domingo, 18 de abril de 1999

Aforismos

          Em abril de 1989, foi publicado pela Banda Oriental de Montevidéu, um pequeno livro, Hombre a la orilla del mundo. Seu autor, Milton Schinca, poeta e dramaturgo, se iniciou, em 1956 na Literatura com Sancho Panza, gobernador de Barataria. Seguiram-se vários livros de poemas (Ese milagro, De la aventura, Esta hora urgente, Mundo cuestionado, Nora paz, Poemas Sex) e, em  prosa, Boulevard Sarandi;  logo, a peça de teatro Delmira y otras rupturas.
            Hombre a la orilla del mundo é um relato em forma de epistolário. Cartas sem data que se sucedem com vagas indicações de tempo, traduzido em expressões como dois dias depois, quatro dias depois, um mês depois, na semana seguinte. Do signatário dessas cartas não aparece jamais o nome e só algumas breves referências a episódios de sua vida permitem aproximar-se a uma identidade que mais  se adivinha do que se dá a conhecer nesse ex-governante, exilado de muitos anos num país inominado, regido pelo Mandatário. Embora não tenha rosto, nem história nem datas que o deixem se entrever, o autor das cartas se delineia como Prócer da Independência Uruguaia: o general Artigas.  Rápidas seqüências permitem tal identidade deduzir: o dizer-se confinado num pobre povoado onde chegou, escoltado por um oficial e vários soldados e sem nada nas mãos que lhe lembrasse a terra que deixara; ver-se como um general, um condutor de povos plantando repolhos na horta de sua casa; lembrar-se do que foi, aquele que lutou contra o espanhol, que teve o governo nas mãos. Lembranças que o levam a determinados momentos de seu passado (a morte da irmã, seu casamento), do proveito que teve na convivência de um sábio que visitou o seu país, das suas relações amorosas. Também, se indaga sobre o numero de homens que morreram porque levantou tal ou qual bandeira e como poderia se abster de condenar, ainda que passassem cem mil anos, cem mil séculos aqueles que, por gozar do Poder ou do dinheiro, traíram a causa da pátria.

          São esses assuntos de sua terra que resultaram incompreensíveis para o interlocutor que teve no passado e para quem ora escreve, sabendo que deve lhe resultar difícil entender as guerras intermináveis, tantos ódios e lutas, os enfrentamentos com os governos vizinhos e com os impérios da Europa. Espantos que, juntamente com esse viver no exílio – ouvindo sua língua num outro tom, escutando outros ditos, percebendo outros modos de se comunicar –, o fazem sentir a solidão a qual está condenado até o final de seus dias. Daí as reflexões que o passar do tempo vai ajudando a construir. Porque, ao constatar a chegada da velhice ele a vai definindo: a velhice nada mais é do que uma poda das faculdades, dos quefazeres, das recreações, dos afetos que vão ficando pelo caminho; o mais penoso e irritante da velhice é a insegurança em relação a nós mesmos; os velhos necessitam que nada ocorra no cotidiano de seus dias; a  velhice vai entendendo menos mas vai chegando com mais pureza até as coisas.

          Um refletir a conduzi-lo a constatações que se mostram como verdadeiros aforismos: o verdadeiro professor não se faz da noite para  o dia; o melhor ensinamento é mudo e se faz a partir do exemplo; o amor ainda quando não nos trouxesse mais que felicidades requereria de nós uma alerta e um cuidado da maior delicadeza; até onde somos o que somos e não o que os fatos nos mandam ser ?; há quem viva para representar que  vive. Certamente são palavras de quem já viveu, subentendendo um aprendizado que somente o passar dos anos pode concedert.

 Ao imaginar o homem que teve nas mãos, por alguns anos, grandes poderes de decisão nas margens do Prata, nos seus dias de confinamento em país estranho e distante da pátria, Milton Schinca parte de alguma passagem de sua biografia conhecida, de um ou outro dado real. Assim, o fato de ser o general Artigas um exímio cavaleiro ou de ter perdido, prematuramente a mulher ou de ter sofrido a traição de seus companheiros de luta. Parcas informações que são, no entanto, suficientes para concretizar esse perfil que a partir do momento em que Artigas perdendo-se no exílio, se torna irrecuperável para o historiador e que o ficcionista refaz, concedendo-lhe esse outro, inventado mas, perfeitamente verossímil: o de um homem que se observa, procura  se entender, busca um encontro consigo mesmo e se expressa num ato de simplicidade e de extrema coerência ao se desnudar nos humildes e pequenos momentos de seu cotidiano. E, nesse trazer à dimensão dos homens aquele que foi herói, Milton Schinca deixa-se ver como um narrador, perfeito conhecedor de seu ofício ao urdir uma trama em que o personagem que pertence à História se recria num sentir e num pensar próprio dos homens..

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