, amontoando móveis nas escadas. Mas, nada nem ninguém  os irá defender. Pouco a pouco, eles vão sendo exterminados, empilhando-se os corpos pelas escadas. Há botas raivosas que chutam quem já está deitado e sangrando; há as descargas de metralhadora seguidas do uso das baionetas; há o tiro que ultima o moribundo; há os golpes no rosto dos feridos. Eles eram muitos e o espaço em que os matavam era pequeno. Por isso não se disparou uma vez senão repetidas vezes. Se alguém se levantava, lhe era dado um tiro, se  levantava outra vez, se lhe dava outro tiro, se tornava a se levantar se lhe dava outro e assim até o oitava, até o décimo tiro. E, ainda, o décimo primeiro pode ter sido necessário.

            Já anoitecia quando chegou o médico para atender os feridos. Ficou à espera no vestíbulo do prédio, só escutando uns poucos gemidos ou algum grito.  Logo, apareceu um oficial alto e maciço que subiu as escadas. Mal tinham se passado dois ou três minutos quando a voz cortante, definitiva, lá de cima vociferava na escada, para o vazio: Que saiam os médicos. Aqui não vai haver feridos.

Nas escadas, mortos, ficaram os 60 jovens e suas esperanças.

 

 

 

 

 

domingo, 20 de junho de 1999

60 mortos na escada: os interlocutores


Meus amigos, eu não invento nada,  somente falo do que existiu, do que se passou naquela  enorme casa. Uma vez existiram sessenta e três rapazes. Passaram uns uniformes, passaram as balas e ficou o sangue, mostrando o lugar em que eles, antes de morrer, viveram.

 

          O romance se inicia com um vocativo meus amigos e, brevemente, reflete sobre o esquecer e o lembrar. Num hipotético diálogo, o narrador chama os eventuais interlocutores de eternos bondosos, aqueles que dizem ser bom  o esquecimento. Mas ele, insiste: é preciso que lembremos muito, muitíssimo, raivosamente, antes de esquecer um pouco. E’ que  precisa falar sobre “esse terrível e rápido que aconteceu na cidade há exatamente um ano atrás. Então, se permite longas digressões – um eu que se interroga, se expõe – onde se insere o vocativo amigos, retomando o laço com os interlocutores para somente na página quarenta e oito retornar à lembrança que lhe motiva esse dizer e que ele divide com  esses  a quem se dirige. E’ quando menciona o momento em que eles, como ele, começaram  a saber que houvera uma rebelião de estudantes e que  parece, todos  haviam mortos. Para novamente se perder em reflexões sobre o trabalho, sobre a vida miserável  nos cortiços e já no segundo capítulo se dirigir, outra vez, aos interlocutores que tanto quanto ele sabiam  que a desejada mudança de governo não ocorrera. Novas digressões sobre o mês de setembro – o mês das revoluções, o mês que é pai da Pátria – para, novamente, o vocativo cúmplice aparecer vocês conhecem a Universidade. Só então, o relato dos acontecimentos se inicia:  os jovens que se entrincheiraram na Universidade, se rendem diante das armas e se deixam conduzir para o prédio vizinho, o Seguro Obrero onde  são mortos, um a um. Também a esse relato se mesclam as digressões – momentos de vivências de um ou outro estudante, expresso, inclusive pelo fluir da consciência –  e o vocativo seguido de uma súplica: não esqueçam. Vocativo que iniciará o último capítulo. Nele se completa o tempo cronológico – umas doze horas – em que se encerra a narrativa. Entre dados objetivos (eram umas dez horas da noite, não havia bondes, não era permitido passar pelas ruas do centro, em cada esquina havia homens uniformizados) e observações sobre o que acontecia no jornal  em que trabalhava onde fotos sobre as mesas registravam o que ocorrera, o narrador insere brevíssimos textos  sobre o epílogo do sucedido e, agora, se dirige a um companheiro de trabalho, nominado, que tuteia enquanto o observa dormir: “Mortos demais para só uma tarde de primavera. [...].Estão todos mortos, mataram a todos, companheiro.

          Quando chega a hora de ir embora do jornal sabe, apenas, o que as duas fotos mostram – os rebeldes, caminhando na rua com os braços levantados ou depois, diante da enorme casa banhada de sol e o que dizia o jornal: Todos os revoltosos tinham morrido.

            E’ com pena e com raiva que chega em casa e quer acordar a mulher para contar-lhe. Mas, antes, outra vez, se dirige aos amigos dizendo: ainda me lembro (nunca tive muita memória) que lhe estive dizendo:-escuta, escuta, mataram a todos.

            Essas mortes  institucionalizadas que aconteceram no dia 5 de setembro de 1938, na capital do Chile, emocionaram, profundamente a Carlos Droguett e um ano depois, para lembrá-las, publica uma crônica, “Los asesinados del Seguro Obrero” em que relembra o fato. Anos mais tarde, quando parecia que essas mortes tinham sido esquecidas, Carlos Droguett retoma o assunto e entre o inverno de 1951 e o verão de 1952, reelabora o texto da crônica e, acrescentando outros, publica o seu primeiro romance, 60 muertos en la escalera (Nascimento, Santiago).

            Profundamente inovador na Literatura Chilena da época, ele se distingue, também pela postura comprometida com o ser humano que não lhe permite aceitar a matança dos jovens rebeldes, ainda  que adotassem princípios ideológicos com os quais não compartilhava. No relato, a sua emoção quer testemunho e ao se dirigir àqueles que também sabem dos fatos, os que chama de meus amigos, tenta  não apenas fazer pensar naquilo que se passou mas, de certa maneira, levar  os interlocutores a sentir  a responsabilidade que possui  (ou deve possuir) cada ser humano na desgraça do outro. Um recurso narrativo que deseja a aproximação com o leitor para, assim,  fazê-lo compartilhar de sua tristeza e de seu horror.                        

 

domingo, 13 de junho de 1999

60 mortos na escada: o mandante

           É uma obra sem precedentes na literatura chilena da época, ao usar textos de diferentes origens – reportagens, trechos de contos e de crônicas, digressões ensaísticas – para elaborar um romance que  não apenas se constrói com recursos experimentais como refaz uma História Oficial fadada a permanecer esquecida ou ignorada: 60 muertos en la escalera. Seu título remete ao tema central, o massacre de sessenta e três jovens na Universidade e no edifício do Seguro Obrero, ocorrido em Santiago do  Chile em 5 de setembro de 1938.  Assunto de uma crônica de Carlos Droguett, “Los asesinados del Seguro obrero,” publicada para lembrar o ocorrido, um ano antes, aparece como fio condutor desse romance que escreverá mais tarde e que será publicado pela Nascimento, em 1953.
            A ação se passa em Santiago, mais especificamente no edifício do Seguro Obrero e não dura mais do que algumas horas. Já no jornal da noite  haviam  aparecido as notícias:  fracassara uma revolta contra o governo, um militar havia sido assassinado e os revoltosos, todos estudantes, parecia que tinham morrido.  É a primeira informação sobre o acontecido que irá ser narrado cronologicamente, porém, em meio aos outros elementos que, entrelaçados, irão construir o romance. Então, há uma volta ao passado para contar sobre o governante. Carlos Droguett não lhe diz o nome, como tampouco o do general que lhe executa as ordens. Mas, eludi-los não impede reconhecer Arturo Alessandri, presidente  do Chile, na época, e o general Ibañez que no romance de Carlos Droguett personificarão o Gobernador e  o  General. Mas, se, abstraindo nomes e datas, Carlos Droguett destrói a noção de História a partir exatamente dessas ausências de informação é que a sua narrativa vai adquirir um significado mais amplo.  Porque,  nada é mais reconhecível, por comum, no Continente,  do que esse Gobernador  famoso. Ele falava bem, tinha uma bela voz, verdadeiramente milagreira nas regiões pobres do país. Foi querido pelos humildes, dizendo-se um deles, prometendo-lhes coisas fáceis e boas mas, aqueles que ele dizia amar logo foram ignorados ao se tornar Gobernador. Passou a viver e a falar só para os de cima que tentavam não se lembrar de suas origens o quê era algo que ele também tentava esquecer e por isso aos velhos amigos mandava prender e enviar para o sul onde havia vento e chuva e trabalhos forçados. Então, o amor que lhe dedicavam os pobres se transformou em ódio e eles passaram a sonhar com outro Gobernador jovem e bom. Mas, ele, já  disforme e velho queria governar muito, até o fim, mostrando para os de cima, o velho sorriso de seus velhos dentes. E entre a esperança do povo humilde e o seu querer se instalaram as prisões porque sempre havia um estudante ou algum operário que por, dizer uma palavra a mais ou por fazer um gesto a menos, eram suspeitos.          

           Quando, nesse mês de setembro, alguns estudantes e alguns operários quiseram expulsá-lo do Poder não sabiam bem do que ele era capaz. Enclausuraram-se na Universidade e  começaram a disparar contra o Palácio. Lá dentro, mal soube desses primeiros tiros o Gobernador, avisado, chamou o General e lhe disse algo. O General se foi em busca de seus soldados. Apenas o tempo de trazer o canhão, disparar e, derrubadas as  portas da Universidade, iniciar a chacina.

domingo, 6 de junho de 1999

Senso prático.

           Vila Velha é uma pequena cidade que não fica ali nem fica aqui, que fica em toda parte mas não fica em parte  alguma.... Por isso, o que nela acontece – e,  tudo é passível de acontecer – pode ter como cenário qualquer pequena cidade do Continente onde quem manda é, sobretudo, aquele que não recua diante dos desmandos e arbitrariedades.  No caso de Vila Velha é um coronel bonachão, um outro mais irritadiço ou um major e como todos – abstraídos exatamente os exageros nocivos – eles inspiram, quase sempre, o riso. Porque é natural e até esperado que os cidadãos dominados nada sabem de cidadania e lhe permitem, inocentes, todas as esdrúxulas decisões. Assim, pouco tino lhe é exigido e as situações em que exerce o seu poder absoluto podem se apresentar, sobretudo, como  engraçadas.  Em Vila Velha há então quem mande prender tendo por base meras suspeitas ou internar no hospital de loucos aquele que lhe parece destrambelhado; há quem ameace  com escândalo ou  com uma condenação à morte os viventes que o incomodam e determine o extermínio de seus inimigos quando disso advenha vantagens. Mas, é evidente, a autoridade também está sujeita a erros. E, exemplar, o caso do forquilheiro. Pois tinha treze anos o menino quando, por acaso se viu possuidor desse dom de achar água. Nas suas mãos a forquilha sempre entortava e ele cresceu  descobrindo água. E as secas não foram mais uma ameaça para Vila Velha. No dia em que salvou a pecuária do município, a autoridade decidiu enviá-lo para estudar em Porto Alegre. A cidade inteira concordou pois, se desprovido de estudos  descobrira água, “imaginem o que faria bem estudado.
          Meio sem achar que merecia, ele foi para a capital. Nas férias, voltou e descobriu cinco poços novos. No segundo ano, teve compromissos e no seguinte, foi visitar parentes. Só depois de formado é que voltou para Vila Velha onde uma seca já o esperava. Mal desceu do ônibus, já lhe mostravam os campos amarelados e  logo veio o pedido  para que pegasse a forquilha.  Admirou-se e  um pouco encabulado explicou que aquilo era superstição.  Nem acabara de falar, levava um sopapo e carregado por quatro, protestando que era um homem civilizado, foi levado para o campo com a forquilha na mão. Mas, nem barro encontrou e só foi salvo da raiva, provocada  nos seus concidadãos, porque o padre chegou para salvá-lo. No dia seguinte, teve que ir embora da cidade porque seu pai, cheio de indignação, o expulsou de casa exclamando:  Doutor, a gente já tem que chega, o que tá faltando aqui é forquilheiro.

             Este caso, um dos trinta que são narrados por Sérgio Jockyman na voz desse menino que foi crescendo e ouvindo histórias na botica de seu pai e que se propôs contá-las para que não se percam. Vila Velha, publicado pela Garatuja de Porto Alegre, em 1975, é o resultado desse escuta que te escuta.