Uma
tropa de setecentos indígenas entra na pequena cidade sob a chefia de Andrés
Guacurarí y Artigas, índio como eles. Os moradores espiam pelas frestas,
esperando o início do massacre. Mas, os índios calmos, e em ordem, se dirigem
ao lugar que será o seu quartel e, logo, irão assistir à Missa. Só mais tarde
começará o espanto da cidade: cerca de duzentos índios jovens e armados chegam
na praça. Muitos dos que espreitam, escondidos, reconhecem, entre eles, os
indiozinhos que trabalhavam, como servos, nas suas terras. Também reconhecem
nos meninos brancos, feitos prisioneiros, os filhos dos fazendeiros.
Uma
semana depois, Andrés Guacurarí y Artigas chama as mães dos meninos brancos e
lhes fala, perguntando por que elas consentiram tanta crueldade – e escravidão
e espancamento – com as crianças índias. As mulheres brancas escutam o que ele
diz e sabem ser verdade aquilo que
ouvem, porém só lhes resta chorar e implorar.
Então, já caindo a tarde, elas tem permissão para levar seus filhos.
Acreditam que é uma prova de que Deus existe.
Leon
Pomer no capítulo “Andresito” de sua obra América:
histórias, delírios e outras magias
(Brasiliense, 1980), conta esse episódio, ocorrido em Corrientes, Argentina, em
meados de 1818 sem eludir as reflexões que os brancos, sobre ele, se permitiram
enunciar.
Levadas
a pensar sobre o tratamento que era dado aos pequenos índios guaranis nas suas
propriedades e na angústia das mães índias, não menor do que aquela que sentem
diante do cativeiro de seus filhos, as mulheres tudo esquecem quando os tem de volta. Então podem se
exclamar: Que espécie de perversa
intenção tem esses índios? Eles pretendem dar lições de humanidade aos
brancos? Ou será que a religião cristã os tornou brandos e civilizados? Perguntas demonstrando o abismo que separa a
mentalidade indígena daquela dos colonizadores. Estão carregadas não somente da
desconfiança diante de uma decisão correta – por que matar crianças e jovens
inocentes? – mas, sobretudo, dos preconceitos
que acompanharam os colonizadores quando da sua chegada na América onde
permaneceram, alheios, sempre, a qualquer espécie de lógica e, certamente,
beirando o absurdo. Porque indagar se os índios pretendem dar lições de
humanidade aos brancos ou se a religião cristã os abrandou e civilizou é dar
mostras de uma total alienação que, na verdade, está muito próxima da
desonestidade na medida em que deseja
ignorar terem sido os brancos que efetuaram, sempre, cruéis e inexplicáveis
matanças de índios no Continente e quase, senão sempre, em nome do
Cristianismo.
Leon
Pomer, historiador argentino (Guerra del
Paraguay. Gran negocio!, El soldado criollo, El gaucho) se debruça sobre a América índia, negra e popular para contar as
histórias paralelas àquela feita dos conquistadores. E nos seus relatos de América:
histórias, delírios e outras
magias, o capítulo “ Andresito”
desenha um perfil de índio que a História oficial quase sempre eludiu. Resgatá-lo,
fazê-lo existir é, principalmente,
reconhecer uma verdade e, assim,
abrir outros caminhos que a
completam e modificam.
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