domingo, 30 de maio de 1999

O inusitado.

         Na igreja repleta de soldados índios, não havia brancos. Apenas, alguns mendigos e o louco do lugar. Convidados todos, os moradores não foram para ver os índios representando  “A tentação de Santo Inácio”. Andrés Guacurarí y Artigas, o chefe índio, governador da cidade, sente o quão ele e sua gente foram desprezados pelos habitantes de Corrientes e, também, quanto é necessário dar-lhes uma lição. Pensa muito até decidir. Na manhã seguinte, às cinco horas de um tórrido amanhecer, os tambores índios sobressaltam a população e lhes inspiram o medo. Na casa dos principais da cidade, acodem emissários, para, em nome do governador, convocar todo homem apto para o trabalho. Devem se por em fila na praça e aí receber pás e enxadas e escutar as palavras do chefe índio. E ele diz que a praça está uma vergonha com todo esse capim crescido que pode ser um perigo para as mulheres e crianças e que, além disso, o desleixo em que se encontra faz, dela, um feio espetáculo. Pode, no entanto   se tornar um lugar agradável para nele se passear à sombra das árvores.  Por essa razão, foram os homens convocados. Medrosos, pensando que seriam degolados,eles se mostram obedientes e trabalham até o entardecer  e, no fim do dia,  jazem sujos, suados, com as mão calejadas e as roupas molhadas, com os rostos inchados e descompostos e os olhos querendo fechar. Diante deles, riem os índios e logo se ouve a música  alegre de seus primitivos instrumentos. A praça ficara com seu gramado cortado, com seus canteiros  em linha. Pela primeira vez, os brancos haviam trabalhado sob o sol causticante,como sempre haviam ordenado aos índios.
         
          Mas, assim como chegara, mansamente, cumprindo ordens, Andrés Guacurari y Artigas partiu de  Corrientes, numa noite de outubro. Deixou um governador por ele nomeado, Juan Bautista Méndez.  Não sendo índio , os principais da cidade acreditam que dele nada devem temer pois entre brancos sempre se hão de entender.

           Leon Pomer que narra esta história, de exceção, no seu livro América: histórias delírios e outras magias (Brasiliense, 1980) não diz mais dessa praça que um dia luziu sob o trabalho dos cidadãos. Deve ter voltado a ser invadida pelo capim e pela erva daninha diante  do olhar indiferente dos maiorais da cidade.  De Andrés Guacurari y Artigas preverá o futuro:  algum dia o inimigo lusitano o prenderá e enterrará sua lembrança num cárcere secreto ou na definitiva cova da morte. Na História de Corrientes será o homem que vilittpendiou a considerada ordem natural das coisas,  pois nesse espaço conquistado pelos ibéricos e, no seu entender, realizar árduas tarefas compete aos índios e aos negros. Nessa verdade  tida por inconteste, sob o mando de Andrés Guacurari y Artigas e sob o olhar dos índios que rodeavam a praça nesse dia, abriu-se um parêntese: os homens brancos trabalharam submissos.
            Algo de inusitado e muito efêmero nesse Continente de castas, egoísmos e infinitos privilégios

domingo, 23 de maio de 1999

Clemência

           Uma tropa de setecentos indígenas entra na pequena cidade sob a chefia de Andrés Guacurarí y Artigas, índio como eles. Os moradores espiam pelas frestas, esperando o início do massacre. Mas, os índios calmos, e em ordem, se dirigem ao lugar que será o seu quartel e, logo, irão assistir à Missa. Só mais tarde começará o espanto da cidade: cerca de duzentos índios jovens e armados chegam na praça. Muitos dos que espreitam, escondidos, reconhecem, entre eles, os indiozinhos que trabalhavam, como servos, nas suas terras. Também reconhecem nos meninos brancos, feitos prisioneiros, os filhos dos fazendeiros.         
 
           Uma semana depois, Andrés Guacurarí y Artigas chama as mães dos meninos brancos e lhes fala, perguntando por que elas consentiram tanta crueldade – e escravidão e espancamento – com as crianças índias. As mulheres brancas escutam o que ele diz e sabem  ser verdade aquilo que ouvem, porém só lhes resta chorar e implorar.  Então, já caindo a tarde, elas tem permissão para levar seus filhos. Acreditam que é uma prova de que Deus existe.

            Leon Pomer no capítulo “Andresito” de sua obra América: histórias, delírios e outras magias (Brasiliense, 1980), conta esse episódio, ocorrido em Corrientes, Argentina, em meados de 1818 sem eludir as reflexões que os brancos, sobre ele, se permitiram enunciar.

          Levadas a pensar sobre o tratamento que era dado aos pequenos índios guaranis nas suas propriedades e na angústia das mães índias, não menor do que aquela que sentem diante do cativeiro de seus filhos, as mulheres tudo esquecem  quando os tem de volta. Então podem se exclamar: Que espécie de perversa intenção tem esses índios? Eles pretendem dar lições de humanidade aos brancos? Ou será que a religião cristã os tornou brandos e civilizados? Perguntas  demonstrando o abismo que separa a mentalidade indígena daquela dos colonizadores. Estão carregadas não somente da desconfiança diante de uma decisão correta – por que matar crianças e jovens inocentes? – mas, sobretudo, dos preconceitos  que acompanharam os colonizadores quando da sua chegada na América onde permaneceram, alheios, sempre, a qualquer espécie de lógica e, certamente, beirando o absurdo. Porque indagar se os índios pretendem dar lições de humanidade aos brancos ou se a religião cristã os abrandou e civilizou é dar mostras de uma total alienação que, na verdade, está muito próxima da desonestidade na medida em que  deseja ignorar terem sido os brancos que efetuaram, sempre, cruéis e inexplicáveis matanças de índios no Continente e quase, senão sempre, em nome do Cristianismo.

          Leon Pomer, historiador argentino (Guerra del Paraguay. Gran negocio!, El soldado criollo, El gaucho) se debruça sobre a América índia, negra e popular para contar as histórias paralelas àquela feita dos conquistadores. E nos seus relatos de América:  histórias, delírios e outras magias, o capítulo Andresito” desenha um perfil de índio que a História oficial quase sempre eludiu. Resgatá-lo, fazê-lo existir é, principalmente,  reconhecer uma verdade e, assim,  abrir  outros caminhos que a completam e modificam.

 

domingo, 16 de maio de 1999

Os fios e os nós.


          Inca Garcilaso de la Vega nasceu no dia 12 de abril  de 1529, filho de um ilustre capitão espanhol e de uma princesa incaica. Daí, ter sido o quechua a sua língua materna e, também, desde muito pequeno ter aprendido a manejar os fios trançados e coloridos dos “quipus”, a maneira de contar dos incas. Esses fios eram de uma, duas, três ou mais cores porque, tanto as simples como as misturadas, tinham todas o seu significado: para o ouro, o amarelo; para a prata, o branco; para os guerreiros, o vermelho. E os nós eram dados pela sua ordem de unidade (dezena, centena, milhar) e cada um deles e cada fio iam emparelhados uns com os outros e nesse tecer emergia a vida inteira da comunidade: a sua produção agrícola, o número e  condição de seus habitantes, a quantidade das armas disponíveis. Um sistema contábil que assim como as leis e a religião, os usos e costumes  dos incas traz no seu bojo toda uma visão de mundo que os colonizadores ibéricos desconheciam e que  Inca Garcilaso de la Vega na sua obra faz conhecer.

            Assim, nos Comentarios reales, ao tratar dos “quipus”, ele se refere, também, aos “quipucamayu”, aqueles que são encarregados das contas do Estado. Mencioná-los, o conduz a uma breve digressão sobre a índole dos índios de seu tempo que, pela pouca malícia que demonstravam e pelo modo como se comportavam, poderiam, no seu entender, ser considerados  pessoas de bem. Para exercer o ofício de “quipucamayu”, no entanto, deveriam, ainda, demonstrar uma longa prática da bondade. Mas, a prudência dos incas ia além: embora fossem os escolhidos homens fiéis e honestos, cada comunidade, por pequena que fosse, possuía, no mínimo, quatro “quipucamayu”. Como os vinte ou trinta das comunidades maiores eles mantinham o mesmo registro de tudo o que ocorria, pois, dessa  maneira não haveria meio de falseá-lo. Eram práticas que originavam uma confiança da qual eles faziam jus. Na verdade, depositários da história de seus antepassados, das leis e dos ritos, das cerimônias e dos impostos, estudavam continuamente os sinais e as cifras que os nós e as cores dos “quipus” transmitiam e estavam aptos a responder as perguntas formuladas, sem se afastar da verdade. Com a chegada dos ibéricos, se deram conta, porém, que existia a traição e a hipocrisia. Compreenderam que o sentido do que eles faziam ou os atos que praticavam, na maior parte das vezes, não obedecia aquilo que era antes estipulado mas, dependia sempre dos interesses que estavam em jogo. E tiveram que aprender a se defender.

          No capítulo IX da segunda parte de sua obra, conta Inca Garcilaso de la Vega que, não se fiando dos espanhóis, os incas  quando iam para a cidade pagar os tributos devidos, pediam que ele, conhecedor dos “quipus” e da escrita latina, cotejasse as contas  arroladas pelos colonizadores com os seus nós e os seus fios.

          Certamente, uma sábia prática necessária que os colonizados – uma espécie que no Continente não se extinguiu – jamais deveriam deixar de cultivar. Até porque, nesta América ao sul do rio Bravo, os alienígenas nunca os deixaram de menosprezar ao impor suas enganosas e perversas condições.                                          

domingo, 9 de maio de 1999

Ida e volta.

           Diz Ruy Wachowicz na sua obra Obrageros, mensus e colonos (Curitiba, Vicentina, 1982) que “mensu” é palavra de origem espanhola que significa mensalista, aquele que recebe por mês. Na terceira parte do primeiro capítulo, um longo texto é dedicado à maneira como se fazia o recrutamento de homens para trabalhar nas obrages (propriedade e/ou exploração em territórios argentinos ou paraguaios cujo objetivo era a extração da erva-mate) e que tipo de vida eles levavam, a partir do momento em que recebiam o  antecipo e iniciavam a viagem que os levaria para o local do trabalho contratado, de onde muito poucos tinham a possibilidade de retornar.
O antecipo era um adiantamento de salário de uns dois ou três meses para os candidatos a mensu. Propositalmente, o barco para conduzi-los à obrage demorava uns três dias para chegar e o mensu, enquanto o aguardava, se distraía no porto, gastando com bebidas e mulheres o dinheiro recebido. Ao embarcar, já nada tinha no bolso.

            O conto de Horacio Quiroga “Los mensu” (parte do livro Cuentos de amor, de locura y de muerte) se inicia no momento em que dois deles, Cayetano Maidana e Esteban Podeley voltam, depois de meses de trabalho na obrage, a Posadas,  para a sonhada glória de uma semana. Magros, despenteados, [...] descalços como a maioria, sujos como todos eles, descem do barco já cambaleantes de orgia antecipada. À espera estão as mulheres alegres, as bebedeiras, as compras, os bailes. Depois de sete dias de desperdício do novo antecipo, outra vez o embarque  para a mata com a certeza de jamais poder saldar a dívida contraída nesses dias vividos como gran señor. Cayetano, no barco, enfim lúcido, se dá conta que lhe resta apenas uma saída: a fuga. Que, também será a esperança de salvação para Esteban Podeley, atacado de febres. Num Domingo, ludibriam os vigias e se internam na mata. Embora perseguidos por homens armados, conseguem chegar às margens do rio Paraná. Famintos, molhados até os ossos por uma chuva torrencial, a chuva branca e surda dos dilúvios outonais, entre mata e rio ficaram sitiados. Um, para morrer tiritando; o outro, para ser recolhido pelo barco que ali passa, um entardecer, subindo o rio. Ao se dar conta que estava sendo levado para o mesmo lugar de onde fugira, o mensu, chorando, implora que não o desembarquem pois seria condená-lo à morte. Dias depois, o barco, de volta, aporta em Posadas e, então, dez minutos lhe são suficientes para ficar bêbado com o antecipo de um novo contrato e, cambaleante, ir em busca de perfume para comprar.

            Parco de adjetivos, dominando a expressão no narrar objetivo em que o sentir dos personagens emerge apenas, Horacio Quiroga faz da estrutura circular de “Los mensu” um perfeito recurso narrativo para mostrar quão imenso é o drama desses seres humanos a quem foi negado qualquer e mínimo direito de existir, na crueza de sua realidade: o contínuo recomeçar de misérias.
            É um conto em que há síntese, há ausência de emoção, há verdade e há beleza nesse querer falar do opróbrio a que devem se sujeitar os pobres desamparados do Continente.

                       


domingo, 2 de maio de 1999

O livro das maravilhas

          Jules Supervielle, nascido em 1884, em Montevidéu, filho de franceses e educado na França, onde passou a maior parte de sua vida, nutriu sua obra, no dizer de Zum Felde no seu livro Proceso Intelectual del Uruguai, da emoção e da evocação dos motivos americanos.
          Sua produção literária, toda escrita em francês, se inicia em 1910 com um livro de poemas, Comme des voilliers e, tanto nele, como nos outros que se lhe seguem – Poèmes (1919), Debarcadères e Gravitations (1925), Le forçat innocent (1930), Les amis inconnus (1934), La fable du monde (1938) – se alternam os temas franceses com aqueles relacionados à terra onde passou os seus primeiros anos.
Em 1923, publica pela Gallimard de Paris, o relato L’homme de la Pampa que aparece, em
 tradução espanhola, numa edição da Arca de Montevideu, em 1969, nove anos depois de sua morte, ocorrida em Paris. Na epígrafe que antecede a obra, Jules de Supervielle diz que se trata de um sonho, uma realidade, uma farsa, uma angústia, esse pequeno romance, escrito para a criança que ele foi e que pede que lhe conte histórias.
             E de um mar de histórias é feito El hombre de la pampa. Chama-se ele Juan Fernández y Guanamirú e é estancieiro incomum: um homem dono de mais touros puro sangue dos que são necessários para cobrir sessenta mil vacas. Até os quarenta anos tinha querido administrar as terras que herdara de seu pai e, então, para passar o tempo, mandara construir um enorme palácio, enfeitado de torres quadradas. No seu parque, se permitira todas as fantasias que, de repente, um dia, não mais o entusiasmaram. Foi quando lhe veio o desejo de construir um vulcão, convicto de que só assim seria feliz. Procurou modelos entre os existentes e optou por um que fosse jovem, com uma cratera bem conservada e se constituísse o resumo de todos. Quando ficou pronto, ele se deu conta que, para efetuar a erupção completa, teria que despender muito e que assim somente poderia oferecê-la completa nos dias de festa nacional. Mas que as quintas-feiras seriam um dia reservado para as crianças da escola quando o seu Vesúvio dos tempos modernos vomitaria gratuitamente receitas úteis, pastilhazinhas de sabão e pedra-pomes, quebra-cabeças inquebráveis com pinturas nutritivas ou refrescantes conforme o desejo expresso pelos pais. Mas, logo vieram as críticas e a perda de uma serenidade que o levou a concluir ser tempo de mudar de ares. E viajou para Paris onde inusitadas aventuras lhe povoaram os dias.

           Embora o título do relato enraíze o personagem no Pampa, parece que nada o liga a esses campos sem limites a não ser querer fugir da imensa ociosidade em que se vê mergulhado na sua estância. É, na verdade, um personagem rodeado de prodígios que se entrelaçam num contínuo emergir de surpresas. Assim, na depressão que  dele se apodera diante dos ataques dos jornais a respeito de seu vulcão e da maneira morna como foi defendido, nem chega a notar a verdadeira hostilidade com que as coisas se voltam contra ele: os retratos de família o olham de viés; sua caneta foge para o campo; as portas de seus armários, quando as abre, gemem como recém-nascidos; os números de seu cofre mudam durante a noite; seu relógio de noite adianta, enquanto o do quarto se atrasa.                                            
           Repleto de maravilhas que, ininterruptamente, se sucedem, o  relato vai se fazendo de inacreditáveis e muito rico de significados misteriosos e de expressões a sugerirem sons e cores e aromas. E o quebrar da lógica, sempre desfeita ou num emaranhado de sinestesias – chegou a respirar de perto um ramalhete de estrelas –, ou em dizeres de alucinante fantasia – estendeu-lhe a mão quadrada que tinha escondido até então e onde relinchava, sem interrupções, sobre um camafeu vermelho, um cavalo marinhotttt – domina cada seqüência narrativa.

          É um narrar que se estrutura a contrariar qualquer verossimilhança: um caleidoscópio de mágicas, ligado ao mundo dos homens – o de usos e costumes, o dos preconceitos e idéias imutáveis – apenas pela ironia e pela troça sutil a acusar o olhar ameno e risonho que, das margens do Sena, Jules Supervielle alcança a pousar sobre o Continente.