domingo, 23 de maio de 1999

Clemência

           Uma tropa de setecentos indígenas entra na pequena cidade sob a chefia de Andrés Guacurarí y Artigas, índio como eles. Os moradores espiam pelas frestas, esperando o início do massacre. Mas, os índios calmos, e em ordem, se dirigem ao lugar que será o seu quartel e, logo, irão assistir à Missa. Só mais tarde começará o espanto da cidade: cerca de duzentos índios jovens e armados chegam na praça. Muitos dos que espreitam, escondidos, reconhecem, entre eles, os indiozinhos que trabalhavam, como servos, nas suas terras. Também reconhecem nos meninos brancos, feitos prisioneiros, os filhos dos fazendeiros.         
 
           Uma semana depois, Andrés Guacurarí y Artigas chama as mães dos meninos brancos e lhes fala, perguntando por que elas consentiram tanta crueldade – e escravidão e espancamento – com as crianças índias. As mulheres brancas escutam o que ele diz e sabem  ser verdade aquilo que ouvem, porém só lhes resta chorar e implorar.  Então, já caindo a tarde, elas tem permissão para levar seus filhos. Acreditam que é uma prova de que Deus existe.

            Leon Pomer no capítulo “Andresito” de sua obra América: histórias, delírios e outras magias (Brasiliense, 1980), conta esse episódio, ocorrido em Corrientes, Argentina, em meados de 1818 sem eludir as reflexões que os brancos, sobre ele, se permitiram enunciar.

          Levadas a pensar sobre o tratamento que era dado aos pequenos índios guaranis nas suas propriedades e na angústia das mães índias, não menor do que aquela que sentem diante do cativeiro de seus filhos, as mulheres tudo esquecem  quando os tem de volta. Então podem se exclamar: Que espécie de perversa intenção tem esses índios? Eles pretendem dar lições de humanidade aos brancos? Ou será que a religião cristã os tornou brandos e civilizados? Perguntas  demonstrando o abismo que separa a mentalidade indígena daquela dos colonizadores. Estão carregadas não somente da desconfiança diante de uma decisão correta – por que matar crianças e jovens inocentes? – mas, sobretudo, dos preconceitos  que acompanharam os colonizadores quando da sua chegada na América onde permaneceram, alheios, sempre, a qualquer espécie de lógica e, certamente, beirando o absurdo. Porque indagar se os índios pretendem dar lições de humanidade aos brancos ou se a religião cristã os abrandou e civilizou é dar mostras de uma total alienação que, na verdade, está muito próxima da desonestidade na medida em que  deseja ignorar terem sido os brancos que efetuaram, sempre, cruéis e inexplicáveis matanças de índios no Continente e quase, senão sempre, em nome do Cristianismo.

          Leon Pomer, historiador argentino (Guerra del Paraguay. Gran negocio!, El soldado criollo, El gaucho) se debruça sobre a América índia, negra e popular para contar as histórias paralelas àquela feita dos conquistadores. E nos seus relatos de América:  histórias, delírios e outras magias, o capítulo Andresito” desenha um perfil de índio que a História oficial quase sempre eludiu. Resgatá-lo, fazê-lo existir é, principalmente,  reconhecer uma verdade e, assim,  abrir  outros caminhos que a completam e modificam.

 

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